Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_2023_015
  • Domínio: Expressões artísticas e manifestações de carácter performativo
  • Categoria: Manifestações musicais e correlacionadas
  • Denominação: Canto a vozes de mulheres
  • Outras denominações: Cantada, cantaraço, cantaréu, cantarola, cantarolo, cantedo, cantiga, cantiga em lote, cantoria, cramol, moda, modas de campo, ou terno
  • Contexto tipológico: “Canto a vozes de mulheres” foi a designação criada numa sessão plenária no dia 1 de março de 2020 por cerca de 360 cantadeiras para salvaguardar e transmitir às gerações seguintes uma expressão vocal coletiva, com três ou mais vozes polifónicas sem acompanhamento instrumental, mantida viva por mulheres, por vezes com o apoio de homens nas vozes mais graves, ao longo de sucessivas gerações, em comunidades do centro e norte de Portugal continental. Nas comunidades onde se faz cantar e ouvir, o canto a vozes de mulheres tem designações distintas, sendo conhecido como cantada, cantaraço, cantaréu, cantarola, cantarolo, cantedo, cantiga, cantiga em lote, cantoria, cramol, moda, modas de campo, ou terno. Estas polifonias femininas têm uma profunda implantação histórica no Centro e Norte de Portugal, nas antigas províncias da Beira, Entre-Douro-e-Minho e Trás-os-Montes. Estes cantos de mulheres tiveram um papel central na sociedade rural agro-pastoril durante séculos, até aos anos 80-90, do século XX: faziam-se ouvir no trabalho agrícola coletivo, das sementeiras às colheitas, na apanha da azeitona, na limpeza e preservação das florestas e nas festas e rituais religiosos como a “Encomendação das Almas”. O progressivo desaparecimento desses contextos performativos conduziu ao progressivo silenciamento do canto a vozes de mulheres. No século XXI, são pouco mais de trinta os grupos de mulheres que detêm este saber cantar específico. Fazem-no em momentos de partilha de conhecimento e de divertimento coletivo, em convívios privados, ou públicos, como as festas da aldeia, em eventos de celebração da ruralidade ou turísticos. É de assinalar o facto de este “saber cantar a várias vozes” ser transmitido entre grupos de mulheres que mantêm ou reabilitam esta tradição no seio das suas comunidades dando, inclusive, origem a novos grupos de cantadeiras que se fazem ouvir em novos contextos. No século XXI, o canto a vozes de mulheres vincula as cantadeiras e os cantadores na salvaguarda do saber fazer tradicional, na coesão das comunidades em que se inserem e na desocultação do papel das mulheres nos processos e práticas culturais, nomeadamente ao atualizar o conhecimento e memória coletivos no espaço público das suas comunidades. Nestes contextos, é um identificador da cultura local e um importante agregador social, capaz de religar conterrâneos e familiares dispersos em diferentes geografias por sucessivos fluxos de migração. O canto a vozes permite às mulheres serem interlocutoras na atividade cultural local. Essa interlocução faz-se pela ocupação dos espaços públicos, pelos atos em que são mestras, pela oportunidade de assumirem papéis de liderança dentro dos grupos e das comunidades onde residem e pela oportunidade de se expressarem como um coletivo - as mulheres. De modo a enfrentar as múltiplas e rápidas transformações que ocorreram e ocorrem nas suas comunidades, nomeadamente o desaparecimento dos contextos tradicionais de transmissão do canto a vozes de mulheres, as cantadeiras detentoras desse conhecimento e memória organizam-se em grupos informais ou formais, instituindo-se como coletivos com estatutos próprios ou agregando-se a coletividades locais. Maioritariamente os elementos destes coletivos mantêm entre si afinidades familiares, de vizinhança, mas principalmente de pertença, ligação e representação a uma comunidade local. Este modo de cantar a vozes distingue-se de outros cultivados noutras geografias da Europa e constitui um testemunho-chave para a história da música em Portugal, pelas semelhanças que evidencia, por exemplo, relativamente às polifonias medievais (Caufriez, Anne, Northern Female Plyphonies, in Musiké (International Journal of Ethnomusicological Studies, edited by Keith Howard, School of African and Asian Studies, London, Semar ed., p. 147 et 148). Uma tão impressionante tradição de polifonias de mulheres, quer seja pela sua extensa presença territorial quer pela tão grande quantidade de cantadeiras deve ser reconhecida, valorizada e preservada. Existem referências a esta expressão vocal coletiva datadas do século XVII. Desde o início do século XX, foi extensamente documentado nas coleções de transcrições musicais e registos sonoros de folcloristas, etnógrafos, coletores e músicos como Gonçalo Sampaio, Armando Leça, Vergílio Pereira, Artur Santos, Michel Giacometti, Fernando Lopes-Graça, José Alberto Sardinha e Tiago Pereira.
