Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_2023_007
  • Domínio: Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais
  • Categoria: Atividades extractivas
  • Denominação: Conhecimentos tradicionais da produção artesanal do sal marinho da Figueira da Foz
  • Outras denominações: Salinicultura / Exploração do Salgado
  • Contexto tipológico: A produção de sal no estuário do Mondego está intimamente ligada ao saber-fazer dos marnoteiros (salineiros) do salgado (conjunto das marinhas) da Figueira da Foz. Esta produção consiste numa atividade extrativa, de cariz artesanal não mecanizada, caracterizada por uma gestão complexa de água, através da sua circulação por uma rede de diferentes canais e compartimentos, com denominações e funções específicas. A água é proveniente dos esteiros do estuário do Mondego, sendo introduzida nas marinhas, após a limpeza e “cura” dos terrenos (compactação e impermeabilização), através de uma comporta, ocorrendo a sua evaporação progressiva até à cristalização do sal (cloreto de sódio). O tempo de permanência e circulação da água nos compartimentos, a regulação dos fluxos, passagens e distribuição constitui o chamado “governo da marinha”, um conhecimento apreendido empiricamente e transmitido de geração em geração.
  • Contexto social:
    Comunidade(s): Casa do Povo de Lavos; marnoteiros no ativo; Município da Figueira da Foz
    Grupo(s): Rancho Etnográfico e Folclórico de Lavos; FIGUEIRASAL – Associação de produtores de sal da Figueira da Foz
    Indivíduo(s): 37 marnoteiros no ativo
  • Contexto territorial:
    Local: Freguesia de Lavos – Ilha da Morraceira e marinhas da margem esquerda do braço sul do rio Mondego e do rio Pranto.
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente \ Centro
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: Anual
    Data(s): Primavera, em particular entre Abril e Maio, procede-se à limpeza e preparação das salinas; Junho, Julho, Agosto e Setembro, procede-se à produção de sal propriamente dita.
  • Caracterização síntese:
    A costa portuguesa é, desde longa data, conhecida pela produção de sal, sendo uma das atividades económicas mais antigas do território português, devido às ótimas condições geográficas e climatéricas – ventos dominantes fortes e quentes durante uma parte do ano e verões de temperaturas elevadas e constantes, com pluviosidade fraca ou ausente. A produção de sal pode seguir dois métodos: a produção industrial, que engloba processos químicos de mineração ou ainda a evaporação solar em grandes extensões, com extração mecanizada e mão de obra “operária”, e a produção tradicional que segue práticas seculares que se baseiam num trabalho manual, muito próximos dos trabalhos agrícolas e com um saber fazer que tem sido passado de geração em geração. Estes processos tradicionais, embora com princípios comuns nas diversas regiões produtoras de Portugal (Aveiro, Figueira da Foz, Tejo, Sado e Algarve), assumem características marcadamente regionais, quer no traçado das marinhas (salinas), quer nas técnicas e práticas dos marnotos, as quais se diferenciam em relação às condições ambientais em que estão inseridas. As salinas da Figueira da Foz situam-se no estuário do rio Mondego, o que lhe confere uma morfologia específica, determinando o traçado das marinhas. Na Figueira da Foz, esse traçado divide-se em três partes distintas (os reservatórios de água, os evaporadores e os cristalizadores), às quais correspondem práticas e nomenclaturas específicas da Figueira da Foz.
