Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_SU_2022_002
  • Domínio: Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais
  • Categoria: Corpo, vestuário e adornos
  • Denominação: Processo de Confeção da Capa de Honras
  • Outras denominações: Capa Mirandesa, Capa de Burel, Capa
  • Contexto tipológico: A Capa de Honras é um traje regional feito com burel ou saragoça. Confeciona-se atualmente em Sendim – União das freguesias de Sendim e Atenor – Concelho de Miranda do Douro. A sua confeção era um ofício existente nas várias freguesias do município de Miranda do Douro, tradição esta que nos últimos anos, com o desaparecimento de vários artesãos, ficou confinada a freguesia de Sendim. Também o principal material usado na confeção, o burel, que era produzido na região – até aos anos de 60 – hoje, terá que ser adquirido na zona da Covilhã e do Fundão onde ainda se encontra alguma indústria de “burel”.
  • Contexto social:
    Indivíduo(s): Sandra Castro Nobre (Sendim) ; Maria Susana de Castro (Sendim) ; Palmira Pires Peres de Falcão (Sendim)
  • Contexto territorial:
    Local: Freguesia de Sendim
    Concelho: Miranda do Douro
    Distrito: Bragança
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente \ Norte
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: Todo o ano
    Data(s): Não se coloca
  • Caracterização síntese:
    Caraterização síntese: A Capa de Honras mirandesa é uma peça de vestuário masculino de origem medieval, segundo os estudiosos (Trindade Coelho, 1897; Rocha Peixoto, 1906, José Manuel Martins Pereira, 1908; António Maria Mourinho, 1991; António Rodrigues Mourinho, 2011), que confere reconhecido prestígio social ao seu portador, sendo considerada como a mais representativa da “proa” (orgulho) do Homem Mirandês. Dos contextos tradicionais de uso no trabalho encontra-se hoje sobretudo associada a ocasiões festivas (festas dos santos patronos e integrando a comitiva dos grupos de pauliteiros) e cerimoniais (procissões e funerais), estando presente em todos os atos oficiais protagonizadas pelas entidades autárquicas. Trata-se de um traje elaborado em burel (lã pura de ovelha) ou saragoça, que cobre o homem da cabeça aos tornozelos, com diversos motivos ornamentais (de cuja profusão dependia a apreciação da peça) e dotada de um capuz, peça de burel do mesmo modo ornamentada que caindo sobre as costas constitui a “honra” do seu portador. A Capa de Honras integra o vestuário de todas famílias mirandesas (não raro sendo um bem patrimonial herdado), resistindo ao despovoamento e aos contextos de mudança, afirmando uma identidade local muito ciosa das suas mais expressivas tradições. Para muitos investigadores, “Esta foi a peça de vestuário mais nobre do traje popular português” (Rocha Peixoto, 1905-1908)
  • Caracterização desenvolvida:
    Caraterização desenvolvida: Descrição Descendo do alto da cabeça até aos pés, a Capa de Honras mirandesa é colocada sobre os ombros e desce em duas bandas sobre o peito até roçar as biqueiras dos sapatos. É um traje imponente e comprido de tecido – a sobrecapa define-se pela linha do cotovelo - pois como dizem os mirandeses: Quatro baras de pardo fraca capa faiç. Com efeito, a fartura requerida de tecido determina o uso de pelo menos cinco varas de burel para poder ser traçada pela frente sobre o ombro esquerdo e descair bem pelas bandas mesmo com o capuz coberto ou sem ele para tirar por completo o frio e a chuva. De salientar que cada vara (unidade de medida de comprimento antiga) equivale a 2,96m aproximadamente. Do decote nasce a capa, a sobrecapa e o capuz. A sobrecapa desce até à linha do cotovelo sendo toda bordada e pespontada. Termina em franjas largas e irregulares criando uma zona de transição de efeitos rítmicos entre as ombreiras e o resto da capa. À volta dos ombros apresenta aplicações pretas de burel ou de saragoça, sob a forma de recortes curvos e retos com figuras de silvas e corações. A gola - elaborada sob a forma de um retângulo de burel em fundo preto e com recortes de vários tons - é larga e comprida, enchendo as ombreiras e destacando-se pela predominância do trabalhado de adornos, sendo a gola ligada o capuz, este apenas se descobrindo quando repousa sobre a cabeça do homem, cobrindo-o por completo. O capuz suporta o maior elemento decorativo da capa, inteiramente bordado com recurso à técnica do picado (sobreposição de dois tecidos, saragoça e burel, cosidos com pespontos). Do vértice do capuz desce a peça mais trabalhada, uma faixa, denominada Honra, ornada com franjas de burel e de saragoça