  • Contexto social:
    Grupo(s): As Vozes de Manhouce; Cantadeiras de São Martinho de Crasto; Cantadeiras do Rancho Folclórico de Vilarinho das Quartas ; Grupo de Cantares Carvalhal de Vermilhas; Grupo de Cantares de Candal; Grupo de Cantares de Figueiredo de Alva; Grupo de Cantadeiras de Cabreiros; Cantares de Valadares; Cantadeiras de Bustarenga ; Cantadeiras de Malfeitoso; Associação Cantadeiras do Vale do Neiva; Cantares do Linho; Conjunto Etnográfico de Moldes de Danças e Corais Arounquenses ; Associação Grupo de Danças e Cantares Regionais da Feira ; Grupo de Cantares do Rancho Folclórico de São João da Serra ; Grupo das Cantadeiras do Terras de Arões ; Cantadeiras de Sobral do Grupo Recreativo, Cultural e Social de Sobral ; Grupo de Cantares da Associação "Os Amigos de Levides" ; Grupo de Cantares da Associação Recreativa, Cultural e Social de Paredes Velhas (APAVE); Grupo de Cantares de Pindelo dos Milagres ; Grupo de Cantares Vozes d’Aldeia ; Grupo de Trajes e Cantares de Cambra ; Grupo Etnográfico de Trajes e Cantares de São Cristóvão de Lafões ; Grupo Etnográfico Rusga de Joane ; Grupo de Cantares do Rancho Folclórico da Casa do Povo de Arouca ; Grupo de Cantares do Rancho Folclórico de Fornelo do Monte ; Grupo de Cantares do Rancho Folclórico Sever do Vouga ; Grupo de Cantadeiras Flores da Beira; Associação «EmCanto» ; Grupo Cantares de Maçadeiras do Orfeão Universitário do Porto (OUP) ; Cramol; Grupo Folclórico da Universidade do Minho ; Mulheres do Minho ; Segue-me à Capela ; Grupo das Cantadeiras do NEFUP ; Sopa de Pedra ; Vozes Tradicionais Femininas da Casa da Comarca da Sertã ; Grupo Associativo de Divulgação Tradicional de Forjães
  • Contexto territorial:
    Local: Centro e norte de Portugal continental
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: O canto é realizado sem regularidade definida, com exceção das localidades em que faz parte das festividades locais ou do ritual da Encomendação das Almas, na Quaresma
    Data(s): Sem datas determinadas
  • Caracterização síntese:
    O canto a vozes de mulheres é uma manifestação cultural que dá voz a mulheres em diferentes localidades rurais do centro e norte de Portugal há sucessivas gerações e pode também encontrar-se em comunidades e(ou) grupos geograficamente distantes, mas que de alguma forma tiveram, ao longo da sua história, contacto com essas práticas. São as mulheres que, em grupos só de mulheres ou mistos, cantam as vozes que formam a polifonia vocal, sendo por isso as detentoras do conhecimento diferenciador desta prática. Valorizam uma distribuição não equitativa das cantadeiras pelas vozes cantantes, numa relação que pode ir de 15 elementos na voz mais grave para um, dois ou três nas vozes mais agudas. Esta característica performativa justifica que em cada um dos grupos haja, na maior parte dos casos, apenas duas ou três cantadeiras com competências para realizar a polifonia, na voz mais aguda. Face a essa escassez de cantadeiras detentoras desse saber específico, em situação de luto ou doença destas cantadeiras, o grupo fica impedido de realizar as polifonias a três e mais vozes. Os grupos percebem essa fragilidade e têm consciência da urgência em desenvolver iniciativas no sentido de instruir novas cantadeiras na competência específica da sobreposição de vozes. Por isso, uniram-se na Associação de Canto a Vozes - Fala de Mulheres para discutir e implementar estratégias de salvaguarda. A complexidade deste saber-fazer musical, que implica a aquisição e aperfeiçoamento coletivo de um amplo leque de competências