Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_SU_2022_003
  • Domínio: Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais
  • Categoria: Atividades transformadoras
  • Denominação: Barco Moliceiro: Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro
  • Outras denominações: Construção e Pintura de Moliceiros; Construção do Barco da Ria de Aveiro;
  • Contexto tipológico: Esta manifestação insere-se na tradição da arte de construção naval tradicional, com origem na Região de Aveiro, e consiste na construção de embarcações de madeira (pinho manso e bravo) totalmente adaptadas para os desafios da navegação da Ria de Aveiro e para a atividade económica originalmente destinada no século XVIII – a apanha do moliço. Hoje, embora a esta atividade já não se pratique, o Barco Moliceiro é utilizado ao nível da atividade turística, transição que permitiu evitar a sua perda (que se avizinhava nos anos 90).
  • Contexto social:
    Comunidade(s): População Ribeirinha da Ria de Aveiro
    Grupo(s): Associações, Grupos Etnográficos, Comissões de Festas Populares e Estações Náuticas da Região de Aveiro
    Indivíduo(s): Mestre construtor António Esteves; Mestre construtor Arménio Almeida; Mestre construtor Felisberto Amador; Mestre construtor José Rito; Mestre construtor Marco Silva; Mestre-pintor José de Oliveira
  • Contexto territorial:
    Local: Região de Aveiro
    Distrito: Aveiro
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente \ Centro \ Baixo Vouga
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: A construção, as “amanhações” e a pintura de painéis dos barcos moliceiros são praticadas ao longo do ano, sempre que acontecem novos pedidos por parte dos proprietários.
    Data(s): A Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro, acontece ao longo do ano, não tendo uma data fixa.
  • Caracterização síntese:
    O Barco Moliceiro é uma embarcação tradicional de madeira, originária da Região de Aveiro, que foi inicialmente criada e utilizada para a apanha do moliço na Ria de Aveiro, uma das mais importantes atividades económicas que a região conheceu durante várias décadas. O moliço é o nome atribuído a um conjunto de 21 plantas aquáticas que vivem no leito submerso da Ria de Aveiro e que foi utilizado como fertilizante das terras agrícolas. Quando se iniciou a atividade da apanha do moliço a população terá utilizado as embarcações que, na época, possuíam, contudo cedo perceberam que essas não se adaptavam às necessidades da atividade, tornando-a ainda um trabalho mais difícil. Foi então, neste contexto, que surgiu a necessidade de criar uma nova embarcação. Fruto da experiência e do profundo conhecimento da Arte da construção naval que existiam na Região de Aveiro, os mestres criaram o Barco Moliceiro, uma embarcação que apresenta uma estrutura, quer adaptada às características naturais da Ria de Aveiro - como o fundo chato que permitia ao barco navegar nas águas pouco profundas da Ria –, quer às exigências da tarefa da apanha do moliço – como os costados baixos para facilitar o processo de recolha dos ancinhos que apanhavam o moliço, para o interior do barco. O Barco Moliceiro terá adquirido as formas que hoje conhece nos finais do século XVIII, tendo depois observado, nos séculos XIX e XX, um grande crescimento no número de embarcações, fruto da dinâmica económica a si associada. Embora possua uma arte de construção artesanal de processos simples, detém associado a si um conjunto de técnicas, ferramentas e saberes imateriais que têm sido, ao longo de várias décadas, transmitidos entre gerações (não apenas dentro das mesmas famílias), sendo passado esse conhecimento de mestres para aprendizes. Desde o seu processo construtivo, à pintura dos painéis de moliceiros, esta é uma embarcação que apresenta um conjunto de especificidades, começando, por exemplo, pela escolha da madeira e pela própria utilização das ferramentas, que diferencia o Barco Moliceiro das demais embarcações. Um dos elementos mais simbólicos desta construção é o pau-de-pontos, uma simples vara de madeira artesanal que serve de régua para os mestres construírem toda a embarcação e que, apenas com base na experiência e no seu conhecimento é possível a interpretar. Outro dos elementos distintivos dos barcos moliceiros são os seus painéis. Cada Barco Moliceiro tem sempre 4 painéis decorados (2 na proa e 2 na ré), sendo sempre distintos entre si e nunca se repetindo. Cada painel tem sempre um desenho e uma legenda que se complementam e que devem ser lidos em conjunto para que seja transmitida a mensagem – esta que poderá assumir temas mais humorísticos, satíricos, dramáticos, religiosos, saudosistas, ou outros, consoante a perceção e a visão do seu autor. Este saber-fazer tem-se mantido fiel aos padrões originais, fator que permite conhecermos hoje - salvo algumas adaptações introduzidas - um Barco Moliceiro muito similar, quer na estrutura, quer na decoração, àqueles que navegaram a Ria, durante anos, na faina do moliço, mesmo considerando que esta atividade já não é praticada desde os anos 80/90 do século XX e o Barco Moliceiro tenha, hoje, uma nova função – a atividade turística. Ainda assim, e não obstante a dinâmica que o turismo trouxe no processo de salvaguarda e na galvanização do trabalho nos estaleiros, o número de profissionais que se dedicam atualmente à Arte da Carpintaria Naval do Barco Moliceiro é reduzido (cinco mestres construtores e um pintor de moliceiros), cenário ainda mais inquietante se atentarmos que apenas um dos cinco mestres construtores navais no ativo possui menos de 60 anos, dois fatores, que associados a outros, colocam em risco a continuidade deste saber-fazer e evidenciam a necessidade de se intervir e o salvaguardar.
  • Caracterização desenvolvida:
    O Barco Moliceiro é uma embarcação tradicional em madeira originária da Região de Aveiro que desempenhou, durante várias décadas, um papel determinante para a subsistência das pessoas que aqui viveram. Tem aproximadamente 15m de comprimento, 2,50/2,60m de boca, 0,40/0,45m de pontal, e uma capacidade para 5 toneladas de carga, fundamental para a atividade da apanha do moliço. Tem a si associado uma Arte de Carpintaria Naval que o torna único e diferenciado das demais embarcações que navegam na Ria de Aveiro – “Os barcos moliceiros são os mais airosos e bem lançados que atravessam as águas da Ria” (Egas Moniz, 1950) - sendo, por muitos autores e investigadores, considerado um dos mais belos a nível mundial, quer pela sua própria estrutura característica, quer pelos seus vistosos painéis de moliceiros. Raul Brandão, em “Os Pescadores” (1923; p.26), escreveu sobre ele o seguinte: “Este lindo barco serve para tudo (...) é o encanto da ria. Tem não sei quê de ave e de composição de teatro. Anima a paisagem. (...) Não conheço outro mais artístico, mais leve, mais adequado às funções que exerce e à paisagem que o circunda.” A origem do Barco Moliceiro O Barco Moliceiro terá adquirido as formas que hoje conhece nos finais do século XVIII (Fonseca, 2011), tendo conhecido no século XIX um grande crescimento no número de embarcações (Lopes, 1997). Nasceu essencialmente para a faina/apanha do moliço (Laranjeira, 1989), complemento vital da agricultura de subsistência da região (Sarmento, 2008), exercendo a sua atividade em toda a extensão da laguna (Castro, 1943). É, assim, fruto do engenho e perícia do mestre carpinteiro lagunar, tendo-se inspirado em outras embarcações existentes na região (Ver Doc1_ResenhaHistorica), mas acrescentado novas valências, sendo todas as suas características de conceção respostas às particularidades da Ria de Aveiro e à atividade a que se destinava. O Barco Moliceiro representa, assim, uma “obra de arte naval local perfeita” (Lopes, 1997), de uma comunidade que num período da sua história teve de “inventar um novo tipo de embarcação” (Lopes, 1997) para desempenhar de forma mais eficaz uma atividade que se encontrava em franco crescimento e era fundamental para a prosperidade da população. Pensado de raiz para navegar na Ria, o Barco Moliceiro adota formas próprias (ex: fundo plano e pouco calado), que o permitem navegar pelas águas pouco profundas da laguna, sem correr o risco de encalhar, sendo-lhe suficiente cerca de um metro de água (Laranjeira, 1989; Lopes, 1997; Sarmento, 2008; Almeida, 2018). As características do Barco