  • Caracterização desenvolvida:
    O sal marinho da Figueira da Foz é inteiramente recolhido à mão, segundo técnicas ancestrais, que têm perdurado até à atualidade. É um sal que não é sujeito a nenhum tipo de tratamento posterior, apresentando-se naturalmente branco e brilhante. As práticas e técnicas inerentes à produção do sal neste contexto geográfico (salgado da Figueira da Foz – Freguesia de Lavos), estão, naturalmente, intimamente ligadas ao conjunto de marinhas ainda em actividade (mais de 3 dezenas), ao seu delineamento em termos das divisórias e canais existentes, comportas e passagens de água e, também aos armazéns de sal da Figueira da Foz, um tipo de construção muito característico e exclusivo deste salgado, de que existem ainda algumas dezenas de exemplos que mantêm as suas caraterísticas originais (cf. relatório IV, 'Armazéns de Sal da Figueira da Foz'). Deve também ser referido que existe um vocabulário muito rico, que embora comporte termos comuns a outras regiões salineiras de Portugal, apresenta também numerosos termos estritamente locais. Para a execução das suas tarefas de limpeza, manutenção e colheita os marnoteiros recorrem a um conjunto muito variado de alfaias de madeira, habitualmente construídas por eles próprios (cf. relatório V, 'Alfaias do Sal'). O saber fazer do marnoto é tecnicamente bastante complexo, obedecendo a um processo que, embora constituído por um conjunto de passos e de técnicas que são comuns (como passamos a descrever), tem variações na maneira como é aplicado/performatizado. Devemos salientar que essa variabilidade, que é inerente ao saber fazer, resulta da conjugação do trabalho do marnoteiro com a ação das marés, do sol e dos ventos e das características dos terrenos onde as marinhas estão implementadas. A experiência empírica, a qual se adquire de um modo tácito (Collins 2001; Polanyi 1969) (aprende-se fazendo, e em contexto) no seio de uma comunidade de práticas (Lave & Wenger 1991) - neste caso, a comunidade de marnoteiros figueirenses - desempenha no saber fazer do sal marinho tradicional da Figueira da Foz um papel tão importante quanto os princípios técnicos gerais que a seguir descrevemos (para uma descrição deste processo de uma perspectiva situada, com base em observação participante, deverá ser consultado o documento em anexo intitulado "O Salgado da Figueira da Foz: a Salina do Corredor da Cobra e o Núcleo Museológico do Sal", pp. 51-60). Nestas salinas, a água percorre um caminho complexo através de vários compartimentos. As salinas, ou marinhas, na designação local da Figueira da Foz, obedecem rigorosamente aos mesmos princípios técnicos, podendo apenas encontrar-se algumas diferenças no número de compartimentos. Na tipologia da Figueira da Foz, as marinhas (salinas) dividem-se em três partes distintas (cf. relatório III, 'Detalhes construtivos das marinhas da Figueira da Foz'): reservatórios de água (viveiros e sapal), evaporadores (comedorias) e os cristalizadores (praias). Nas comedorias (correspondentes à superfície evaporatória), distinguem-se os seguintes compartimentos: vasa, entrebanhos e cabeceiras (comedorias de 3 ordens), ou vasa, entrebanhos, meias cabeceiras e cabeceiras (comedorias de 4 ordens). Às praias (superfície cristalizadora) correspondem os sertões, talhões e talhos da praia de baixo (marinha de 3 praias), ou sertões, talhões, talhos da praia do meio e talhos da praia de baixo (marinhas de 4 praias ou marinhas dobradas). Mais raramente surgem marinhas de 5 praias, ou mesmo de 6, em que existem meios sertões e meios talhões. Quanto à divisórias e canais, temos a considerar as seguinte: - Marachas- Divisórias que separam os compartimentos de diferentes ordens. - Marachões de travessa – Situam-se nas praias e são paralelos às marachas; dividem as praias em várias partes, regra geral de 10 a 12 compartimentos; Terminados estes trabalhos, o marnoto introduz a água do viveiro na “vasa”, onde fica habitualmente retida um dia, passando ao compartimento seguinte, com o mesmo período de retenção e assim sucessivamente até à “praia do meio”. A “praia de baixo” recebe diretamente a água da vasa. Após as primeiras limpezas, o solo argiloso dos talhos ainda não está preparado para a formação de sal, existindo alguma lama depositada e que tem de ser retirada. Para executar esta tarefa é necessário primeiro retirar a água dos talhos. Nos anos em que a água atingiu um grau de salinidade elevado (esse grau é variável), esta água não é deitada fora pois já tem o grau necessário para o início da cristalização. Assim, esta água é mudada para os talhos superiores de maneira a ela voltar ao seu ciclo, com recurso ao “combeiro”, colocando-o no talho que irá receber a