musicais, tem dificultado esse processo de transmissão. É de notar que tradicionalmente, as mulheres aprendiam a cantar de ouvido observando, imitando e seguindo as advertências das cantadeiras mais experientes. No século XXI, o contexto de transmissão que ocorria no trabalho coletivo ou doméstico vem a ser substituído pelos contextos de preparação ou ensaio (este último em processos com mais formalidade). Todavia, o processo de transmissão continua a ser oral, através da escuta e reprodução reiterada coletiva. Nas localidades onde o canto a vozes de mulheres se canta e faz ouvir, esta prática assinala os momentos de celebração dessa comunidade e do seu passado. Marca presença nas festas e rituais locais como, por exemplo, a missa dominical que se realiza em dias com significado para essa população. Marca igualmente presença em acontecimentos laicos de âmbito cultural, nomeadamente, os momentos de revivificação do passado rural, como as feiras oitocentistas, os encontros de cantadeiras, as desfolhadas, os festivais e as festas de promoção da agropecuária local. Sendo uma memória e competência de mulheres, o canto a vozes habilita-as a serem interlocutoras nessa vida social local que acontece no espaço público, no século XXI. Os contextos de realização do canto a vozes são também contextos de salvaguarda desta prática musical. Todavia, é no contexto da preparação dos grupos para as apresentações públicas, contextos esses cuja regularidade e duração depende de grupo para grupo, que a transmissão de conhecimento se faz, atualmente, apesar de haver um número expressivo de cantadeiras que iniciou a aprendizagem deste repertório em contexto doméstico, de trabalhos agrícolas familiares ou de outros trabalhos coletivos como a replantação da floresta. Cada um dos grupos constituiu o seu repertório a partir: (i) da aprendizagem direta junto de detentoras da tradição (por vezes dentro do próprio grupo); (ii) de cancioneiros (com particular recorrência o Cancioneiro Minhoto de Gonçalo Sampaio ou os Cancioneiro de Cinfães, Cancioneiro de Resende e Cancioneiro de Arouca, de Vergílio Pereira); (iii) de uma combinação de ambos; (iv) de registos áudio e vídeo, disponíveis em diferentes suportes, publicados ou inéditos, com destaque para os coligidos por Artur Santos, Michel Giacometti, Vergílio Pereira, José Alberto Sardinha, e, mais recentemente, Tiago Pereira. O repertório e, nalguns casos, o traje rural no qual sobressai o ouro com que as cantadeiras se adornam, é uma marca distintiva dos grupos entre si, apesar de haver grupos como o das Cantadeiras de Bustarenga ou Cantadeiras de Malfeitoso que não possuem um traje específico. Cada um dos grupos preserva um conjunto de modas específico e, inclusive, quando partilham com outros grupos idênticas melodias e(ou) versos, cantam-nos diferentemente, seja na agógica ou na ornamentação. Alguns grupos estão ligados a associações ou coletividades, ranchos folclóricos e/ou grupos de folclore e, maioritariamente, os elementos destes coletivos mantêm entre si afinidades familiares, de vizinhança, mas principalmente de pertença, ligação e representação de uma comunidade local. A maior parte dos grupos não tem ensaiador ou maestro, sendo uma das cantadeiras ou cantadores a assumir a coordenação do canto a vozes. Desconhece-se a origem deste canto. Alguns estudiosos colocam a hipótese de terem origem eclesiástica (Bonito 1957) e anterior ao século XVII (Sampaio 1940). Todavia, em narrativas de viagem há referências a grupos de mulheres a cantar polifonias nos campos (Montebelo 1660).