Moliceiro A Madeira O Barco Moliceiro é construído em madeira de pinho, espécie que é endógena e era abundante na região. “As propriedades desta madeira são adequadas para o fabrico do barco, porque se comporta bem num ambiente húmido” como destacou o Mestre Felisberto Amador na entrevista concedida. A construção de um Barco Moliceiro requer a utilização de dois tipos de pinheiro: o manso e o bravo. Enquanto o pinheiro manso é utilizado para as cavernas e os braços, o pinheiro-bravo é utilizado para o resto da embarcação. As Dimensões O Barco Moliceiro tem, normalmente, as seguintes dimensões: Comprimento: 14,50/15,00m; Boca: 2,50/2,60m; Pontal: 0,40/0,45m; Cavername: 21 cavernas (11 para a ré e 10 para a proa); Capacidade: 5 toneladas As componentes O Barco Moliceiro apresenta uma estrutura bastante característica para permitir a navegabilidade na Ria de Aveiro, assumindo um conjunto de componentes que o tornam “na mais bela e elegante embarcação de toda a Ria de Aveiro e talvez, até, de todo o Portugal” (Laranjeira, 1989, p 13). Destacam-se algumas das componentes mais importantes da estrutura do Barco Moliceiro. (Ver Doc4_Componentes-BarcoMoliceiro). Proa - O Barco Moliceiro destaca-se das demais embarcações da Ria de Aveiro pela sua proa “recurvada, elegantemente prolongada, dizendo para trás, num mostrar precioso – e gracioso – de um colo que muitos sugeriram ser inspirado no cisne, quando no voltar de cabeça, lança um olhar insolente para trás” (Fonseca, 2011, p.123). A proa mede entre quatro a cinco metros de comprimento por dois a três de altura. A proa é sempre coberta, e tem porta e chave, constituindo, assim, o castelo da proa, que serviu de dormitório para a tripulações que praticaram a apanha do moliço, como relembrou o Mestre José Rito. O ponto mais elevado da proa do moliceiro termina com uma peça recurvada que se designa pelo nome de bica. Os golfiões situam-se logo abaixo da bica, perto da base, e são duas peças de madeira diametralmente opostas, com as dimensões de vinte e dois centímetros de altura por seis de largura e oito de espessura, simultaneamente utilizados para a amarração da sirga, o descanso dos ancinhos e das varas no ancoradouro (Sarmento, 2008). Na proa ainda existem a Orelha e o Argolão. Ré - Também na ré se dá o nome de bica ao seu ponto mais elevado, neste caso bica da ré. No interior da ré encontra-se o cagarete, um pequeno compartimento fechado, onde nele se guardava o sal, o peixe ou a carne salgada, para consumo dos tripulantes (Dias, 1971). A entremesa da ré situa-se à frente do cagarete e consiste numa tampa amovível que serve de assento ao arrais, quando controla o barco, sendo também o local onde se guardava o barril da água. O paneiro da ré é um estrado móvel, sobre as cavernas, aos pés do arrais. (Dias, 1971; Lopes, 1997). Leme - “É notável que as suas linhas (do leme) estejam em perfeita sintonia e harmonia com as linhas do Moliceiro”. É desta forma que Senos da Fonseca (2011, p.145) se refere ao leme dos moliceiros. De acordo com o autor, o leme divide-se em: a porta ou pá do leme; a cabeça – que é atravessada pelo Xarolo; o macho; a chança; e a marca do construtor do barco, divisa única e pessoal que serve para identificar quem construiu o barco (Ver Doc6_Marcas-Mestres-Construtores). Cavernas - Um Barco Moliceiro conta com 21 cavernas, 11 para a ré e 10 para a proa, sobre as quais são fixadas as pranchas do fundo, tabuado de largura variável, com espessura de 0,02m. Traste - No centro da embarcação é colocado o traste. O traste tem um orifício com 20cm de diâmetro, denominado enora, através do qual passa o mastro. Nas cavernas abaixo do traste, entre a 10ª e a 11ª, é colocada a coicia no sentido proa-ré, com um buraco quadrangular onde encaixa o pé do mastro. Mastro - O mastro é uma vara grossa de pinho ou eucalipto, com 8m a 8,5m de altura e 0,17m de diâmetro na base e que sustenta a verga, onde pende a vela. O mastro atravessa, então, o traste, entrando na enora, encaixando a sua parte inferior na coicia. Na extremidade superior – a cachola – é inserido um rasgo retangular (roldana), no sentido bombordo-estibordo, por onde passa a ostaga. Vela - A movimentação do barco é conseguida por meio de uma vela larga trapezoidal de 24m2 (Lemos, 1933; Castro, 1943). Como refere Senos da Fonseca (2020) a vela do moliceiro é um trapézio em que os seus lados se designam do seguinte modo: a valume (parte posterior); a esteira (parte inferior); a testa (parte anterior); e a empena (parte superior, atada à verga). Segundo Luiz de Magalhães (1905), os materiais usados para elaborar a vela eram a lona francesa, o brim, a estopa e o treu; e são de cor branca, tendo sido, no passado, ornamentadas nas romarias fluviais. De acordo com Ana Maria Lopes (1997) esse costume já não se verifica sendo, contudo, costume ornamentar, nos dias festivos, a vela com bandeiras de várias nacionalidades (dos países onde os tripulantes estiveram emigrados). Tostes - A toste é um elemento determinante para a navegação à vela. A função da toste é criar uma componente anti-deriva que anule o caimento transversal. Essa componente, conjugada com o impulso gerado pela vela, cria a resultante que origina o avançar da embarcação (Fonseca, 2020). Trata-se de uma prancha trapezoidal constituída por tabuado de pinho com cerca de 2,30m de comprimento e largura que vai de 0,70m no topo, a 1,00m na borda inferior. Na parte de cima (cabeça do toste) são feitos dois orifícios para a passagem do cabo da toste que a enlaça no mastro. Utilizam-se duas tostes a cada mastro; uma levantada (a barlavento) enquanto a outra está metida na água (a sotavento) (Fonseca, 2020). Falcas - Para evitar a inundação, a tripulação aumenta a altura do bordo, com as falcas. As falcas são pranchas de madeira colocadas nos dois bordos do barco e presas desde a proa até à ré (Sarmento, 2008). A falca da ré é colocada desde a ré até meio da embarcação e tem um comprimento de 4,30m; a segunda falca – falca da proa - dá continuidade a esta e tem o comprimento de 3,05m, sendo depois colocada outra falca, o falquim, que fecha até à proa, sendo uma tábua ainda mais pequena com cerca de 1,15m (Castro, 1943; Laranjeira, 1989; Fonseca, 2020). Os métodos de propulsão do Barco Moliceiro “Andar à vela, andar à vara e andar à sirga” são estes os métodos de propulsão tradicionais do Barco Moliceiro (Castro, 1943). Domingos José de Castro, 1943, descreve-os da seguinte forma: “Andar à vara” é frequente quando se verificava a ausência de vento ou quando a embarcação navegava junto ao cais, motas e malhadas. Os moliceiros usam varas de pinho, de 4 a 6 metros; mergulham a vara, fincando-a no fundo da laguna e, encostando a outra extremidade ao seu peito, empurrando-a, em repetidas “caminhadas” desde a proa até próximo da ré; para esse efeito, o castelo da proa e os bordos vêm do estaleiro aparelhados com breu e serradura, oferecendo assim mais aderência e evitando o escorregamento (Castro, 1943). “Andar à sirga” é mais ocasional, verificando-se na passagem dos canais mais estreitos ou junto das margens da Ria, sempre que o moliceiro navega contra a maré ou contra o vento. Uma das extremidades da sirga (cabo de sisal ou esparto de 0,025 m de espessura) é amarrada aos golfiões e a outra leva-a o respetivo tripulante, que segue a pé pela margem. Outra forma de utilizar a sirga era prendendo-a numa das extremidades do xarolo, passando de seguida pelo moitão da bica da proa e sendo amarrada à extremidade do mesmo. Com este método, os dois tripulantes podiam manusear o leme, de qualquer local da embarcação, enquanto faziam outros trabalhos (Castro, 1943). “Andar à vela” é, contudo, o seu método de propulsão habitual. Para navegar o Moliceiro, os tripulantes utilizam o bolinão, uma corda ligada à própria vela com uma outra extremidade agarrada ao “moitão” da bica da proa. O “moitão” é uma roldana que permite controlar o esticamento da vela para que, quando bolinam, a embarcação ganhe barlavento. Em complemento deste cabo, costumam empregar a toste colocada no bordo do barco por sotavento, meio mergulhada e segura por cordas que, a partir de ambos os orifícios abertos na sua extremidade superior, vão enlaçar-se na parte inferior do mastro. Ficando deste modo meia mergulhada, exerce força e evita o descaimento da embarcação. Na vela, na parte inferior, encontra-se, ainda, a “escota” pequeno cabo destinado a dar maior ou menor superfície regularizando o andamento da embarcação (Castro, 1943; Laranjeira, 1989; Sarmento, 2008; Fonseca, 2011). Os painéis de moliceiros Nenhum Barco Moliceiro é considerado concluído sem a sua decoração estar pronta. “O mais lindo barco da Ria” – como é apelidado por António Rocha Madahil (1934) – é composto por várias áreas que são pintadas, mas são os seus 4 painéis (2 à proa e 2 à ré) que o tornam uma das mais belas embarcações a nível internacional, como afirma Claude Rivals (1988), que realça a importante harmonia conseguida entre as decorações e as funções da embarcação. Ana Maria Lopes (1997) acrescenta serem, os painéis de moliceiros, excelentes exemplos de pintura naïf, pela sua vibração cromática, pelos contornos bem marcados, pela ingenuidade, pela adaptação do desenho à superfície e pelo recurso a temas do quotidiano, completadas por legendas plenas de humor (Ver Doc7_Paineis-Tematicas). Para delimitar e realçar a importância da cena representada nos desenhos centrais dos painéis são utilizadas cercaduras (ou frisos, ou floreados), que servem, assim, de moldura. Na parte central do painel é onde o pintor faz o desenho. Este pode assumir diferentes temas (ex: religião, profissão, história, pátria, amor, entre outros) e é, quase sempre, fruto da imaginação do próprio pintor, sendo que o proprietário ou mestre não costuma intervir nesse processo. Os desenhos são sempre acompanhados por uma legenda – ou dizer - pintada numa faixa branca ou rosa, situada parte inferior do painel, entre o friso e o motivo principal (Lopes, 1997). “O desenho e a legenda são componentes que vivem em conjunto, e que se defendem um do outro. É aliando os dois que criamos a armadilha para quem está a observar o painel, e colocamos a malícia na cabeça deles próprios” (ATA8_Jose Oliveira). Os painéis de moliceiros usam quase sempre cores puras/primárias: o amarelo, o verde, o azul, o vermelho, o branco e o preto. Relativamente às tintas, no passado, foram utilizadas tintas em pó, sendo necessário misturar-lhes óleo, secante líquido e aguarrás. Contudo, desde a década de 70/80 são utilizadas as de esmalte. A construção do Barco Moliceiro “O barco transmite conhecimento através da sua estrutura, do seu processo construtivo, da sua função, da sua decoração e da capacidade criativa do seu criador. É resultado de um processo artesanal, feito com sabedoria e arte.” É desta forma que Etelvina Resende Almeida (2018, p.115) sistematiza a arte associada à construção do Barco Moliceiro, momento que combina o saber (apreendido e transmitido) à arte dos mestres construtores (aprimorada ao longo dos anos). De acordo com Domingos José de Castro (1943), a construção de barcos moliceiros é uma indústria que só existe nesta região, e é tão tradicional que se pode constatar a hereditariedade do seu saber. Efetivamente, este foi um conhecimento que durante várias décadas transitou dentro das próprias famílias, de pai para filho, tendo este fenómeno “criado” linhagens que se destacam na história dos moliceiros, como são os casos dos Lavoura, dos Raimundos, dos Tavares, dos Henrique de Miranda e dos Garridos. Atualmente, tal já não se verifica, uma vez os mestres em atividade já não são descendentes destas famílias, porém adquiriram o conhecimento junto de membros delas. Os Estaleiros Os estaleiros são, normalmente dispostos em armazéns bastante amplos, para permitir a construção dos barcos no interior dos mesmos, possuem o chão em terra batida (atualmente podem já estar cimentados) e têm um grande portão que permite a saída dos barcos (Lopes, 1997; Sarmento, 2008), no momento de o lançar à água – o bota-abaixo, como afirmou o Mestre António Esteves. Situavam-se, normalmente, em pontos afastados dos braços principais da Ria de Aveiro, perto das ribeiras ou no interior das povoações que circundam a laguna, uma vez que era (e ainda é) frequente que estes fossem construídos junto às casas de habitação dos próprios mestres construtores, como é o caso dos Mestres Arménio Almeida e Felisberto Amador. Esta característica foi registada por Luiz de Magalhães (1905, p.10) que escreveu “Ha talvez mais de cincoenta estaleiros espalhados pelas regiões que cicumdam a ria. (...) Um pormenor interessante é que a maior parte d'esses estaleiros está situada no interior das terras, e não na proximidade, da ria.” (Ver Doc5_Estaleiros-e-Ferramentas). O processo de construção (ver Doc1_ResenhaHistorica) A construção do Barco Moliceiro tem-se mantido muito semelhante à que foi originalmente praticada, algo que permitiu ao barco manter uma estrutura similar ao longo das décadas. Não obstante as adaptações, a experiência e o jeito que cada mestre faz e detém, o processo construtivo do Barco Moliceiro é muito semelhante entre todos. Abaixo descreve-se o processo transmitido pelos Mestres António Esteves, José Rito e Marco Silva e que se encontra, também, publicado em livro por Ana Maria Lopes (1997) e Senos da Fonseca (2011). (NOTA: Consoante o mestre e a sua experiência, alguns passos podem ser alternados). Para iniciar a construção, o mestre coloca no chão nove estacas no comprimento total do barco, que são niveladas da primeira da proa até à última na ré. Divide-se as distâncias das estacas, conforme a inclinação de fundo que pretende dar ao barco. Os topos das estacas não têm todos o mesmo nível. A primeira estaca tem o extremo levantado em relação ao nível do fundo, 0,50m; a segunda 0,12m e a terceira, 0,05m. A partir daí os seus topos são iguais, à exceção da última que levanta 0,02cm. Depois de colocadas e niveladas as estacas, é colocada a primeira tábua – tábua de quilha – que mede 15m de comprimento. Na tábua de quilha é feito um risco “de fora a fora”, com o auxílio do pau de pontos, que é a linha mestra, sendo com base nela que se vão assentar as tábuas das arestas (laterais do fundo), que vai dar o contorno lateral. Alinhado o fundo, e tendo como referência a linha mestra, com o auxílio do pau de pontos, são marcados os vãos (distância sempre igual do meio de uma caverna até ao meio de outra); o talão da proa (distância dos golfiões ao extremo dianteiro da roda da proa); e o talão da ré (distância do forcado da ré ao extremo da roda da ré). O talão da proa é de 0,85m para vante do forcado. A ré o talão é de 0,70m (Fonseca, 2011). Começa-se então a aplicar as cavernas do moliceiro (total 21 – 11 para a ré e 10 para a proa). Estas são colocadas com um vão de 0,60m, que alternarão com os braços das cavernas. Apenas posteriormente é que cada caverna será completada e alinhada com o respetivo braço. Nesta fase, o barco encontra-se seguro por escoras que vão manter e nivelar o fundo. Até este passo, o mestre só recorre a pregos zincados, para pregar as cavernas. Mais tarde, estas serão fixadas com cavilhas de madeira. A forma das cavernas é conseguida através dos moldes. Estas têm, normalmente, três orifícios, na parte inferior, denominados de bueiros que permite a passagem de água no interior do barco. Depois de aplicado o cavername, são colocadas as rodas da proa e da ré (Lopes, 1997) e começa-se a trabalhar o costado do barco. A tábua de verdejar (a superior) é a primeira a ser aplicada (Fonseca, 2011), sendo pregada de fora a fora, com pregos zincados e cavilhas da madeira. Tendo completada a sua aplicação, o mestre aplica os braços das cavernas, completando-as de um e de outro lado. O mestre trabalha, agora, a proa do barco, onde as tábuas superiores à de verdejar têm o nome de tábuas de foliar, foliamentos ou foliado. Sobre este, e a partir dos golfiões, é sobreposta a ponta da proa, que termina a cinta ou bordo. Após “afagada”, a proa encontra-se quase pronta para o serviço de pintura. É executado o mesmo procedimento à ré, onde são aplicados os foliamentos da ré. Sobre a tábua de verdejar, aplica-se exteriormente, com a madeira verde, a cinta (0,11mx0,22m) e, interiormente, a draga (0,13mx0,22m), que vai da primeira à última caverna e que circunda toda a embarcação na sua linha superior. Estas são colocadas através de pregos de zinco e cavilhas de madeira e são mantidas durante alguns dias por grampos, que fazem o aperto necessário. No centro do barco, e na parte onde é exercida maior força pela embarcação, aplica-se o traste, uma tábua resistente articulada com dobradiças de cerca de 0,08m, que é