água, sendo a água do talho contíguo “batida” nessa direção com o auxílio de um ugalho das lamas. A função do combeiro consiste em amortecer o impacto da água, minimizando os riscos erosivos. O passo seguinte consiste em deixar os talhos expostos ao sol alguns dias para endurecimento do fundo. Os fundos devem também ser compactados ao máximo, pois as lombas ou depressões no solo irião dificultar mais tarde a extração do sal. Assim, procede-se à compactação dos fundos para reduzir perdas de água por infiltração e evitar que partículas terrosas soltas venham agregar-se ao sal. A ferramenta utilizada para esta tarefa é um cilindro de madeira apelidado de “Círcio”, com um peso aproximado de 100kg, possuindo um ferro no eixo, ao qual estão ligados dois braços em madeira – as mangas – que permitem a sua movimentação e manobra. Nesta fase, a argila do fundo deve apresentar-se sem fissuras e perfeitamente nivelada. Findas as operações de compactação, os marnotos lançam uma pequena quantidade de água saturada nos talhos que, graças à temperatura do fundo, evapora rapidamente formando uma fina película de sal aderente à argila; é a chamada “cocha”, indicativa de que o processo produtivo e as suas rotinas diárias podem ser iniciadas. Estas exigem que a marinha seja diariamente “moirada”, ou seja, que a água circule por todos os compartimentos até atingir em cada um deles um nível e uma graduação considerada adequada. Acompanhado da “pá de moirar” ou do “ugalho de mexer”, o marnoteiro faz o seu circuito diário, controlando os fluxos de compartimento em compartimento. As concentrações habituais são de 4º a 5º para a vasa, 7º a 9º para os entrebanhos, 13º a 15º para as cabeceiras, 18º a 20º para os sertões, e 25º a 26º para os talhões. A grande maioria dos marnoteiros não utiliza pesa-sais, tendo no entanto uma noção da concentração que, embora empírica, é muito rigorosa, baseada em diversos fatores,,alguns bastante objetivos, como o caso da presença do gesso, a chamada “escoira” que se inicia com a água pelas mãos, ao teste da flutuação de certos materiais (pequenos pedaços de madeira, ou junco), havendo ainda alguns que colocam uma pequena batata na água para, caso flutue, comprovar uma concentração acima dos 20º. Outra rotina diária consiste em “mexer as águas”, o que significa agitar a solução nas superfícies de cristalização, com recurso ao “ugalho de mexer”, algo mais estreito e comprido do que os restantes ugalhos (rer, lamas e achegar). A técnica de mexer requer um movimento caminhando na água próximo das marachas, movimentando-a com o ugalho em direção ao centro, com abrandamentos junto aos cantos, criando uma pequena ondulação, suficientemente forte para “quebrar o laço” (películas de sal) e favorecer a evaporação, mas também suficientemente ténue para não erodir as marachas (sobretudo se estas forem em argila). Cada talho é mexido caminhando paralelamente às divisórias, passando depois o marnoteiro para o talho contíguo até correr completamente a marinha, ou os cómodos da marinha, sob a sua responsabilidade. Em circunstâncias favoráveis, cerca de 3 a 5 dias após a primeira moira faz-se a primeira redura (colheita) do sal. A operação de raspagem do sal do fundo deve ser feita cuidadosamente evitando trazer argila incorporada, sendo a operação designada por ‘rer’ a marinha, a qual é efetuada em duas fases. A primeira consiste em juntar todo o sal num cordão ao longo do eixo maior do talho, utilizando-se para isso o “ugalho de achegar". Posteriormente, esse cordão é progressivamente arrastado de cima para baixo, até formar uma pilha que ficará depositada durante pelo menos um dia sobre a silha, mais raramente no próprio talho, sendo o sal posteriormente transportado para o armazém. Consoante as condições do tempo, as reduras vão sendo efetuadas a intervalos de 3 a 6 dias, podendo prolongar-se até ao final de Setembro a inícios de Outubro. A produtividade dos talhos por redura é também naturalmente variável, considerando-se 80kg com uma produtividade média. Após a redura permanece alguma água nos talhos, a chamada água de regelo, à qual é adicionada nova água vinda dos talhões. Ao fim de 4 a 5 reduras, toda esta água é escoada para o entraval. Em anos recentes, alguns produtores iniciaram a produção de flor de sal. Trata-se de um produto que, como para a generalidade dos salgados portugueses, não era anteriormente valorizado e recolhido enquanto tal, mas que, trazendo um valor acrescentado, tem vindo a ser cada vez mais explorado. A sua colheita é também inteiramente manual sendo efetuada com recurso a diversos tipos de peneiros (para uma descrição do processo feita pelos marnoteiros e marnoteiras, consultar as entrevistas em anexo).