  • Caracterização desenvolvida:
    O canto a vozes de mulheres é cantado sem acompanhamento instrumental por três a cinco vozes (ou tessituras) sucessivamente sobrepostas, da mais grave para a mais aguda, em movimento predominantemente paralelo, numa estrutura polifónica que se repete a cada nova estrofe. Entre si, as vozes formam linhas polifónicas onde predominam as terceiras, quintas, sextas e(ou) oitavas paralelas, a que se junta, por vezes, outra voz mais aguda ou mais grave, num tempo que tende a distender-se à medida que entra cada uma das vozes, prolongando-se frequentemente em suspensão final. As mulheres entoam uma melodia principal que serve de ponto de apoio às outras vozes, sem, todavia, apresentar entre elas atrações harmónicas que lhe deem uma tonalidade fixa e todas as vozes “abrem em leque” numa suspensão final, a qual é uma das relevantes caraterísticas das polifonias de mulheres do centro e norte de Portugal. Como referiu o folclorista Gonçalo Sampaio nos anos 30 do século XX a propósito das polifonias das mulheres do Minho, observam-se efeitos de pedal (manutenção de certas vozes ao longo de várias sílabas) em determinados momentos da interpretação da melodia. Uma caraterística das polifonias de algumas localidades é a existência de uma quarta voz que subitamente se sobrepõe no final do canto e que se designa por “guincho” ou mesmo uma quinta voz, o “arrebite”. Estudiosos revelam que historicamente, quando o canto a vozes se realizava nos campos, ou nos caminhos para os trabalhos, era frequentemente intercalado por um refrão – muitas vezes sobre um jogo de vogais (o li li lai li li lai) – (Caufriez, Anne, Female polyphony in Northern Portugal, in Multipart Music Making and the Construction of Ideas, Contexts and Contenst, ICTM, Study Group “Multipart music”, Newcastle, Cambridge Scholars Publishing, 2013, p. 120-129) e/ou terminado com um grito, designado “apupo” ou “apupar” (Giacometti, Michel e Lopes Graça, Fernando, Portuguese Folk Music, CD Beiras, vol. 3, Ministério da Cultura, Strauss, Portugalsom 1998). A terminologia local ou nome dado às vozes pelas cantadeiras varia de aldeia para aldeia ou de região para região: cantada, cantaraço, cantaréu, cantarola, cantarolo, cantedo, cantiga, cantiga em lote, cantoria, cramol, moda, modas de campo, terno ou as nossas cantorias. A diversidade terminológica relaciona-se com a significativa diferenciação local na interpretação destes cantos. As mulheres (nas últimas décadas, por vezes, com a participação de homens na voz mais grave) organizam-se em grupo, distribuindo de modo não equitativo as cantadeiras pelas vozes e pelo espaço acústico. Os grupos dispõem-se frequentemente em semicírculo (numa distribuição não aleatória, que privilegia os agudos ao centro e atrás e os graves em redor e à frente, como acontece em São Martinho do Crasto (https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1576977649_saomartinhodecrasto_estelinho%C3%A9galego.mp4 ), ou em coluna (com as vozes mais graves à frente e as mais agudas atrás, como acontece com o grupo de Arões (ver exemplo https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetailsTMP.php?ecid=9387&subtype=tmp&subtipologia=2 ). As vozes mais agudas, localmente designadas “guincho”, “voz alta”, “erguer”, “bota fora”, “voz de fora”, “de cima”, “descante”, etc. são o principal elemento de diferenciação desta manifestação de outras práticas vocais coletivas cantadas em uníssono ou em terceiras paralelas. Em cada uma das comunidades onde o canto a vozes se faz ouvir há sucessivas gerações, existe um acordo tácito relativamente à sonoridade final do grupo de cantadeiras o qual se sobrepõe ao acordo em relação ao número total de cantadeiras ou ao número de cantantes por voz polifónica. Uma cantadeira com um vocálico “ramalhudo” pode ser considerada suficiente para a realização da 3ª voz polifónica. Na maior parte das comunidades onde o canto a vozes se faz ouvir há sucessivas gerações, há também um acordo tácito relativamente à valorização da individuação tímbrica de cada uma das vozes (por exemplo, em Figueiredo d’Alva pessoas que dentro das suas casas ouvem a encomendação das almas, apercebem-se se faltar uma ou outra voz cantante no grupo de amentadores que à noite se faz ouvir nas ruas e balcões durante a Quaresma). A sonoridade resultante da sobreposição das vozes polifónicas obedece a um entendimento construído ao longo de gerações entre cantadeiras e a comunidade onde se fazem ouvir. Por vezes, os grupos interrompem o canto para corrigir alguma cantadeira cuja voz está, dizem, a “ralhar” com as outras. A iniciativa de interrupção parte normalmente de uma cantadeira mais velha, ou