fixada sobre a draga, de bordo a bordo. Nas cavernas que se situam abaixo (entre a 10º e a 11ª caverna) é colocada a coicia com o encaixe quadrangular – a pia - (0,10m x 0,10m) para enfiar o pé do mastro que irá aqui ser colocado, atravessando o traste por uma passagem de cerca de 0,20m de diâmetro, denominada de enora O mestre prossegue o trabalho de cobertura da proa, que é apoiada em sete arcos (barrotes), para lhes dar força, um em cada caverna. Ao maior e exterior, dão-lhe o nome de barrote, batente ou vertente da proa ou do castelo da proa, e é construído com base num molde. O mestre fixa-o na 5ª caverna a contar da proa, forrando a antepara onde se insere a portinhola. Segue-se a colocação do tabuado que cobre a bica da proa. Primeiro é colocada uma tábua central de linhas em esquadria e, depois, lateralmente as beiradas que exteriormente têm a forma do bordo. São, uma e outra, pregada sobre os sete barrotes interiores. Apenas após serem tratadas com protetor é que é preenchido o espaço entre elas e, dessa forma, se fecha a cobertura da proa. Na ré, o mestre coloca as anteparas da entremesa e do cagarete, cobrindo-as com painéis amovíveis, para poder dispor do espaço. É também utilizado o molde da porta do leme para ajudar a posicionar as fêmeas na roda da ré, onde serão encaixados os espigões (machos) do leme, na sua aplicação. Na cabeça do leme é inserido o xarolo, onde serão fixadas as cordas do leme. Nesta fase o barco encontra-se quase concluído, dedicando-se à realização de emendas nos bordos e ajustando aspetos que lhe parecem merecer melhoramento. Após terminar essa tarefa, o mestre começa a riscar exteriormente a tábua de fechar (o costado). Só depois de riscada é que a tábua será serrada e depois apontada. O barco é, então, voltado (carenado) no estaleiro e colocado sobre um dos costados, deixando o fundo à vista para se aplicar as tábuas de fecho (uma a bombordo e outra a estibordo), que faltam para a conclusão do fundo. Depois de tudo pregado, procede-se ao encavilhamento de todo o tabuado do fundo. A aplicação é feita contrafiado, não no mesmo endireito, mas fugindo umas das outras, para não rachar a madeira (Lopes, 1997). Existem 3 tamanhos de cavilhas, de acordo com o local onde serão aplicadas: as mais pequenas são utilizadas no fundo e no costado, sem cunha; as intermédias abraçam, de fora para dentro, o bordo, a tábua de verdejar e a caverna; e as maiores são usadas para abraçar, de dentro para fora, a draga, a caverna, a tábua de verdejar e o bordo. As cavilhas são feitas utilizando uma coladeira (base) e um podão, que vai moldando, terminando todas com um leve facetado na ponta. São colocadas a machado para atracarem bem e não saírem. As médias e as maiores são, depois, batidas com uma cunha que as fixa definitivamente. Colocada a embarcação de novo à posição normal, o mestre dedica-se aos acabamentos, lixando, afagando e aparelhando os costados; colocando os paneiros que irão cobrir o fundo; construindo e colocando as painas da proa; colocando a orelha; construindo as falcas e as pernas que as trilharão entre a cinta e draga; construindo o mastro, entre outras tarefas necessárias à finalização da construção. Tendo isto concluído passa-se à calafetagem do barco, processo que permite vedar as juntas do barco e impedir a entrada da água. Esta é feita com estopa, o ferro e o maço de calafetar. Segue-se a aplicação do breu fino ou pez louro, para os costados e do breu preto para os bordos, cobertura da proa, cavernas, traste e tostes. O breu em pedra é misturado com óleo (ex: de peixe), fervendo-o numa panela de três pés, para que este passe ao estado líquido (mas não completamente). É aplicada uma primeira camada nas “costuras” da cobertura da proa que necessitam de uma boa vedação e nos bordos. Para isso, o mestre utiliza um escopeiro, um cabo de madeira que numa extremidade tem pele de carneiro/ovelha, fixado por pregos, sendo esta que é passada no barco. Numa segunda camada, e após a aplicação do breu negro, vai-se espalhando sarrim, que facilita o caminhar sobre o barco, evitando que as tripulações escorreguem durante a navegação. O barco está, agora, pronto para o trabalho de pintura. Uma das características mais simbólicas do Barco Moliceiro é marca do construtor (sino-saimão ou signo-salomão) que é colocada, desenhada, em ambos os lados do leme da embarcação, acima da chança, como forma de assinalar as suas obras. Cada mestre adota uma marca original para identificar os seus barcos, sendo, por vezes, frequente que estas tenham parecenças com as dos mestres com que estes aprenderam a arte. Ainda assim, nessas situações, é sempre acrescentado um novo elemento para tornar essa marca original e facilmente identificada por quem circula na Ria. A decoração dos moliceiros “Para estas decorações não existem moldes; a ocasião é que as inspira e determina, a prática faz o resto.” (Castro, 1943, p.244) No início, os pintores não tinham conhecimentos artísticos e não se dedicavam exclusivamente a esta arte, tendo outras profissões (Almeida, 2021). Esta atividade podia ser desempenhada por artistas locais, com jeito para a pintura, que eram chamados pelos mestres construtores para esta tarefa, sendo também muito frequente que a pintura dos painéis fosse feita pelo próprio mestre, quando este tinha o referido jeito para o desenho, dedicando-se a ela, no final da construção do barco. António Tavares de Almeida – Soeco Velho, Zé da Lota, Avelino Marcela, Jacinto Lavadeiro e José de Oliveira são nomes de pintores que marcaram a história da decoração de moliceiros. José de Oliveira é o “mais famoso, prolífero e inovador pintor de moliceiros da atualidade” (Almeida, 2021, p.63), tendo começado a pintar painéis de moliceiros em 1989. Na entrevista realizada com o pintor, este referiu a sua técnica e processo criativo, da seguinte forma sequencial, algo que já se encontra registado também no seu livro “30 anos a pintar a Ria”, publicado pela Câmara Municipal da Murtosa, em 2019: 1 - Processo criativo dos painéis - A criação e o desenho do painel é realizada no seu atelier com base na consulta de imagens, aliadas à sua grande criatividade. Os desenhos também poderão ser sugeridos pelo proprietário, mas tal não é muito frequente. No seu caso, a legenda/piada do painel surge antes do desenho. 2 - Traçado das linhas mestras - O desenho e a pintura dos painéis será efetuada sobre as áreas deixadas em branco, pelo mestre construtor, 2 à proa e 2 à ré. Sobre a área branca são marcadas as linhas mestras da construção do painel, delimitando as áreas do desenho da cena central do das cercaduras. São linhas orientadoras que definem a composição do painel, traçadas sobre um fundo branco com o auxílio de uma régua, o virote, e de um compasso. Essa régua está marcada pelo artista com incisões e anotações orientadoras. 3 - Cálculo da área para o desenho central - É utilizado o papel vegetal para registar a área disponível. O pintor efetua esta tarefa, para orientar o desenho, uma vez que os painéis da proa e da ré apresentam dimensões e proporções diferentes, por acompanharem a forma da embarcação, exigindo um projeto da área de desenho diferente. 4 – Desenho dos motivos florais - Passagem através de decalque, ou usando papel vegetal, dos motivos florais desenhados pelo artista, para as áreas das cercaduras dos painéis e de outras zonas a decorar, com ajustes a mão livre. 5- Traçado de desenhos geométricos - O pintor efetua, agora, o traçado dos desenhos geométricos, realizando-o com o auxílio do compasso, no vertente, à proa. A meio da embarcação, no traste, local onde encaixa o mastro, também é pintado com um friso com motivos geométricos. Na bica da proa, com o auxílio do compasso, o pintor desenha a cercadura e os motivos florais. 6 - Pintura das cercaduras - O pintor inicia, depois, a pintura das cercaduras, utilizando a tinta de esmalte (que é também utilizada para toda a decoração da embarcação). A pintura das cercaduras são efetuadas antes da pintura do motivo central do painel. O contorno do painel da proa e da ré, que termina na Bica, é decorado com motivos florais ou geométricos. São pintados com 3 ou 4 cores fortes e contrastantes. Cada painel tem uma cercadura composta por mais do que um motivo pictórico floral ou geométrico, gerando um rendilhado colorido e harmonioso, com efeito decorativo muito atrativo, que são delimitadas por um caixilho, um traçado de linhas verticais e horizontais, frisos coloridos, contrastantes. 