parda e preta e com aplicações sob a forma de arabescos, cuja irregularidade sublinha o movimento e anima a austeridade que toda esta peça revela. Cada lado da abertura frontal da capa é guarnecido com adornos geométricos e/ou fitomórficos, efetuados segundo a técnica do picado. A amplitude da Capa de Honras corresponde ao quádruplo da largura da linha dos ombros, o que indica, desde logo, razoável capacidade económica do seu utilizador para poder adquirir ou mandar fazer esta peça que tem mais de dez metros de tecido. Trata-se da espécie de traje regional mais rica do ponto de vista da confeção e do corte. Da robustez, da espessura e da virilidade, detetáveis na Capa de Honras, se deduz a personalidade fechada, quase hermética, do seu utilizador, no entanto, os bordados aplicados e pespontados falam-nos da sua sensibilidade e de uma forte e intensa adesão às estruturas sociais, já que toda a organização dos pespontados se desenha em barras paralelas de encadeados motivos tardo-góticos. A permanência deste tipo de gramática decorativa indicia a importância dada à defesa e à conservação da herança cultural que continua a ser transmitida pela imagem com que o seu possuidor se reveste. A expressão desta capa assume, pelas suas características formais, uma dimensão próxima do trajar religioso, remetendo para os valores da interioridade e da severidade dos transmontanos. A conjugação da dupla função do traje de trabalho e traje de festa referencia o sentido do dever e da honra ligado e religado às festividades como momentos de pausa silenciosa das atividades laborais. Sob esta capa o mirandês usa jaleca, calção, colete e grevas do mesmo tecido, o casaco são portadores do mesmo tipo de decoração da capa. Nos dias de festa de família – casamentos, batizados e, mesmo, nos funerais – a Capa de Honras é o distintivo que os homens trajam, como honra real e respeito para quem a veste e para quem é recebido ou convidado. Este costume, apesar de ainda muito em prática, deve ser incentivado junto da comunidade, tendo sido por isso sugerido para constar futuramente nas ações de salvaguarda direcionadas ao uso da Capa de Honras. Das características especiais da Capa de Honras mirandesas atestam os testemunhos de etnógrafos e investigadores do vestuário tradicional (Madalena Braz Teixeira, 1994; Teresa Perdigão, 2002; Graça Ramos, 2009), que correspondem as descrições a todos os títulos documentais de toda a sua especificidade e singularidade. Origens Tendo em consideração a conceção e desenho da Capa de Honras mirandesa, as suas prováveis origens remetem para uma capa de asperges ou pluvial que, durante a Idade Média era sobretudo usada pelos membros do Clero durante as procissões e nas ocasiões cerimoniais especiais (batizados, casamentos e ritos de bênção do Santíssimo Sacramento). Para António Maria Mourinho (1991), esta capa teria tido a sua origem numa capa litúrgica, medieval gótica, talvez originária do mosteiro cistercense de Moreruela, em Zamora, que tinha terras e povoações inteiras em Miranda suas vassalas, assim como em Aliste, confinando com terra de Miranda pelo Norte. Hipótese que já tinha sido antes avançada pelo escritor transmontano Trindade Coelho ao destacar as suas semelhanças com a capa de asperges de algum bispo da Idade Média. Benjamim Enes Pereira por seu lado – de acordo com o que antes dissera Rocha Peixoto - partindo das características do cabeção ornamentado considerou que a Capa de Honras mirandesa – “a mais nobre peça do nosso traje popular” - retém do traje quinhentista a amplidão que vai de ombro a ombro, lembrando quer uma dalmática, quer as belas capas dos príncipes da Renascença. Graça Ramos (1999), considera a capa de honras como sendo uma congénere profana que mantém o semicírculo, a sobrecapa e o capuz da capa de asperges eclesiástica ou pluvial, que era um paramento litúrgico usado pelos bispos ou sacerdotes em ações solenes, externas à missa: sacramentos, exéquias, procissões, bênçãos, de entre outras. Por curiosidade, o seu nome advém do facto de ser uma veste usada em ocasiões que remetem para o ato de benzer por aspersão de água benta, sugerindo uma evolução de capas destinadas a proteger da chuva, para uma capa solene, apenas com função de manifestar a grandeza do prelado. Uma das obras editorais de referência sobre o vestuário em Portugal, “O Traje Regional de Portugal”, da autoria de Tomaz Ribas, 2004, faz uma descrição da capa, como “a peça mais sumptuosa do vestuário masculino português”, considerando a origem da capa do período medieval, tal como a “sua congénere religiosa, capa de asperges, afirmando que ambas as capas chega até nós praticamente sem alterações no corte e apenas com pequenas variações nos tecidos e em alguns pormenores na decoração. Documentos e testamentos A menção mais antiga que se conhece sobre a Capa de Honras mirandesa surge inserida no Livro de Atas da Câmara Municipal de Miranda do Douro (1819), na qual esta peça do vestuário tradicional mirandês surge referenciada sob a designação de “capa de onras”, o que remete para a importância cerimonial que já então lhe era conferida pelas autoridades locais.