daquela que “inicia a cantiga”. É feita a advertência e retomado o canto, sem gesto corporal ou outra indicação que para um observador externo sugira o fim da pausa. Cada um dos grupos cria a sua sonoridade a partir de um conjunto de “modas” ou “cânticos” - estruturas melódico/rítmico/poéticas - (re)conhecidas pela comunidade. Cantadeiras que aprenderam a cantar no contexto dos trabalhos agrícolas, fazem um “golpe de garganta” no final das suspensões, interrompendo subitamente, e com uma ligeira queda, a última articulação da voz (https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1549701400_Morena_cantada%20dentro%20da%20capela.mp4 ) Trata-se da aprendizagem de uma prática coletiva, sem apoio instrumental, sem registo escrito, sem um indicador externo de altura sonora. As cantadeiras cantam sem regência exterior. É em geral o caso das músicas tradicionais cuja aprendizagem se faz exclusivamente por via oral e por imitação dos que sabem cantar. Este canto é habitualmente iniciado por uma voz a solo, o que permite ao grupo saber qual a cantiga escolhida, a altura da melodia e a velocidade do andamento bem como a intenção expressiva adequada à situação e à expectativa da comunidade alvo (ver https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1581032423_EITOFORAMANHOUCE.mp4 ). Este começo, de duração variável, pode ser cantado sobre uma palavra (ou parte dela), ou por várias palavras compondo um verso (https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1577118753_aquelajanela.mp4 ou https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1577118845_alagarta.mp4 ). Neste canto predomina o “registo de peito”, por vezes com uma elevada pressão subglótica (https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1564222467_PT_INETMD_UA_JV_04.mp4 ou https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1550688241_cantar_03.mp4), e valoriza-se a individualidade vocálica das vozes e, como foi referido atrás, uma distribuição não equitativa das cantadeiras pelas vozes polifónicas, havendo um número maior de cantantes nas vozes mais graves e por vezes apenas uma cantadeira para a voz mais aguda (https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1558346548_PT-INETMD-UA-JV-518.mp4 ). No canto a vozes, não é apenas o modo da melodia principal a determinar as notas da escala melódica. Por vezes, a polifonia em quintas perfeitas paralelas exige o alargamento do léxico providenciado por essa escala. Por exemplo, no final do refrão da moda “O gato rebéubéu” a cantadeira que faz a voz “botar por cima” (3ª voz) continua a formar quintas perfeitas sobre o “encher” mesmo quando este canta o 4º grau do modo Jónio, alterando assim a quarta nota da escala (https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1546979970_2_O%20gato%20reb%C3%A9ub%C3%A9u.mp3 Isto significa que estas polifonias têm regras específicas de realização. As polifonias desenvolvem-se a partir de melodias às quais se sobrepõem intervalos fixos. É precisamente esta liberdade de interpretação, utilizando por vezes micro-intervalos ou para-tonalidades, que define toda a sua originalidade. A documentação mais antiga encontrada, refere grupos de mulheres. Em documentação do século XX, é referida, por vezes, a presença de homens, sempre integrados em grupos mistos, sendo que, ao contrário das mulheres, a sua participação surge circunscrita a uma voz (durante o trabalho de campo realizado, foi recordado um cantador homem na voz que faz uma terceira acima da voz inicial). Desconhece-se a razão pela qual se deu a substituição de grupos de mulheres por grupos mistos. Provavelmente, aconteceu por influência dos grupos folclóricos locais. A presença de um ensaiador ou maestro é frequente nos grupos identificados nas tipologias 2, 3 e 4, no campo em Especificações. Relativamente à tipologia 1, entre 1916 e 2021, apenas o grupo Cantadeiras do Rancho Folclórico de Vilarinho das Quartas integrava um elemento com esse papel. Desconhece-se a razão pela qual foram integrados ensaiadores ou maestros. Provavelmente, aconteceu também por influência dos grupos folclóricos ou grupos corais locais. O canto a vozes é um repertório de atos performativos do qual fazem parte a sobreposição de vozes, a individuação vocal e o conhecimento de “modas”, “cantigas” ou “cânticos” específicos. A competência de sobreposição de vozes assenta num conhecimento tácito, não verbalizável, o qual é incorporado na prática e é explicitado na ação. Por isso, os processos de transmissão deste conhecimento exigem a reiteração da experiência coletiva. É a prática dentro do coletivo do grupo que instrui as cantadeiras sobre o papel da sua voz. Predomina no canto a vozes um