7 - Passagem do desenho para o pincel - Desenhadas as cercaduras, o pintor passa para o desenho da cena do painel, que é realizado previamente sobre papel vegetal, sendo posteriormente passado antes de decalque, ou a mão livre para a área que lhe é destinada. O mestre faz também esse desenho das outras áreas do barco que são decoradas, como os golfiões (que têm quase sempre um homem e uma mulher de costas voltadas), e o vaso/ramo de flores que é pintado na base da bica da proa, acima dos golfiões. É aqui que este pintor assina a sua obra. 8 - Pintura dos motivos decorativos - Concluído o desenho o pintor, pinta os motivos florais no painel da entremesa e forcados, à ré; na área da porta da proa e anteparas; costado da embarcação e da marca do construtor que será colocada no leme. 9 – Pintura dos desenhos das cenas dos 4 painéis - É, agora, o momento do pintor se dedicar à pintura dos painéis do Barco Moliceiro. 10 – Sombrear - Antes de concluir, o pintor faz o contorno de todos os desenhos decorativos e dos painéis da embarcação, a preto, usando um pincel com bico fininho chamado bico de pardal. 11 - Pintura das legendas nos painéis - O pintor, desenha a legenda dos 4 painéis. José Oliveira utiliza um friso rosa e letras maiúsculas a preto. O dizer aparece sempre entre aspas. 12 - Nome e matrícula - Os últimos trabalhos, são normalmente, o desenho e a pintura da matrícula (pintado à proa ao lado do painel) e o nome do barco. O pintor utiliza, para estes desenhos, moldes metálicos, com medidas padronizadas, a que dão o nome de “alfabeto”. Os Bota-Abaixo Uma vez concluída a construção e decoração do Barco Moliceiro, é o momento da sua primeira apoteose – o bota-abaixo, nome dado, na região, ao processo de transporte do barco desde o estaleiro até à Ria de Aveiro e à sua cerimónia de batismo de água. Nenhum moliceiro é lançado à água sem este momento. Mais do que um simples lançamento à água, o bota-abaixo dos moliceiros representava (e ainda representa hoje em dia) um momento importante para a região, uma vez que simboliza um dia de festa, dado que, no final de cada lançamento o dono do barco oferece comida e bebida (vinho) a todos os que ajudam na tarefa. Adaptações construtivas do Barco Moliceiro para a atividade turística Com o desenvolvimento da atividade turística a partir do início dos anos 2000 registou-se um crescimento do número de embarcações existentes - depois da diminuição de barcos moliceiros verificada partir dos anos 50 (ver Doc1_ResenhaHistorica, pág.45) – tendo levado a alguns ajustes e a adaptações construtivas em prol da segurança dos turistas, por um lado, e para permitir a navegação nos canais urbanos da Ria de Aveiro, por outro. Importa, contudo, referir que todo o processo e método de construção de carpintaria naval do Barco Moliceiro, dinamizado pelos Mestres, se mantém fiel aos padrões originais, havendo apenas algumas alterações a nível de estrutura e tamanho, a saber: • Mastro – o mastro que sustenta a verga, onde prende a vela foi “retirado” para possibilitar a circulação das embarcações que navegam nos canais urbanos da Ria. • Falcas – as falcas, pranchas que se ligam, entre si, por justaposição e que se colocam no bordo do barco, são atualmente fixas para permitir que a embarcação tenha mais altura e por consequente maior segurança para os turistas. No passado eram amovíveis. • Assentos – para uma maior comodidade dos turistas durante os passeios foram introduzidos assentos em volta da embarcação. • Cavername – todas as cavernas são niveladas por forma a que o chão seja mais estável para a circulação de pessoas. • Método de propulsão - Andar à vela, andar à vara e andar à sirga deixaram de ser os métodos de propulsão do Barco Moliceiro mais utilizados na navegação, sobretudo, nos canais urbanos, tendo sido introduzido o motor como alternativa. • Tamanho da embarcação – de forma a servir o propósito para a atividade turística as construções são, por vezes, ligeiramente mais compridas e mais largas, ultrapassado os tradicionais 15m de comprimento de 2,50/2,60m de boca. De forma geral, e pese embora estas alterações, o Barco Moliceiro mantém uma estrutura muito similar à original, quer ao nível construtivo, quer decorativo.
  • Manifestações associadas:
    Ao longo dos anos, o Barco Moliceiro foi sendo descrito por várias figuras como um dos principais símbolos da região, tornando-se figura na história, destacando-se pelos seus traços, pela sua construção, pelos seus painéis decorativos (Almeida, 2018), que o tornam numa embarcação única, e “emblema da cultura da Ria de Aveiro, da qual se tornou símbolo e reflexo” (Sarmento, 2008). Símbolo identitário da região, o Barco Moliceiro rapidamente se tornou presença assídua nas festividades que eram organizadas na Região de Aveiro. Nos dias de festa, o barco era decorado de forma especial, sendo enfeitado com velas e bandeiras defraldadas, como registou Jaime Vilar (1990), levando também à proa ramos de flores campestres (Lopes, 1997). José Rendeiro, antigo moliceiro de profissão, recorda estes dias santos e de festa como momentos importantes para “esquecer a vida dura do trabalho”. Relembra, ainda, a emoção que era quando chegavam esses dias e se preparavam para ir à “festa”. Romaria de São Paio da Torreira – Das várias festividades com que o Barco Moliceiro se relacionou, a Romaria de São Paio da Torreira foi, e ainda é, aquela com que essa proximidade afetiva se manteve mais próxima. O programa da festa contém sempre atividades relacionadas com o Barco Moliceiro, como são exemplo, as regatas de moliceiros e os concursos de painéis de moliceiros. Regatas de Moliceiros na Ria de Aveiro – As regatas de moliceiros tradicionais, decorrem desde o início do século XX, representando sempre momentos importantes do calendário anual para as pessoas da ria, para os aficionados e – cada vez mais – para os turistas e curiosos. Atualmente, realizam-se na Ria de Aveiro três regatas ao longo do ano: - A regata da Ria de Aveiro Weekend – organizada pela Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro. Esta decorre no início de julho, tendo início na Torreira e final na cidade de Aveiro. - A regata da Festa do Emigrante – organizada pelo Município da Murtosa. Decorre no mês de agosto, no cais do Bico, no âmbito das Festas do Emigrante. - A regata do São Paio da Torreira - organizada pelo Município da Murtosa. Decorre no mês de setembro, no âmbito das festas do São Paio da Torreira. Concursos de painéis de moliceiros – Realizam-se na Região de Aveiro desde os anos 50 do século XX, com o objetivo de enaltecer o génio dos artistas locais que trabalham no Barco Moliceiro. Atualmente, realizam-se dois concursos anuais, um no âmbito da regata da Ria de Aveiro Weekend, que decorre em julho, e outro no âmbito da regata do São Paio da Torreira, que decorre no mês de setembro. Nestes concursos, é selecionado um júri composto por elementos da região, conhecedores desta tradição. O júri avalia a qualidade e a simbologia/humor associado, pontuando cada painel. As avaliações dos vários membros do júri são depois somadas para decidir os vencedores do concurso. Apanha do Moliço – Embora esta já não seja uma atividade praticada na Ria de Aveiro, a sua história e tradição ainda se encontra bastante presente na cultura local, mantida e preservada pelos antigos moliceiros e pelos grupos etnográficos que enaltecem este passado. De forma regular são promovidos, na região, recriações destes tempos em que são revisitadas as tradições que, no passado, foram determinantes para a sobrevivência da população. Além das manifestações acima mencionadas, importa referir que a influência do Barco Moliceiro na cultura popular regional é uma realidade verificada, sendo este inspiração e mote para a criação de lendas (Lenda do Barco Moliceiro da Ria de Aveiro), referências literárias (ex: Raúl Brandão, José Saramago, Miguel Torga, Eugénio Beirão), músicas (Fado Moliceiro de Carlos do Carmo; Canção do Moliceiro de Fernando Correia), artesanato, quadros, esculturas entre outros. A sua presença no imaginário cultural está, por isso, bastante marcada na região, constatando-se a presença de várias evidências dessa afirmação (Ver Doc2_Influencia-BarcoMoliceiro-CulturaPopular).