(a procurar documento para anexarmos) Desta importância que lhe era conferida em documentos oficiais, atesta também o Livro da Junta de Paróquia de Ifanes que nos fólios destinados aos anos de 1867 a 1868 menciona as seguintes rubricas de gastos: Uma capa d’asperges, 25$000; Pela dita de um frontal, 9$000; Pela dita de duas sobrepelizas, 6$000. E, do mesmo modo, da sua importância social atesta o valor patrimonial que lhe era atribuído nos testamentos – não era, de facto, um bem qualquer -, conforme no-lo reportaram as investigações levadas a cabo pelo historiador António Rodrigues Mourinho (2010/2011): No testamento de Francisco Domingues, natural de Sendim, concelho de Miranda do Douro, lavrado no dia 13 de Janeiro de 1828, aquele testador “deixa a sua mulher Ana a sua capa de onras e a sobrecasaca por trabalho de oferecer”. Também Manuel Campesino, de Sendim, em seu testamento, feito no dia 28 de Outubro de 1791, deixa “hua capa de pardo de seu trazer a seu filho e a Manuel Afonso deixa hua capa de pardo velha”. José Palaçoulo, de Sendim, no seu testamento feito no dia 4 de Janeiro de 1820, deixou a seu irmão Inácio todo os seus fatos de seu uso com sua capa. António Jerónimo, da povoação de Carção, no seu testamento, escrito no dia 5 de Abril de 1801, “deixou a seu sobrinho Mateus o “seu bestido de uso com capa, chapéu e tudo o mais” e a seu sobrinho, Manuel António Luís, deixou a sua capa de pano e deixou a Manuel Machado hua capa de Saragoça e hua bestia de pano…” Também Manuel Tomé, de Carção, no seu testamento de 28 de Outubro de 1785, deixou a António Quinteiro “hua capa de pardo novo”. Os processos de fabrico do burel O processo de fabrico do burel (atualmente fabricado industrialmente apenas na região da Covilhã e Fundão) ou pardo ou saragoça, como também é localmente designado este tecido, a partir da lã merina de ovelha (originária de uma raça de carneiros proveniente do sul de Portugal, tratando-se de uma lã macia e de fácil portabilidade, com características térmicas e propriedades antimicrobianas que a tornam muito apreciada para a confeção de vestuário), implicava um trabalhoso conjunto de operações: . a tosquia, efetuada nos meses de Abril e Maio, podendo extrair-se de cada ovelha um velo que varia entre meio e um quilograma de matéria-prima; . a triagem, operação mediante a qual se procedia a uma escolha prévia e separação segundo a qualidade do material; . a lavagem, destinada a eliminar a sujidade, sem recurso a quaisquer sabões ou detergentes e com o cuidado para se garantir a permanência da lanolina, uma gordura natural que favorecia as ações de transformação que se seguiam; . a carmeagem, separação manual dos tufos criados durante a lavagem, eliminando as impurezas mais grosseiras e desembaraçando as fibras; . a cardagem, operação realizada com o recurso a dois pentes que não só separavam e homogeneizavam o manelo como procediam à eliminação final das impurezas assim como ao desfibramento completo da lã; . a fiação, mediante o qual o manelo (que era enrolado no roquil e seguro com uma correia de cabedal) era transformado em fio, recorrendo à roca e ao fuso, podendo ser esta operação também ser realizada por via mecânica, utilizando para o efeito a roda de fiar, obtendo-se em qualquer dos casos as meadas ou novelos de fio de lã; . a tecelagem, mediante o recurso a um tear de madeira onde se vai obter, finalmente, o tecido do burel ou pardo, designado de cherga ou encherga; . a pisoagem, operação realizada nos pisões acionados pela força da água (entretanto totalmente desparecidos) com a qual se procedia à homogeneização das peças grosseiras de tecido de lã por compressão das fibras através do batimento prolongado no molhado, obtendo-se deste modo a compactação final. Da conjugação da qualidade da lã com as operações de tecelagem e de pisoagem resultam peças de tecido mais ou menos finas, mais ou menos rígidas, mais ou menos compactas. A investigadora Graça Ramos, 2009, na pág. 43, descreve-nos