repertório silábico que pode ser ornamentado com pequenos melismas e uma articulação frásica pontuada pela respiração simultânea de todas as vozes no meio de frases, por portamentos e suspensões. As letras expressam imagens e vivências do quotidiano de mulheres ao longo de sucessivas gerações. Por vezes, são como que ‘manuais de instrução’ de comportamentos e sociabilidades destinados às jovens mulheres. Os versos narram histo´rias de mulheres e dos seus quotidianos. Fazem-no frequentemente por sugesto~es metafo´ricas (O´ rosa de Alexandria, onde deixaste o cheiro, deixei-o na tua cama, na renda do travesseiro). Outros versos, partilham angu´stias e adverte^ncias centrais na vida das mulheres, como as expressas nos seguintes versos, onde a experie^ncia do amor - representada pela meta´fora do “encher o ca^ntaro de flores” -, e´ associada a` dos “cuidados” e dos “cravos” - aqui no duplo sentido de pregos e flor com essa designac¸a~o - (Fui a` fonte dos amores, passei pela dos cuidados; Enchi o ca^ntaro de rosas, fiz a rodilha de cravos). Os versos abordam assuntos relacionados com os papéis sociais das mulheres, os seus temores, tristezas, alegrias e amores. No que se refere a` mu´sica, o canto a vozes de mulheres preserva um conhecimento ancestral patente nos modos em que as melodias se constroem, ou nos ritmos assime´tricos. A arte de fazer/performar o canto a vozes e´ um conhecimento incorporado nas cantadeiras transmitido ao longo de va´rias gerac¸o~es atrave´s de atos musicais. O canto a vozes é, nas localidades onde se faz ouvir, uma âncora da memória coletiva na qual as mulheres assumem um papel de destaque e reconhecimento social. O reperto´rio musical, poe´tico e performativo e´ assim um arquivo de memo´rias. As modas, cantigas ou cânticos são em si mesmas uma manifestação de património cultural imaterial, uma vez que rememoram os trabalhos agrícolas e as sociabilidades das mulheres que viveram na sociedade agrária tradicional. Incorporam também experiências coletivas da chegada do comboio, do trabalho nas minas de volfrâmio, da plantação da floresta, do quotidiano das mulheres, entre outras. O canto a vozes de mulheres narra a história pela voz e ação de mulheres, sendo a sua salvaguarda um modo de representação e de reconhecimento das mulheres e do seu papel na conservação e transmissão do património cultural. Nestas modas ou cânticos polifónicos, as cantadeiras tendem a não alterar a melodia sobre a qual se erguem as vozes polifónicas. Já relativamente à parte poética, têm uma postura mais flexível, integrando por vezes novos temas e versos. Todavia, em público tendem a não explicitar essa criação individual. A esse manancial de modas e cânticos tradicionais locais, os grupos, por vezes, juntam “modas” ou “cânticos” novos, ou seja, integrados recentemente no seu repertório. Esta integração de novo repertório decorre frequentemente da partilha com grupos de outras localidades. A criação de novas “modas” ou “cânticos” não é uma prática reconhecida nem pelos grupos nem pelas comunidades onde estes estão inseridos, apesar de haver grupos que cantam versos da autoria de uma ou mais das suas cantadeiras, como foi referido. O envelhecimento das cantadeiras e a escassez de cantadeiras com competências vocais para a realização das vozes mais agudas, tem impelido os grupos à redução do número de vozes polifónicas. A prática do canto a vozes exige uma distribuição não equitativa de cantadeiras pelas vozes cantantes - numa relação que pode ir de 15 elementos na voz mais grave para um, dois ou três nas vozes mais agudas - e a complementaridade de competências vocais e conhecimentos específicos: um conhecimento partilhado dentro do grupo por todas as cantadeiras das mesmas modas/canções; um conhecimento prático, competências musicais e vocalidades exclusivos das cantadeiras de cada uma das vozes polifónicas. De entre as mais de 360 cantadeiras que em 2020 se faziam ouvir no centro e norte de Portugal continental, cerca de 60 detinham o conhecimento e as competências vocais para cantar a 3ª voz e apenas cerca de 15 detinham o conhecimento e as competências vocais para cantar a 4ª voz. É urgente a transmissão deste conhecimento e competências musicais de modo a assegurar a sua realização futura. No se´culo XXI, os principais os atos pu´blicos ocorrem (i) em encontros de canto polifo´nico os quais reu´nem, frequentemente, grupos de diferentes localidades, (ii) nas festas religiosas e seculares locais, onde este canto faz parte das tradic¸o~es locais, (iii) em atos como a celebrac¸a~o da missa em dias especiais para certas comunidades e o ritual da encomendac¸a~o das almas que ocorre em certos dias da quaresma.