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: A transmissão da Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro associada ao Barco Moliceiro é um processo que tem sido assegurado ao longo das décadas de forma, maioritariamente, oral, sendo o conhecimento passado entre mestres e aprendizes (muitas vezes pai e filho), nos estaleiros da Região. No passado, os estaleiros representaram importantes escolas, onde os mais jovens aprendiam a Arte junto dos Mestres de referência. O Mestre Arménio Almeida recorda que no início, aos mais novos lhes era incumbida a tarefa de “fazer cavilhas”, um trabalho simples e que servia para ver se os “moços tinham jeito para a Arte”. Só mais tarde, é que os mais jovens assumiam tarefas de maior responsabilidade. O Mestre António Esteves, que já deu aulas de carpintaria naval, refere que, no passado, os mais jovens, para aprender a Arte iam acompanhando os mestres durante a construção, observando diretamente o que eles faziam e perguntando-lhes como fazer. Na sua opinião, este processo de observação é essencial para compreender e aprender melhor. O Mestre António Esteves acrescenta, contudo, que tão importante como observar é colocar em prática o conhecimento, só “com a prática e a experiência se melhora”, pelo que gradualmente os aprendizes vão sendo introduzidos às tarefas, evoluindo das mais simples às mais complexas. Atualmente, a transmissão do saber-fazer acontece essencialmente nos estaleiros, contudo a procura para aprender a Arte é muito reduzida. Na região há também exemplos de cursos profissionais que vão sendo, pontualmente, promovidos com o objetivo de colocar em contacto os mestres da região com os mais jovens e assegurar a transmissão do conhecimento. Segundo os mestres em atividade, o facto de esta ser uma atividade profissional “dura” afasta muitos jovens, que preferem procurar ocupações alternativas. Acrescentam, ainda, que o facto de o trabalho estar dependente das encomendas ou pedidos de amanhações (e estas não são em grande volume), torna economicamente difícil aos jovens dedicarem-se a tempo inteiro a ela, ou aos mestres garantirem emprego durante todo o ano, a um potencial ajudante/aprendiz. Além da transmissão oral, as técnicas e os processos de construção e pintura de barcos moliceiros têm vindo a ser alvo de registo bibliográfico, existindo várias obras de referência que, do ponto de vista teórico, detalham e promovem a partilha deste conhecimento, que se encontra nos Mestres e Pintores da Região. Os livros “Moliceiros: Memória da Ria” de Ana Maria Lopes, “Embarcações que tiveram berço na laguna: arquitectura naval lagunar” de Senos da Fonseca e “Memórias - 30 anos a Pintar a Ria” de José de Oliveira são três bons exemplos. São igualmente importantes, para a preservação e transmissão do conhecimento, os projetos que são desenvolvidos para os processos de licenciamento e aprovação da construção e que detalham de forma precisa todas as características construtivas do Barco Moliceiro. Neste processo de transmissão do saber-fazer, representam um papel importante, também, todas as entrevistas e documentários registados em vídeo, em que os mestres e pintores da região participaram - e participam - com bastante frequência, e em que partilham o seu conhecimento e as técnicas de construção e decoração do Barco Moliceiro.
    Data: 2021
    Modo de transmissão oral e escrita
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Mestres construtores e Mestre Pintor
  • Origem / Historial:
    A Apanha do Moliço Sobretudo a partir dos séculos XVIII/XIX verificou-se na Região de Aveiro uma maior dinâmica associada à prática da apanha do moliço. Como os solos à beira da ria eram arenosos, havia uma grande necessidade de os fertilizar para que fossem produtivos para a agricultura, e era preciso matéria orgânica (Dias, 2021). Uma vez verificada a riqueza do moliço e o seu valor para a fertilização dos terrenos, a comunidade agrícola começou a recolhê-lo e a utilizá-lo nas suas terras (Lemos, 1933; Rocha e Cunha, 1939; Lopes, 1997; Sarmento, 2008). Como refere Domingos José de Castro (1943, p.75) “a apanha do moliço foi primitivamente exercida pelos Agricultores. Manteve-se assim por largo tempo, até que a expansão agrícola, exigindo maior produção a tornou autónoma. Criou-se deste modo a profissão de moliceiro, fornecedor do Agricultor”. Pode-se situar a criação e consolidação da profissão de moliceiro nos princípios do século XIX, momento em que é conhecido o primeiro decreto, emitido pelo poder central, que reconhece rendimento suficiente a esta indústria para sobre ela lançar “o imposto de 40 réis aos barcos maiores carregados com moliço e 20 réis aos barcos menores” (Rezende, 1944 in Lopes, 1997, p.157). Em 1888, Francisco Regalla (1888) avançou que a atividade empregaria 2.542 indivíduos, em 1.342 embarcações registadas (Sarmento, 2008). Até meados dos anos 1960’s a atividade da apanha do moliço representou uma das principais fontes de riqueza e emprego das famílias da região. Por volta dos anos 1970 a apanha do moliço começou a ser abandonada – hoje já não se pratica -, tendo-se, para isso, conjugado um conjunto de variáveis que tornaram esta atividade menos atrativa e dinâmica. Jaime Vilar, em 1983 avança que essa quebra se deveu a diversos fatores, tais como: o aparecimento dos químicos para fertilizar a terra, a um preço mais acessível; a dureza do trabalho da apanha do moliço, associada à má remuneração que o levou as pessoas a optarem por outras atividades fora do setor primário; o grande fluxo migratório que se registou na região, nesse período, e que fez com que muita mão-de-obra abandonasse a faina do moliço; aos pesados encargos tributários sobre a atividade; e à escassez do moliço, fruto das alterações das marés. Barco Moliceiro: A sua criação e evolução até hoje Para a apanha do moliço, a população utilizou inicialmente as embarcações que possuíam, mas rapidamente compreenderam que necessitavam de uma nova que lhes facilitasse o trabalho que, por si, já era bastante árduo. Com base na experiência e no conhecimento que existiam na Região de Aveiro quanto à construção naval, os mestres desenvolveram uma nova embarcação, inspirada noutros “entes navegáveis” (Almeida, 2018), a que lhe atribuíram o nome de “moliceiro”, dando-lhe assim o nome da atividade à qual era destinada (Dias, 2021). O Barco Moliceiro foi, então, uma das principais alfaias para execução da profissão e com o aumento do número de pessoas empregadas na apanha do moliço, também o número de barcos moliceiros a construir e a circular na Ria de Aveiro aumentou. Em 1888, Fonseca Regalla, afirmava que existiam na Ria de Aveiro, 1.342 barcos moliceiros. Este número manteve-se similar até ao início dos anos 30, tal como Agostinho Simões Lopes (1968) comprova na sua investigação, reportando a existência de 1.356 barcos em 1925. O autor retrata, porém, o início da diminuição de barcos moliceiros a partir dos anos 40/50. Em 1955, existiriam 827 barcos na Ria e em 1964, 613 barcos. Eduardo Lamy Laranjeira (1989) indica a existência de 30 barcos em 1975 e de 2 barcos em 1984. No final dos anos 80, fruto de um subsídio atribuído pela Junta Autónoma do Porto de Aveiro e das Câmaras Municipais, para tentar revitalizar a apanha do moliço, verificou-se um crescimento de barcos moliceiros para aproximadamente uma dezena (Sarmento, 2008). Contudo, após o cancelamento deste subsídio, a apanha do moliço foi, novamente, abandonada, tendo o número de barcos moliceiros existentes, verificado um novo decréscimo, existindo apenas 2, em 1998, de acordo com Senos da Fonseca (2011). A partir do início dos anos 2000, o Barco Moliceiro vê um novo crescimento do número de embarcações existentes, desta feita através da atividade turística, adaptando-se, assim, a uma nova realidade socioeconómica, que permitiu dar-lhe uma nova interpretação que evitou a sua perda (Sarmento, 2008; Almeida, 2018; Dias, 2021). No final dos anos 2010’s, existiam cerca de três dezenas barcos moliceiros, contudo alguns já apresentam adaptações construtivas, necessárias para a segurança dos turistas, que os distanciam, em alguns pontos, da traça original da embarcação tradicional, que navega à vela na “ria aberta” e que participa nas regatas (Lopes, 1997; Almeida, 2021). Moliceiro como símbolo cultural e atração turística da região Ao longo dos anos, o Barco Moliceiro foi sendo descrito por várias figuras (políticos, escritores, artistas, entre outros) como um dos principais símbolos da região, tornando-se figura na história, destacando-se pelos seus traços, pela sua construção, pelos seus painéis decorativos (Almeida, 2018), que o tornam numa embarcação única, e “emblema da cultura da Ria de Aveiro, da qual se tornou símbolo e reflexo” (Sarmento, 2008). Nos anos 1950’s o Serviço Nacional de Informação (SNI) já se encontrava atento ao seu valor