de uma forma pormenorizada todo o processo artesanal da produção de burel: “A capa de Honras mirandesa era, no passado, executada em lã de produção local (merina), que depois de tosquiada e lavada, tarefas já de si muito trabalhosas e exigentes, passava por um conjunto complexo de fases de transformação – carmeagem, cardagem, fiação em torno ou roca, tecelagem e pisoagem, processos manuais de que resultava um tecido espesso e irregular, grosseiro, bastante impermeável e térmico. Este tecido é designado por burel e localmente também lhe atribuem o nome de pardo. Há quem defenda que o pardo era um tecido mais denso e rijo (já que o apisoamento era completo, enquanto que no burel era feito apenas meio apisoamento). No entanto, não encontramos localmente suporte para esta informação, já que nenhum dos produtores locais faz distinção entre estes dois tecidos, nem tão-pouco se lembram de ter ouvido qualquer referência a ela por parte dos seus antepassados ou pessoas antigas da região. É interessante atentarmos nas diversas fases de produção do tecido usado na confeção das capas de honras – pardo, burel ou Saragoça – segundo os métodos tradicionais para entendermos toda a complexidade do processo. A recolha da lã é o primeiro passo – tosquia – operação realizada uma vez ao ano, entre os meses de Abril e Maio, pelo qual as ovelhas são limpas do seu velo e de onde resulta cerca de 0,5 a 1 kg de matéria-prima. Passa-se á “triagem”, processo pelo qual a lã é separada de acordo com a sua qualidade. A “lavagem” ocorre nos cursos de água ou em tanques e destina-se a eliminar substancialmente a sujidade da lã, devendo ser feita, preferencialmente, sem recurso a sabões ou a detergentes, considerando ser necessária a manutenção de alguma gordura natural (lanolina) para auxiliar as fases seguintes de transformação das fibras em fios. Lava a lã, ela é limpa recorrendo à separação dos tufos de lã com os dedos – “carmeagem”. Esta limpeza permite eliminar impurezas grosseiras e desembaraçar as fibras. Depois, e pelo processo da “cardagem”, a lã é separada ainda com maior cuidado permitindo a eliminação final de impurezas e o desfibramento completo com recurso a dois pentes que permitem separar e homogeneizar uma pasta (manelo). Segue-se a “fiação”, que consiste no processo de transformação do manelo, enlaçando, retorcendo e alongando as fibras de forma a formarem um fio contínuo, resistente á tração. A roca é, juntamente com o fuso, o principal instrumento de fiação manual. Uma porção do manelo é enrolado no roquil e seguro com uma correia de cabedal. Daqui torce-se um fio, enrolando-o ao fuso. Este processo pode também ser realizado por via mecânica, com a roda de fiar, podendo ser completado com o torno, caso seja necessário dar maior resistência ao fio. Com a fiação o fio é “organizado” em meadas ou novelos. Seguidamente, o fio está pronto para ser tecido através do processo de “tecelagem”, pelo qual se faz o entrelaçamento dos fios da teia, previamente dispostos numa armação de madeira – terá -, com os da trama, introduzidos um a um na teia. Deste processo resulta um têxtil grosseiro designado por cherga ou encherga que requer uma operação especial de acabamento – a “pisoagem”, que consistia na homogeneização das peças grosseiras de tecido de lã, por compressão das fibras, através do batimento prolongado com molhado (nos pisões, engenhos rudimentares de madeira tosca movidos por força hidráulica, hoje já inexistentes na zona). Desta forma a trama e a teia são apertadas, amalgamando as fibras, transformando o tecido numa pasta, compactando-o e tornando-o mais denso e estável. O produto final é designado por pardo ou burel e Saragoça (conforme a espessura). Concorrem para a qualidade e textura deste tecido vários fatores, que vão desde a espessura do fio, que pode ser mais grosso ou mais fino, à tecelagem do mesmo, que pode ser mais ou menos apertada, e ao apisoamento do tecido, que pode ser mais ou menos batido. Todos estes fatores influenciam o resultado final, havendo burel (ou pardo) mais fino ou mais grosso, mais rígido ou mais mole, mais compacto ou mais largo, consoante o tratamento que lhe é dado durante todas as fases de preparação do tecido.” Hoje, todo o processamento da lã após a tosquia da ovelha e da seleção ou triagem dessa mesma lã, é realizado seguindo os procedimentos de sempre, havendo contudo a utilização de equipamentos industriais que aliviam a carga humana que antes era necessária à produção do burel. Artesãos/Artífices/Alfaiates Mie capica d’honras Feita por trás de paredes: Quien m’ascuita, de si oube… Assi m’acuntece a las bezes! Estes versos foram transcritos por Leite de Vasconcelos na sua obra “Silva Mirandesa” (Revista Lusitana, VII, 1902, 282-303) e referenciados como sendo pertencentes a uma cantiga popular mirandesa da qual, porém, não temos conhecimento de qualquer outra menção ou recolha. Trata-se de uma estrofe que nos remete para o facto de em tempos mais recuados os alfaiates se deslocarem às povoações para satisfazerem as encomendas dos seus clientes, aí permanecendo durante algum tempo a confecionar capas de honras, capotes, calças de pardo e jalecos. Instalavam-se nos quintais ou curraladas, junto de muros ou paredes aí confecionando o vestuário. De realçar a ironia dos dois últimos versos: o autor avisa que quem se puser a escutar conversas atrás dos muros corre o risco de ouvir falar dele mesmo. De acordo com as investigações realizadas por António Rodrigues Mourinho, as referências documentais oficiais mais antigas que se conhecem datam de 1819 e 1828, surgindo do mesmo modo em testamentos datados de finais do século XVIII e do século XIX, não se dispondo, no entanto, de informação sobre os respetivos artesãos, sobre aqueles que confecionavam as capas de honras “por trás de paredes”, como refere o verso recolhido por Leite de Vasconcelos. A sua referência em testamentos assume especial relevância por ser a Capa de Honras um bem deixado de geração em geração tal era o seu valor económico e social, tratando-se por isso desde sempre um bem patrimonial para as comunidades. Não nos é, infelizmente, possível mencionar de forma exaustiva os nomes de todos quantos no passado tiveram arte e engenho para confecionar as capas de honras mirandesas e, desse modo, fazer a justa evocação e homenagem a todos esses artesãos. Trata-se de um levantamento que continua em aberto – levantamento esse que está a ser efetuado - pelo que, aqueles cujos nomes aqui mencionamos de modo algum esgotam todos quantos também as fizeram e que são aqui e agora anonimamente evocados e homenageados. Artesãos do Passado: Alípio Manuel Celestino Dias (Póvoa); António Cristal (Constantim: falecido nos anos 40 do século XX): Aureliano Cristal Ribeiro (Constantim: 1937-2020); Benjamim Lucas (Póvoa); Clemente Dias (Duas Igrejas, falecido nos anos 60 do século XX); Domingos Meirinhos (Póvoa); Evaristo Dias (Genísio); José António Valentim (Freixiosa); Mateus Dias (Genísio, falecido nos anos 70); Virgílio Cristal (Constantim: 1912-1999). Artesãos do Presente: Palmira Falcão (Sendim); Maria Susana Castro e Sandra Castro Nobre (Sendim). A Confeção da Capa aos dias de hoje Em Sendim, povoação do sul do concelho de Miranda do Douro, encontram-se atualmente as três únicas artesãs das capas de honras (e de outros trajes do vestuário tradicional): Maria Susana Castro e Sandra Nobre (mãe e filha) e Palmira Falcão, que não têm mãos a medir quanto à respetiva confeção. Nenhuma destas artesãs tem na sua família qualquer tradição de confeção de capas de honras ou de outro vestuário tradicional mirandês Susana Castro foi em 1974 desafiada pelo Padre António Maria Mourinho para se iniciar na confeção da Capas de Honras, complementando a função de alfaiate com outros trajes tradicionais: trajes para pauliteiros, saiotes, coletes e jalecos e meias de lã. Susana Castro e as suas filhas lançaram-se numa nova aventura: a de adaptar o “picado” da Capas de Honras e do traje dos pauliteiros a novas aplicações, criando um estilo muito próprio, onde a mestria técnica, em que a liberdade da imaginação é que dita o percurso da agulha da máquina, que corre, com uma destreza quase impossível de acompanhar com a visão, toda a extensão da peça (Graça Ramos, 2003) Palmira Falcão, com atelier também em Sendim, iniciou a sua atividade em 1995, cujos trabalhos de inspiração tradicional e aplicações inovadoras, bebem também da inspiração dos “picados” das capas de honras, constituindo uma linha de produtos comuns à identidade mirandesa. É, de facto, uma evidência, que a produção de capas de honras (seguindo os padrões de sempre, numa tipologia que permanece fixa e identitária) tem conhecido um incremento e procura ao lado de outras peças de vestuário, pela conjugação de tradição e modernidade. Na verdade os artesãos mirandeses têm sabido adaptar-se aos novos tempos, inovando e reinventando a produção têxtil artesanal local, sem, contudo, a descaracterizar. O uso corrente do “picado” e o reaproveitamento de tecidos antigos locais, fazem com que a “nova” produção têxtil de Miranda do Douro seja fortemente identificada