  • Manifestações associadas:
    No século XXI, o canto a vozes de mulheres faz-se ouvir em diferentes contextos, associando-se a diferentes manifestações culturais: 1. Festas laicas e rememorações coletivas do passado da comunidade: Contextos relevantes de participação dos grupos de canto a vozes de mulheres no século XXI são as festas populares locais, ou os eventos realizados no espaço público de rememoração coletiva de tradições locais ou trabalhos agrícolas comunitários, como as desfolhadas, eventos estes que acolhem e integram os emigrantes locais aposentados ou em período de férias. No século XXI, o canto a vozes de mulheres associou-se a eventos como sejam as rememorações/recriações do passado realizadas fora das localidades dos grupos. Eventos como a “Feira à moda antiga” realizada em Viseu, constituem uma oportunidade performativa para cantar em espaço aberto para grupos como o Grupo de Cantares de Pindelo dos Milagres. 2. “Encomendação das almas”, Ementa das almas” ou “Cantar às almas”. O canto a vozes faz parte dos rituais do culto às almas que se realizam à noite ou de madrugada ao longo de um percurso pelas ruas, balcões ou encruzilhadas, em dias específicos da quaresma, no concelho de São Pedro do Sul nas localidades de Figueiredo de Alva (https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1558022216_PT-INETMD-UA-JV-537.mp4 ), Sobral de Pinho (https://anossamusica.web.ua.pt/anm/files/1536869429_Amentar%20das%20almas_GCSPinho_Alerta.mp4 ) e no concelho de Vouzela, na localidade de Alcofra. Ativistas pela revitalização desta manifestação quaresmal, mobilizaram detentores da tradição local na transmissão do conhecimento desses rituais aos mais novos. Cânticos a três vozes, como os ‘Martírios do Senhor’ ou o “Grito das Almas”, foram transmitidos ao longo de vários ensaios aos elementos dos grupos de canto a vozes locais e a ex-emigrantes aposentados que após vários anos no estrangeiro regressaram à sua terra. Desde há mais de uma década, durante a quaresma, os grupos formais de canto a vozes e outros elementos da comunidade local saem à rua, de noite, para repetir este ritual, cantando nesse processo cânticos a três vozes, em terceiras e quintas paralelas. 3. Missa dominical: Em missas do ritual católico apostólico romano cujo calendário tem um significado específico para a comunidade local faz-se ouvir o canto a vozes. Tal acontece na Missa de Ano Novo em Manhouce, concelho de São Pedro do Sul, uma data que assinala a partida/despedida dos emigrantes da aldeia para os países de acolhimento. Nesta missa o canto a vozes é realizado pelos grupos formalmente instituídos (As Vozes de Manhouce e o Rancho Folclórico da Casa do Povo de Manhouce, trajados com a indumentária própria dos grupos) e por elementos da comunidade que de modo informal se juntam nos cânticos a três vozes. 4. Festas religiosas locais: Os grupos de canto a vozes participam, por vezes, no programa das festas do santo padroeiro ou da romaria da sua localidade, normalmente ao lado dos ranchos folclóricos e em performances de apresentação (i.e. num palco, perante uma audiência, havendo uma clara separação entre audiências e performers), como por exemplo o grupo de Cantadeiras de Sobral de Pinho ou o grupo de Cantadeiras de São Martinho do Crasto. Além dessas participações, por vezes, os grupos de canto a vozes participam na missa de celebração desse padroeiro. 5. Encontros de coros e festivais folclóricos. Estes contextos de apresentação pública dão, por vezes, palco ao canto a vozes de mulheres
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: A transmissão é um processo que decorre ao longo de vários anos. Passa pela memorização e incorporação individual de um complexo conjunto de conhecimentos e competências vocais e pela articulação funcional no coletivo do grupo. Todavia, a iniciação neste processo não assegura a sua conclusão: trata-se de um processo de transmissão extremamente lento. As cantadeiras mais velhas (com uma idade próxima ou superior aos 70 anos) identificam no seu processo de aprendizagem a escuta frequente de outras cantadeiras e a prática reiterada do canto monitorizada pela mãe, avó ou tia ou por outras cantadeiras no contexto público dos trabalhos agrícolas ou da floresta. As cantadeiras mais jovens identificaram no seu processo de aprendizagem a escuta e prática nos momentos de ensaio dos grupos, contextos privados de preparação. Entre 2016 e 2021, período durante o qual foi feito o diagnóstico com vista a este pedido de inscrição do canto a vozes de mulheres na Lista Nacional do Património Cultural Imaterial, o processo de transmissão ocorreu dentro de cada uma das comunidades, nos múltiplos espaços públicos em que o canto a vozes de mulheres se fez ouvir (apesar de durante o período de contenção da pandemia Covid19 estas manifestações públicas terem sido interrompidas, com escassas exceções): nas festas