cultural, tendo solicitado à Comissão Municipal de Turismo de Aveiro a recolha de uma proa de Barco Moliceiro, para representar a região numa exposição a realizar-se em Genebra, em 1953 (Sarmento, 2008). Em 1961, a Comissão Municipal de Turismo de Aveiro, procede à aquisição de um Barco Moliceiro, com todos os seus apetrechos, com o objetivo de se manter fundeado no Canal Central da Ria e eventual transporte de turistas. De acordo com um registo consultado por Clara Sarmento (2008) esta aquisição era justificada pela Comissão da seguinte forma: “Constitui este tipo de embarcação um dos mais fortes motivos de interesse turístico da nossa região. Porém, torna-se muitas vezes difícil aos turistas que nos visitam encontrá-los, porquanto, na sua faina, por vezes trabalham muito longe de Aveiro e em local de difícil acesso. Por isso, pensou esta Comissão adquirir um barco daquele tipo, que ficará em exposição permanente, no Canal Central. Eventualmente, poderá ser utilizado também em excursões”. De acordo com Clara Sarmento (2008) este terá sido um dos primeiros movimentos da transição do Barco Moliceiro de objeto etnográfico do setor primário para o setor terciário, movimento que esteve na origem do processo de recuperação, conservação e promoção do moliceiro, enquanto património e símbolo. Vários autores reconhecem que a adaptação do Barco Moliceiro para as atividades turísticas foi crucial para ele tenha chegado aos nossos dias. Este foi um processo consolidado ao longo de várias décadas, tendo-se tornado mais efetivo no final da década de 90, quando se iniciou, formalmente, a dinamização de passeios turísticos em barcos moliceiros. Foi, contudo, após os anos 2000’s que se verificou um grande crescimento do número de turistas e, consequentemente, o aumento do número de operadores marítimo-turísticos a comercializar estes passeios. Dados recentes pré-pandemia de COVID-19, reportavam que cerca de 1 milhão de pessoas, por ano, efetuavam passeios de Barco Moliceiro e que esta dinâmica económica era responsável, de forma direta, por mais de 150 empregos. Os Mestres construtores que marcaram a História A arte da carpintaria naval da Região de Aveiro foi nos séculos XIX e, sobretudo, XX uma referência nacional e, mesmo, internacional, fruto do mérito artístico dos mestres construtores e da abundância de mão de obra afeta a esta atividade. A fama da região nesta área foi tão grande que, em março de 1935, se fixou em Pardilhó, Estarreja, a Delegação Distrital do Sindicato Nacional dos Operários da Construção Naval (Almeida, 2018), mantendo-se aí até 1975. De acordo com Domingos José de Castro (1943), a construção de barcos moliceiros é uma indústria que só existe nesta região, e é tão tradicional que se pode constatar a hereditariedade do seu saber. Ao longo das décadas foram várias as famílias que se destacaram na arte da construção de moliceiros. Entre as mais reconhecidas surgem os Ferreiras da Costa (de alcunha “Lavouras”), os Henriques (com alcunha de “Raimundos”), os Tavares, os Henrique de Miranda e os Garridos. Os Lavouras e a “Escola Lavoura” Os Lavouras são Henrique Ferreira da Costa e o seu pai José Ferreira da Costa – José Lavoura (do pai conhecem-se 8 registos de barcos moliceiros entre 1936 e 1959) (Sarmento, 2008). Foi, porém, o filho, o Mestre Henrique Ferreira da Costa (1930-2011), conhecido como Mestre Lavoura, que se tornou uma das principais referências na arte da carpintaria naval da região. No seu estaleiro, situado em Pardilhó, e que esteve em atividade entre 1955 e 1985, foram construídos cerca de 52 barcos moliceiros, além várias outras embarcações tradicionais da Região de Aveiro. O estaleiro representou também uma importante escola para aprendizes da arte. O termo “Escola Lavoura” é, hoje, alocado à dinâmica de partilha de conhecimento e ensinamento que o estaleiro do Mestre Lavoura viveu durante várias décadas. Os Raimundos Eram naturais da Murtosa, tendo-se dedicado a esta atividade ainda no século XIX, sendo dos principais responsáveis pela construção dos barcos que, então, populavam a ria na apanha do moliço. O nome maior desta família foi Joaquim Maria Henriques Júnior – Mestre Raimundo (1909 – 2005), o último de uma geração de artistas. Ana Maria Lopes (1997) avança que o Mestre Ti Raimundo foi responsável pela construção de 155 barcos moliceiros, entre 1933 – 1959, de acordo com o livro de registos. Nesta família, destacam-se, ainda, o seu bisavô – Mestre Agostinho Raimundo; o seu avô – Mestre José Luís Henriques; o seu pai – Mestre Joaquim Maria da Silva Henriques (21 moliceiros entre 1915-1945); os seus três tios – Mestre Américo Raimundo, Mestre José Maria Henriques e Mestre Júlio Raimundo; e o seu irmão Israel Raimundo (6 barcos moliceiros entre 1955-1960) (Lopes, 1997). Nos anos 90, o Mestre Manuel Raimundo (1923-2011) destacou-se construindo 3 moliceiros (1988, 1990 e 1998) tendo sido importante na transmissão do saber para outros mestres. Os Henrique de Miranda Os Henrique de Miranda, residentes em Monte, Murtosa são um dos ramos da família Henriques, que não partilha a alcunha de “Raimundo”, mas que foi uma das mais importantes famílias de construtores navais da região (Sarmento, 2008). O Mestre Ti Preguiça – José Agostinho Henriques de Miranda (1910-1996) foi um dos nomes maiores desta arte e terá registado cerca de 30 barcos moliceiros entre 1941 e 1962. O seu pai, Manuel José Henriques de Miranda, terá registado a construção de 4 moliceiros entre 1922 e 1935 (período onde se verifica lacunas nos livros de registos) (Sarmento, 2008). Na família, também se dedicou à arte da construção naval de moliceiros o seu avô – Mestre Agostinho José Henriques; e os primos do seu pai – Mestre Manuel Luís Preguiça e Mestre João Pedro Henriques (Lopes, 1997). Os Tavares Esta foi outra das principais famílias de mestres construtores de moliceiros, situando-se o seu estaleiro em Pardilhó. O Mestre Agostinho Tavares (1922-1996) terá construído cerca de 57 moliceiros entre 1960 e 1994, período em que os registos disponíveis na Capitania se encontram completos (Sarmento, 2008). O seu pai Mestre Firmino Tavares terá construído 20 moliceiros entre 1915 e 1959 (contudo, período com lacunas nos livros de registos). O seu irmão mais velho – Mestre Manuel Silva Tavares, terá construído 40 moliceiros entre 1943 e 1966. Desta família existe também registo de 3 moliceiros construídos pelo Mestre Francisco Tavares da Silva, entre 1915 e 1923, irmão do Mestre Firmino Tavares (Sarmento, 2008). Os Garridos Desta família, natural de Salreu, destacam-se os irmãos Mestre Luciano Rodrigues Garrido (1897-1962) e Mestre Manuel Maria Rodrigues Garrido. O primeiro - Mestre Luciano Garrido – possui registo de 20 moliceiros construídos por si, no período entre 1927 e 1961. O segundo – Mestre Manuel Maria Garrido – deixou um registo de 15 moliceiros, construídos entre 1955 e 1968 (Sarmento, 2008). Ambos foram, além de construtores, proprietários de barcos moliceiros, existindo registos que comprovam terem empregado moliceiros profissionais ao seu serviço (Sarmento, 2008). Atualmente, encontram-se em atividade, de forma regular, cinco mestres construtores: António Esteves, Arménio Almeida e Felisberto com estaleiros em Pardilhó, e José Rito e Marco Silva com estaleiros na Torreira. A pintura dos moliceiros A pintura de moliceiros terá surgido mais tarde na história do Barco Moliceiro, provavelmente no final do século XIX, como forma de o embelezar e diferenciar das demais embarcações da Ria de Aveiro, espelhando o seu pensamento e forma de ver/viver a vida dos proprietários. Um dos primeiros registos que refere as decorações do Barco Moliceiro foi escrito por Teófilo Braga, em 1885, publicando em O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, uma passagem que reproduzia originalmente o conteúdo escrito por Carlos Faria entre 1882 – 1884: “Na ria de Aveiro, usam-se os barcos moliceiros, construções obesas, de proa e ré contraídas e que servem para o transporte das algas impropriamente chamadas moliço (...) estes barcos aparecem por centenas na sua feira (25 de Março) sarapintados na popa e proa com pessoas reais e animais disformes”. Em 1896, o Barão de Cadoro e o engenheiro Melo de Matos, reforçaram esta característica dos barcos moliceiros: “(...) exemplares das pinturas ornamentais dos barcos moliceiros (...) documentos iconográficos estampados nas proas dos barcos moliceiros, que sulcam estas extensas águas, fixando as formas, talvez em breve perdidas, das embarcações” (Madahil, 1947, p.19 in Sarmento, 2008) Já no início do século XX, em 1905, Luiz de Magalhães, na sua obra “Os Barcos da Ria de Aveiro” (p.15) escreveu: “As prôas e rés dos moliceiros são tambem revestidas de curiosissimas ornamentações pictoraes, cheias da mais caracteristica ingenuidade popular: animaes, figuras humanas deliciosamente