  • Manifestações associadas:
    Receituário gastronómico associado ao salgado, nomeadamente as “batatas assadas no sal”. Repertório folclórico associado ao rancho das Salineiras de Lavos e rancho Folclórico e Etnográfico de Lavos. Adiafa – festa realizada em cada marinha a 15 de agosto – composta de uma refeição para todas as pessoas envolvidas no processo produtivo. Esgotadura – festividade realizada no início da época de produção, envolvendo vários marnotos vizinhos, realizando-se em dias alternados em cada marinha. Consistia numa refeição e num convívio. As tradições associadas à “esgotadura” são semelhantes às que ocorrem no salgado de Aveiro. “Despesca” – acontecimento anual móvel (entre o dia 1 de novembro e o dia 31 de Março) e que consiste no esvaziamento da água dos viveiros, permitindo a captura manual dos peixes que ali ficam retidos. Noutros tempos, no dia 1 de novembro, os viveiros das marinhas ou salinas eram leiloados em hasta pública para se ter o direito de pescar nos mesmos. Quem fizesse a arrematação ficava com o direito à pesca entre o dia 1 de novembro e o dia 31 de março, altura em que era necessário preparar o viveiro da marinha para a feitura do sal. Atualmente, ainda existem viveiros das marinhas que vendem a pesca, mas muitos ficam para os marnoteiros explorarem. Quando se compra a pesca de um viveiro, nunca se sabe o que tem dentro... e muitas vezes compra-se somente água. De acordo com as memórias dos antigos marnoteiros, nos viveiros existia uma grande abundância e diversidade de peixe: enguias, robalos, tainhas, linguados, solhas, caranguejos, camarão pequeno, localmente designado por “camaritas ou pichas”. Entretanto, os ecossistemas mudaram e aumentou a existência de aves neste território, que competem com os marnoteiros por uma boa pescaria.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: Atualmente, a produção de sal é realizada pela comunidade de marnoteiros (sendo formada a sua maioria por homens), na ilha da Morraceira e nas marinhas do braço sul do rio Mondego e rio Pranto (Gala e Armazéns de Lavos), todas elas inseridas na área geográfica da freguesia de Lavos. Tradicionalmente, a passagem de conhecimentos era realizada pelos marnoteiros (mestres) para os moços (aprendizes). No passado, na generalidade dos casos, cada marnoteiro tinha um moço ao seu serviço, não sendo, no entanto, raros os casos de marnoteiros que tinham mais do que um a seu cargo. O recrutamento era, numa primeira fase, isto é, no início da atividade, efetuado no seio familiar, ou no círculo das amizades e relações de vizinhança. A responsabilidade da escolha e as suas condições da contratação, eram da exclusiva esfera de competências do marnoteiro, sendo raro os proprietários interferirem nestes ajustes. Os moços 'assentavam praça', (iniciavam os trabalhos) no dia 1 de Maio de cada ano. À medida que o moço progredia na aprendizagem e consoante as aptidões demonstradas, poderia ser “disputado” por outros marnoteiros, mudando para outra marinha. Por norma, no entanto, existia uma certa fidelização, e mesmo em situações em que o marnoteiro explorava mais do que uma marinha, ou quinhão de marinha, acontecia nos anos subsequentes ao cumprimento do serviço militar, podendo os mais aptos ascender a essa condição, logo após essa data, ou seja, com cerca de 5 a 7 anos de prática de moço. No entanto, nem todos ascendiam a essa condição, fosse por falta de aptidões, fosse por falta de oportunidades, podendo alguns permanecer com essa função durante vários anos, ocupando o tempo fora da época do sal noutras atividades nas áreas da agricultura, da pesca, ou da construção. Atualmente, a transferência de conhecimentos continua a ser feita sobretudo no seio das famílias ligadas à atividade (principalmente entre aquelas que são proprietárias de salinas), ocorrendo também situações em que as pessoas exteriores à atividade e originárias de outras localidades e regiões exploram algumas salinas, recebendo treino e ensinamento dos marnoteiros mais antigos e seus vizinhos (ver relatório VI, 'Enquadramento social', em anexo). É portanto, uma aprendizagem informal, in situ (na marinha), com recurso estrito à oralidade e à prática, constituindo assim, do ponto de vista antropológico, um exemplo de 'comunidade de práticas' (Lave e Wenger 1991; Wenger 1998), as quais se definem através de um processo de socialização em torno de competências práticas e de um conhecimento que não é apreendido de forma abstracta, mas sim situada, ou seja, dependente de um contexto que é simultaneamente social, material e ambientalmente específico. A aprendizagem no contexto de uma comunidade de práticas é feita de modo informal e 'periférico', ou seja, através da participação gradual dos novos aprendizes em práticas e rotinas que já se encontram implementadas. De modo a manter viva a comunidade de práticas ligada ao salgado e assegurar a sua transmissão de saberes, têm sido organizadas formações educativas entre a Câmara Municipal, o Centro de Emprego e a Segurança Social, no sentido de formar novos salineiros, para desempenho da atividade (2015, 2019). Alguns destes formandos seguiram a profissão e desenvolvem regularmente a sua atividade no salgado da Figueira da Foz. Presentemente, na marinha Municipal do Corredor da Cobra, trabalha uma marnoteira que aprendeu a arte de saber fazer sal com os seus familiares e já transmitiu esse saber a alguns aprendizes, dois dos quais ficaram a trabalhar na salina municipal como marnoteiros.