com o trabalho tradicional das capas de honras, mantendo uma ligação estreita à “imagem de marca” existente e impondo-se no mercado pelo seu valor patrimonial, afetivo e simbólico. (Graça Ramos, 2009) O único alfaiate do concelho de Miranda do Douro, residiu na Aldeia de Constantim Aureliano Ribeiro (1), falecido em 11-06-2020, o seu falecimento ocorre durante o processo de inventariação, foi o legítimo herdeiro da tradição familiar de confeção da Capa de Honras em que seu pai, Virgílio Cristal e seu avô António cristal, foram também alfaiates. Uma tradição que não era exclusiva da família pois naquela aldeia existiam seis ou sete alfaiates, todos com muito trabalho, pois além de fornecerem os pastores e a população local, produziam também para grupos etnográficos, folclóricos e de gaiteiros. É de destacar a sua importância como transmissor, por exemplo através da participação em programas televisivos, investigações, produção de peças para museus e outros equipamentos culturais. O despovoamento e a emigração reduziram substancialmente o número de clientes e o ofício foi sendo abandonado. Aureliano Ribeiro assumiu o legado familiar e deu, inclusive, cursos de formação, por entender ser muito importante a passagem de conhecimento a outras pessoas. 1 – O Mestre Aureliano Ribeiro, faleceu quando o presente trabalho já se encontrava a ser desenvolvido, tendo ainda sido possível a gravação de vários vídeos e entrevistas com o Mestre que se apresentam nos anexos (vídeos, filmografia, fotografia, sonoros). Ao longo da sua vida, Aureliano Ribeiro deu imensas entrevistas aos media (jornais, revistas, rádios e televisões) que se encontram disponíveis on-line, sendo possível visualizar alguns destes trabalhos nos anexos da candidatura. Valor de uma capa: O valor de uma Capa de Honras é determinado pelo feitio incorporado, o que requer mais ou menos dias de trabalho (jeiras) ao alfaiate para a respetiva feitura, que outrora era praticamente manual, com linhas de estambre caseiro, pois não havia máquinas de costura. Se porventura a capa se apresenta sem recortes sobrepostos, ou seja, sem decorações ou aplicações nas junções das diversas partes que a compõem, então esta peça requer menos dias de trabalho, sendo portanto menos dispendiosa, correspondendo a cerca de um dia de trabalho (uma jeira). Pelo contrário, uma capa de três jeiras, por exemplo, apresenta-se com recortes sobrepostos pelo menos ao nível do respetivo capuz, mediante o recurso a pontos efetuados em ziguezague, sendo o seu valor maior. Como referiu António Maria Mourinho (1991), foram na Terra de Miranda confecionadas capas de grande valor, chegando mesmo a requerer cerca de um mês de trabalho: Uma capa rica não é só de burel, mas leva aplicações recortadas e sobrepostas de burel roxo e preto ou de saragoça também preta e roxa e leva ainda bordada à mão de seda ou estambre caseiro de fina aplicação. Há, na Terra de Miranda, capas de 20 e 26 jeiras ou mais. António Rodrigues Mourinho, no decurso das suas investigações sobre o assunto, teve acesso a um documento datado de 1819 no qual a Câmara de Miranda estipulava o salário de quinhentos réis por fazer uma “capa de onras” bem feita e sendo lisa ou de pastor “cento e sessenta réis”. Havia capas que custavam 40 ou 50 000 réis e as mais baratas custavam 3 ou 4 000 réis, no princípio do século XX. Rezam ainda as crónicas que em 1860 foi oferecida pelo deputado às cortes José Moraes Faria de Carvalho, natural do concelho de Vimioso, uma Capa de Honras ao D. Fernando que custou 50 000 réis e que teria demorado sessenta dias a fazer, segundo o historiador José Manuel Martins Pereira que, na sua obra As Terras de Entre Sabor e Douro, publicada em 1908, ao abordar o traje regional do homem mirandês, José Manuel Martins Pereira destacou, naturalmente, a Capa de Honras a peça de vestuário mais marcante e representativa da Terra de Miranda, afirmou que deve notar-se que uma destas capas pode durar para uma geração. Há capas que custam de 40$000 a 50$000 réis, e levam a fazer de 2 a 3 meses a um alfaiate; porém as mais baratas custam de 3$000 a 4$000 réis, e também há capas que custam de 9$000 a 10$000 réis. Mas as de luxo são caríssimas. Albino José de Morais Ferreira (1845-1919) – natural de Bragança, foi funcionário adjunto do comissariado de Instrução Primária de Lisboa e diretor do Instituto João de Deus, para além de Professor de instrução primária em Freixo de Espada à Cinta – destacou-se sobretudo pela tradução para castelhano da “Cartilha Maternal”, de João de Deus, e da obra “Dialeto