grotescas, flôres, arabescos, o sol, a lua, tudo em polichromias berrantes”. Neste século, as referências foram-se tornando mais regulares em documentos oficiais, investigações e notícias de jornais, realçando a beleza pictórica associada à embarcação que servia de sustento para uma parte significativa da população ribeirinha. Com o crescimento da fotografia e, posteriormente, do vídeo, as proas e as rés de moliceiros tomaram figura de relevo no panorama nacional e internacional. Disso exemplo é o pedido do Serviço Nacional de Informação (SNI) à Comissão Municipal de Turismo de Aveiro, em 1953, que solicita a recolha de uma proa de moliceiro para representar a região numa feira a decorrer em Genebra. A partir dos anos 60/70/80 verificou-se o aumento do interesse internacional pelo Barco Moliceiro e das suas pinturas, tendo vários canais de televisão (ex: BBC, Channel4) gravado documentários na região, resultando no aumento do número de visitantes na região, como relatou Diamantino Dias, colaborador da Comissão Municipal de Turismo de Aveiro entre os anos 50 e 90, na entrevista realizada pela equipa de investigação. Atualmente, esta dinâmica é, ainda mais evidente, não só pelo elevado interesse dos media e dos turistas, mas sobretudo pela projeção conseguida através da internet e das redes sociais. Os temas representados nos painéis de moliceiros apresentaram, desde sempre, uma grande variedade (Magalhães, 1905), sendo, contudo, mais frequente a presença de determinados motivos. Importa referir que, mesmo que os temas pudessem ser dentro da mesma esfera simbólica, não se verificava a imitação/cópia de painéis, quer com os demais painéis da mesma embarcação, quer com qualquer outro barco existente (Sarmento, 2008). A renovação dos painéis de moliceiro é uma prática que acontece, desde sempre, com bastante frequência – alguns fazem-no anualmente como refere fazê-lo o Sr. José Rendeiro. Foi, precisamente, essa frequência que permitiu associar a estes a ideia de “jornal da ria” (Almeida, 2021), uma vez que a “imagística do moliceiro tem acompanhado a evolução dos tempos” (Lopes, 1997), permitindo através dos seus painéis registar/sinalizar/homenagear momentos da história contemporânea, desde a política, ao desporto, à televisão, à música entre várias outras tipologias (Ver Doc8_Legendas Paineis). Os pintores de moliceiros de Referência No início da pintura de painéis, os pintores não tinham conhecimentos artísticos e não se dedicavam exclusivamente a esta arte, tendo outras profissões (Almeida, 2021). Esta atividade podia ser desempenhada por artistas locais, com jeito para a pintura, que eram chamados pelos mestres construtores para esta tarefa, sendo também muito frequente que a pintura dos painéis fosse feita pelo próprio mestre, quando este tinha o referido jeito para o desenho, dedicando-se a ela, no final da construção do barco (ATA4_Antonio Esteves). A arte de pintor de moliceiros proporcionou aos que a ela se dedicavam prestígio dentro da comunidade, alcançando-o mesmo não sendo os painéis assinados com o seu nome (Sarmento, 2008), característica que se mantém até hoje. Atualmente, o pintor José Oliveira deixa a sua assinatura na proa, próximo dos golfiões (ATA8_Jose Oliveira). Pela ausência da assinatura dos pintores de painéis, identificar referências históricas que se destacaram nesta arte é um processo complexo, que se baseia nas referências escritas nos testemunhos orais que foram publicadas e/ou partilhadas ao longo das décadas. Ainda assim, e com base na memória partilhada, registada e/ou publicada, é possível listar alguns dos principais nomes que marcaram a pintura de painéis nos séculos XX e XXI. Pintores-Construtores: Mestre Joaquim Raimundo; Mestre Ti Preguiça; Mestre Agostinho Tavares Pintores- Não construtores: António Tavares de Almeida - o Soeco Velho - Avanca; José Soeco, filho do anterior – Avanca; José Majina – Ovar; Zé da Lota – Sarilhos Pequenos; Avelino de Matos – Avelino Marcela – Pardilhó; Joaquim Tavares dos Santos – o Ruivo – Murtosa; Adelino Graça – o Ameixa – Gafanha da Encarnação; Jacinto Vieira da Silva - Jacinto Lavadeiro – Torreira; Joaquim Esteves Godinho – o Farelo - Pardilhó; Salvador Belo – Torreira; Domingos Valente – Quintas do Norte; José Manuel Oliveira – Murtosa – continua em atividade; Susana Lopes da Melra; Florinda Lamego; Marisa Carvas. Dos pintores não construtores, destacam-se três nomes que marcaram a história da pintura de moliceiros e dos quais temos relevantes registos da sua obra: Avelino Marcela, Jacinto Lavadeiro e José de Oliveira (o único em atividade). Avelino Lopes de Matos – Avelino Marcela Foi durante os anos 1960/70/80 um dos principais pintores de moliceiros existentes na ria. Iniciou-se nesta arte com 10 anos, para ajudar o seu avô materno, que era construtor-pintor. Com o falecimento do seu avô, começou a pintar sozinho, recordando que aos 14, 15 anos (1925) pintava cerca de 20 barcos por ano (Lopes, 1997). Foi marceneiro e não fazia da pintura de moliceiros profissão. Não fazia esboços prévios, riscando as suas ideias diretamente a lápis, completando o painel com as tintas de esmalte. À proa preferia figuras de cavaleiros, reis e campinos, enquadrados num círculo ou num cortinado. À ré, imperam as personagens do povo, emolduradas em forma de buraco de fechadura (Lopes, 1997). Jacinto Vieira da Silva - Jacinto Lavadeiro (1939-1987) “Há um antes e um pós Jacinto Lavadeiro, na pintura de moliceiros”. É assim que José Manuel Oliveira recorda Jacinto Lavadeiro. Este pintor é considerado como um dos mais inovadores nesta arte, tendo deixado um forte legado, embora não tenha frequentado formação artística. Era visto como uma pessoa de grande inteligência, particular sensibilidade e gosto pela pintura, revelado desde criança (Almeida, 2021). Jacinto Lavadeiro aprofundou a arte, apresentando uma técnica mais elaborada, trabalhada, inovando e propondo a introdução de novos elementos (ex: diversificou muito as cercaduras). Era um artista que preparava previamente o seu trabalho, pensando-os e desenhando-os em esboços. Recorria com muita frequência à mistura de cores, servindo-se assim de uma gama de tons mais diversificada. Pintou painéis de diversas temáticas, não se verificando a preferência por um determinado tema. Evitava o erro nas legendas. Não era frequente utilizar enquadramentos (ex: círculos) optando por aproveitar todo o espaço do painel para o pintar. Por trabalhar de forma mais detalhada, demorava seis a sete dias para concluir um barco. Pela qualidade dos seus trabalhos, foi, muitas vezes, contratado diretamente pelos proprietários dos barcos para os pintar, pois não gostavam das pinturas que traziam dos estaleiros. José de Oliveira (n.1969) Começou a pintar painéis de moliceiros em 1989 numa fase em que o falecimento de Jacinto Lavadeiro e a idade avançada de Avelino Marcela “obrigaram” os construtores e os proprietários de moliceiros a procurar novos artistas. Até hoje, calcula ter pintado cerca de 1000 painéis, tendo o cuidado de respeitar a linha pictórica tradicional dos seus antecessores. Zé Manel - como é também conhecido – nasceu na Murtosa em 1969, filho e neto de moliceiros de profissão, e tem formação em artes plásticas, tendo-se destacado – além da pintura de moliceiros – através dos seus trabalhos de pintura, escultura, restauro de arte sacra, pintura de azulejos, murais, entre outros. Para ele, normalmente a legenda/dizer/piada/trocadilho surge antes do desenho, referindo que através deste ponto de partida dá “asas à imaginação” para retratar, com humor, os temas que “fazem parte do quotidiano desta comunidade”. Os painéis humorísticos são aqueles que mais pinta, pois são aqueles os “que as pessoas mais gostam de ver e o que os júris dos concursos de painéis também mais valorizam”. Contudo, apresenta uma grande diversidade de outras temáticas que pinta e que vão também sendo alvo de elogios, sendo disso exemplo o “painel de 2020, de homenagem aos profissionais que nos ajudaram a conter a pandemia de COVID” e que foi notícia nacional, como refere o pintor. Não tem um espaço fixo para efetuar o seu trabalho, deslocando-se pela ria, consoante os trabalhos a executar – quer sejam nos estaleiros, quer sejam à beira-ria.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direitos de tipo consuetudinárioOs direitos relativos ao Arte da Carpintaria Naval do Barco Moliceiro, na Região de Aveiro, são de natureza coletiva e do tipo consuetudinário ou tradicional. Os detentores dos direitos culturais referentes à Arte da Carpintaria Naval do Barco Moliceiro, na Região de Aveiro são os próprios mestres construtores e pintores de moliceiros.
  • Responsável pela documentação :
    Nome: António Jorge Costa, sob a orientação científica de Álvaro Campelo
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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