    Data: 2021/06/18
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Todos os membros da comunidade de marnoteiros e salineiras naturalmente implicados no processo de produção artesanal.
  • Origem / Historial:
    Do séc. XII ao séc. XVIII ocorre no estuário do Mondego uma permanente conquista de terrenos para a atividade salineira (com momento de maior ou menor expansão ao sabor das crises e conjunturas). Em meados do séc. XX, segundo o Inquérito à Indústria do Sal (III volume), promovido pela CRPQF, as salinas ocupavam 798 ha, repartidos por cerca de 229 unidades que ocupavam três diferentes áreas do estuário: na margem norte, Vila Verde com 17 salinas; na margem Sul, Lavos com 71 salinas; no meio, na ilha da Morraceira, 141 salinas. Largas centenas de pessoas trabalhavam no sal, sendo um grande pilar da economia local. Através do porto da Figueira da Foz, o sal era transportado para muitos locais do mundo. Através de barcaças, subia o Mondego até à foz do Dão e daí era carregado até um entreposto situado no cruzamento de várias vias, cuja importância foi suficiente para que a localidade viesse a ter o nome de Carregal do Sal. É no entanto curioso de verificar que à data da realização deste inquérito, cujos trabalhos de campo decorreram em 1953, a grande maioria das salinas possuía divisórias em argila, havendo relativamente poucas 'embarachadas' a madeira, situação que mais tarde se veio a generalizar, prevalecendo atualmente ainda as marinhas com divisórias e canais forrados a madeira. Outro aspeto curioso da evolução da tecnologia é a ausência de referência no Inquérito às bombas manuais de elevação de água, que mais tarde se vieram também a generalizar. A partir de 1970, a situação alterou-se radicalmente. Iniciou-se um largo processo de abandono e destruição das salinas e observou-se a reconversão para outras atividades, como a aquacultura. As salinas de Vila Verde desapareceram e as da Morraceira e de Lavos reduziram a sua área consideravelmente. Ao virar do milénio, a situação das salinas era particularmente preocupante, pois a sobrevivência da atividade e a continuidade das suas marcas na paisagem – e das suas funções naturais enquanto ecossistemas – estavam em sério risco. De facto, nessa altura tinham ocorrido já numerosas reconversões de salinas para aquaculturas, estando a maior parte das restantes marinhas ao abandono, sujeitas à influência das marés ou em risco iminente de virem a estar, com a consequente destruição dos seus compartimentos e divisórias. Noutras situações, em que as motas (muros exteriores) se encontravam mais protegidas, a vegetação invadia a totalidade dos compartimentos, sedimentando uma boa parte do sistema e impedindo a permanência da água. As poucas marinhas que se encontravam em atividade estavam, no geral, mal cuidadas, sendo trabalhadas por uma população muito envelhecida. Sendo a problemática da conservação das salinas tradicionais comum em vários contextos geográficos (França, Espanha, Portugal, Eslovénia, Grécia e Bulgária), surgiram a partir dessa data, diversos projetos e iniciativas no quadro de programas europeus (Ecos Overture, IINTERREG) que, com diferentes abrangências e objetivos, tentaram dar resposta a esses problemas, tendo o Município da Figueira da Foz participado ativamente em três deles, respetivamente: o ALAS (2000-2003), o SAL (2004-2007) e o ECOSAL Atlantis (2010-2013), que possibilitaram a comparticipação financeira para diversas ações locais, de âmbito muito variado: desde a recuperação de uma marinha (Corredor da Cobra) e respetivo armazém; construção de dois cais de embarque; equipamento para o Núcleo Museológico do Sal; construção de um observatório de aves; criação de um percurso pedonal e respetiva sinalética e variadas publicações de caráter técnico e divulgativo. Ao nível da cooperação inter-regional foi possível promover trocas de experiências entre salineiros de diversas regiões e visitas de estudo. A realização de um Festival do Sal da Figueira da Foz, realizada no âmbito do projeto SAL, constituiu um evento importante para o reconhecimento da atividade e dos seus profissionais, comportando diversas