Mirandez”, publicada em 1898 (Imprensa Libânio da Silva, Lisboa), obra esta na qual inseriu três interessantes gravuras documentais da Capa de Honras mirandesa, referindo-se ao trabalho requerido para a sua confeção nos seguintes termos: Para o frio e chuva usa-se a célebre e peregrina Capa de Honras, que até à altura da cintura está cheia de bordados que os xastres ou alfaiates fazem. É muito engenhoso aquele trabalho pois leva umas 40 ou mais jeiras e duram uma geração, podendo custar uns 30 até 40 mil réis. Foi publicado a páginas 26/31 do nº 83 da revista Ilustração Portuguesa, em 23 de Setembro de 1907, um artigo no qual se faz referência à Capa de Honras da Terra de Miranda, com inclusão de duas fotos, referindo o autor do texto, não identificado, que é de notar que conforme a maior ou menor prodigalidade decorativa e também a matéria prima, que pode ser burel ou bom pardo, assim encarece o preço desta peça de vestuário, desde o mínimo de 2$000 réis até ao máximo de 45$000 réis. (página 27) Na atualidade – ano de 2022 - o preço de uma Capa de Honras bem decorada oscila entre 600 e 1200 euros.
  • Manifestações associadas:
    – Manifestações Associadas No ano de 2015, a autarquia mirandesa promoveu, em parceria com a Associação da Língua e Cultura Mirandesa, um evento designado Exaltação da Capa de Honras Mirandesa, com o objetivo de promover e celebrar o uso desta peça singular do traje masculino mirandês e, ao mesmo tempo, efetuar uma contagem prévia sobre a quantidade de capas de honras existentes nas povoações do concelho de Miranda do Douro, tendo-se contado com a participação de 90 portadores de capas de honras, tendo sido estimada a existência de mais cerca de 50 capas (na posse de não participantes no encontro) Para o efeito foi criado um ato simbólico, com a seguinte programação: receção, desfile com participação de danças de pauliteiros e danças mistas, missa cerimonial e cerimónia de distinção de figuras e artesãos do burel, tendo ainda como atividades paralelas a realização de exposições, oficinas de artesanato e conferências temáticas afins. Por se considerar que os objetivos prévios tinham sido atingidos aquando da primeira edição do evento, a autarquia integrou o evento na sua programação regular de atividades. O impacto deste evento foi muito relevante, com relevantes ecos na imprensa, muito tendo contribuído para a autoestima dos Mirandeses relativamente a esta peça de artesanato verdadeiramente sui generis e que, confecionada pelo falecido artesão Aureliano Cristal Ribeiro foi Prémio Nacional de Artesanato (FIL, Lisboa, 2009) assim como, confecionada por Maria Susana castro, foi objeto de oferta, em 13 de Fevereiro de 2019, ao Papa Francisco, em receção no Vaticano.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: – Estado O contexto de transmissão encontra-se ativo na freguesia de Sendim e inativo no restante território de Miranda do Douro – isto após o falecimento de Aureliano Ribeiro – reforçando-se também neste ponto a necessidade de incentivar a criação de novos ateliers da confeção da Capa de Honras em outras freguesias de Miranda. Neste sentido estão a ser criadas medidas que visam a salvaguarda urgente da confeção da capa de Honras em diferentes locais do concelho de Miranda do Douro. – Descrição Tratando-se de uma peça emblemática do vestuário tradicional mirandês, a utilização ritual e cerimonial da Capa de Honras enquadrava-se num âmbito comunitário, com a consequente aprendizagem vivenciada por imersão. Os seus agentes principais eram os mordomos e os confrades, assim como a mais idosa comunidade de homens e mulheres, verdadeiros guardiões e garantes da continuidade das tradições, reiterando a importância do uso da Capa de Honras em distintas e diferenciadas ocasiões festivas, rituais e cultuais (a posse física da peça chegou mesmo a ser transmitida em testamentos). No presente acresce um forte sentido identitário e de pertença, alargando-se o âmbito e contextos de utilização. No que à sua confeção se refere, a Capa de Honras foi sempre objeto de transmissão familiar intergeracional de alfaiates (que ocorria em várias aldeias mirandesas, nomeadamente em Constantim, numa cadeia que se acaba de quebrar devido à morte do artesão Aureliano Ribeiro, sem continuidade no âmbito familiar). Atualmente a transmissão ocorre apenas no atelier de Sendim (Maria Susana Castro já transmitiu o saber fazer à sua filha Sandra Nobre). Este contexto de transmissão ativa de saberes e fazeres, evidencia de sobremaneira a necessidade de um programa de salvaguarda urgente.
    Data: 2022/07/10
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português; Mirandês
    Agente(s) de transmissão: – Agente(s) Atualmente, as artesãs que produzem as capas de honras são: Maria Susana Castro e Sandra Nobre (mãe e filha) e Palmira Pires Falcão
  • Origem / Historial:
    Tendo em consideração a conceção e desenho da Capa de Honras mirandesa, as suas prováveis origens remetem para uma capa de asperges ou pluvial que, durante a Idade Média era sobretudo usada pelos membros do Clero durante as procissões e nas ocasiões cerimoniais especiais (batizados, casamentos e ritos de bênção do Santíssimo Sacramento). Para António Maria Mourinho (1991), esta capa teria tido a sua origem numa capa litúrgica, medieval gótica, talvez originária do mosteiro cistercense de Moreruela, em Zamora, que tinha terras e povoações inteiras em Miranda suas vassalas, assim como em Aliste, confinando com terra de Miranda pelo Norte. Hipótese que já tinha sido antes avançada pelo escritor transmontano Trindade Coelho ao destacar as suas semelhanças com a capa de asperges de algum bispo da Idade Média. Benjamim Enes Pereira por seu lado – de acordo com o que antes dissera Rocha Peixoto - partindo das características do cabeção ornamentado considerou que a Capa de Honras mirandesa – “a mais nobre peça do nosso traje popular” - retém do traje quinhentista a amplidão que vai de ombro a ombro, lembrando quer uma dalmática, quer as belas capas dos príncipes da Renascença. Graça Ramos (1999), considera a capa de honras como sendo uma congénere profana que mantém o semicírculo, a sobrecapa e o capuz da capa de asperges eclesiástica ou pluvial, que era um paramento litúrgico usado pelos bispos ou sacerdotes em ações solenes, externas à missa: sacramentos, exéquias, procissões, bênçãos, de entre outras. Por curiosidade, o seu nome advém do facto de ser uma veste usada em ocasiões que remetem para o ato de benzer por aspersão de água benta, sugerindo uma evolução de capas destinadas a proteger da chuva, para uma capa solene, apenas com função de manifestar a grandeza do prelado. Uma das obras editorais de referência sobre o vestuário em Portugal, “O Traje Regional de Portugal”, da autoria de Tomaz Ribas, 2004, faz uma descrição da capa, como “a peça mais sumptuosa do vestuário masculino português”, considerando a origem da capa do período medieval, tal como a “sua congénere religiosa, capa de asperges, afirmando que ambas as capas chega até nós praticamente sem alterações no corte e apenas com pequenas variações nos tecidos e em alguns pormenores na decoração.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direito consuetudinário local (ativo).A arte do saber fazer, a arte da confeção da Capa de Honras de Miranda do Douro, os valores e conhecimentos que lhe são associados, têm sido transmitidos por via informal e tradicional. Tal como acontece com outras tradições do “saber fazer”, trata-se de um “Direito consuetudinário local” sendo detentores dos direitos relativos à produção, os próprios artífices/artesãs que produzem as capas. Na sua confeção seguem-se os padrões de ornamentação que são característicos dos exemplares mais antigos e considerados pela comunidade como sendo os mais representativos, configurando do mesmo modo direitos de autoria coletiva de reprodução consuetudinária. Não se colocam, legalmente, questões relacionadas a direitos de autoria na confeção da Capa de Honras Mirandesa, pela razão de que o conhecimento sobre as técnicas e saberes para a execução de uma capa têm sido transmitidos e reproduzidos por via informal e tradicional." Responsável pela Documentação Coordenador - Hélder Rui Godinho da Silva Ferreira, Licenciado em Sociologia Investigador Principal – Mario Correia, Licenciado em Economia e Etnomusicologia CV Anexa-se CV de ambos os responsáveis Declaração de compromisso Anexa-se Declarações de compromisso da Exma. Presidente da Camara Anexa-se Declaração de compromisso do anterior presidente da Camara
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Hélder Rui Ferreira (Coordenador); Mario Correia (Investigador Principal)
    Função: Coordenação Técnica da Candidatura
    Data: 2022/07/10
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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