atividades paralelas que incluíram a homenagem a algumas personalidades do salgado e a realização de um concurso para a atribuição de prémios para o 'melhor sal da Figueira da Foz'. A partir desse momento ocorreu uma certa inversão da atitude da comunidade perante as salinas, derivada de uma maior consciência global para a importância da conservação das salinas da Figueira da Foz e do seu significado para o património e identidade local. Embora o processo de abandono não tenha sido completamente estancado, registou-se a chegada de novos produtos, como a flor de sal e a salicórnia; pontualmente, assistiu-se, também à recuperação de algumas áreas. Naturalmente que a resposta a estes novos desafios foi dada sobretudo por uma nova geração de marnoteiros, provenientes quer de famílias desde há muito ligadas à atividade, quer de pessoas provenientes de outras áreas, tendo no entanto, em ambos os casos, a sua formação sido feita com os ensinamentos de marnoteiros mais antigos, seus familiares ou de marinhas vizinhas, detentores dos conhecimentos tradicionais. No entanto, não deixa de ser curioso registar que, mesmo alguns marnoteiros de gerações mais antigas, ainda em atividade, têm aderido à produção de flor de sal – para eles uma inovação – pois reconhecem-lhe valor acrescentado. É também digno de registo o facto de alguns desses marnoteiros terem decidido optar também pela certificação do sal, integrando nos seus trabalhos e rotinas as exigências requeridas, seja ao nível do transporte da marinha para o armazém (utilização de veículos eléctricos), seja ao nível do acondicionamento ou das alfaias. Finalmente, deve também referir-se uma outra mudança de paradigma que o novo milénio trouxe à atividade salineira: o papel da mulher na atividade e no negócio do sal; como vimos esse papel esteve restrito a funções de carrego ou limpezas, estando as mulheres completamente ausentes dos trabalhos e conhecimentos relativos à gestão das águas e produção do sal. É certo que algumas, sendo mulheres de marnoteiros, acompanharam os maridos nessas rotinas e passaram a ser, também elas, detentoras desses conhecimentos, no entanto, só na década de 80 é que uma mulher assumiu plenamente essa condição, explorando o seu marido uma marinha e ela outra. No panorama atual, existem já pelo menos 4 mulheres cuja atividade principal é o sal, tendo duas delas criado a sua própria marca e empresa. Na campanha de 2016 estiveram em atividade 34 marinhas. Na exploração destas marinhas estiveram diretamente envolvidas 32 pessoas, as quais recorrem a um número indeterminado de colaboradores para auxílio em algumas tarefas, nomeadamente nas reduras. O 'Inquérito à Indústria do Sal', realizado pela Comissão Reguladora dos produtos Químicos e Farmacêuticos, em 1955 (III Volume – salgado da Figueira da Foz), constitui um retrato muito detalhado acerca da realidade do salgado nesse período considerado como o apogeu desta atividade económica. O levantamento fotográfico 'Ouro Branco' (2006), da autoria de Sérgio Morgado, representa um testemunho dos gestos e técnicas ainda em uso na produção de sal da Figueira da Foz. A recolha de testemunhos orais, fotográficos e documentais realizada no âmbito deste processo de candidatura, iniciada em 2016, constitui igualmente um marco para o conhecimento atual e verificação da evolução da atividade, entre meados do século XX e a atualidade.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Propriedade PrivadaMarinhas enquanto locais onde a atividade salineira se pratica são propriedade privada. Conjunto dos proprietários das marinhas do salgado da Figueira da Foz
    Propriedade Pública Os esteiros de abastecimento das marinhas estão juridicamente englobados no Domínio Público Marítimo. Conjunto dos proprietários das marinhas do salgado da Figueira da Foz
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Ana Margarida Perrolas Perrolas de Oliveira e Silva
    Função: Directora do Departamento de Cultura e Turismo da Câmara Municipal da Figueira da Foz
    Data: 2021/06/18
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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