locais, em missas dominicais, em rituais locais como a encomendação das almas, em encontros de cantadeiras e/ou de grupos folclóricos, na rememoração de trabalhos coletivos como as desfolhadas ou as “arrincadas do linho”. Todavia, essa transmissão em contexto comunitário não assegura a continuidade da prática. A efetiva transmissão do canto a vozes de mulheres exige a prática reiterada ao longo de anos no coletivo do grupo. De modo a garantir que o canto a vozes de mulheres seja cantado no futuro os grupos convidam jovens a participar nos ensaios (contextos privados de transmissão e aperfeiçoamento de competências e conhecimentos). Este processo é dificultado pelo pouco valor que a maior parte das jovens expressa pelo canto a vozes de mulheres e pela mobilidade imposta na prossecução dos seus estudos. Cinco grupos não-formais - Cantadeiras de São Martinho de Crasto, Grupo de Cantares de Candal, Cantares de Valadares, Cantadeiras de Bustarenga, Cantadeiras de Lageal – não conseguiram atrair jovens cantadeiras durante o período de 2016-21. Poucos foram os grupos que durante o período de 2016 a 2021 conseguiram transmitir às novas gerações o conhecimento que as habilita a cantar a vozes. Os grupos Cantares de Figueiredo de Alva, Cantares de Carvalhal de Vermilhas (a jovem Lara Batista canta a voz de baixo, esperando-se que nos próximos anos possa aprender a cantar o “descante”), Cantadeiras de Vilarinho das Quartas e Cantadeiras do Vale do Neiva (uma jovem - Rita Pereira –iniciou a realização da primeira voz e do guincho), asseguraram, cada um deles, processos de transmissão a uma jovem. Foi excecional a dinâmica de transmissão operada dentro do grupo As Vozes de Manhouce. O prestígio e envolvimento pessoal da sua solista, Isabel Silvestre, são fatores que explicam que, durante este período, tenham atraído o interesse de um ex-elemento, Lúcia e 5 jovens cuja voz polifónica ainda não está especificada: Ana Catarina, Núria, Leonor, Sónia e Sofia. Durante o período de 2016 a 2021, a iniciação da transmissão de conhecimento e competências musicais necessárias à prática do canto a vozes de mulheres – em contexto de ensaio e em contexto de workshop - fez-se sobretudo por ação dos grupos da tipologia 4 (ver as Especificações no item “Contexto de Produção”): “Grupos que foram criados em contexto urbano por estudiosas e entusiastas do canto a vozes de mulheres e militantes pela desocultação do papel das mulheres na produção cultural (não estão ligados a uma comunidade de base territorial, nem a uma linhagem familiar de cantadeiras)”. Todavia, no século XXI, é no contexto de ensaio e performance que a transmissão é mais comum. A transmissão deste conhecimento, deste “modo de cantar”, é também familiar: tanto de mãe para filha, como de avó para neta, ou entre irmãs. Algumas cantadeiras sustentam que aprenderam a cantar a vozes dentro do grupo e em casa, nomeadamente com a avó. Tal é o caso de Ana Rita, que sustenta ter aprendido a cantar dentro do grupo As Vozes de Manhouce ao mesmo tempo que, em casa, se aperfeiçoava com a sua avó: "A minha mãe não sabia cantar, a minha avó sabia. Então, depois que eu comecei lá no grupo, comecei a sentar-me um bocadinho mais com ela: Avó cante-me esta música para eu saber como é'. Então ela cantava e a música ficava [na memória] e eu depois ia ao ensaio e dizia: 'olhem a minha avó canta assim'. Durante a entrevista, a avó Altina que estava sentada ao lado comentou: "Eu treinei-a muito aqui em casa!" (entrevista 2017, ver https://anossamusica.web.ua.pt/ecdetailsTMP.php?ecid=7887&subtype=tmp&subtipologia=2). A aprendizagem por imitação de alguma voz cantante e memorização. Em contexto de aprendizagem, mulheres e homens frequentemente começam por memorizar a melodia principal e os versos que lhe estão associados. No caso das mulheres, dependendo da qualidade vocal de cada uma, prosseguem com a aprendizagem de uma das vozes que constitui a polifonia.
    Data: 2021/03/28
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Todas as cantadeiras podem ser agentes de transmissão. Contudo, de entre estes, é destacado o papel das detentoras da tradição mais velhas ou mais experientes.
  • Origem / Historial:
    Desconhece-se a origem das cantadas, cantaraços, cantaréus, cantarolas, cantarolos, cantedos, cantigas, cantigas em lote, cantorias, cramois, modas, modas de campo, ou ternos, designadas agora “canto a vozes de mulheres”. A questão da origem deste canto não tem uma resposta, apenas se desneham hipóteses. As polifonias de mulheres podem ser uma criação num determinado local, mas podem também ser a adaptação de cantos ouvidos noutro lugar. Elas foram criadas pelas cantadeiras ou recriadas por elas de modo original, sendo esta transformação livre que determina todo o seu interesse sobretudo para o agenciamento e registo das vozes. O canto de mulheres a duas, três ou mais vozes em patamares (Lopes-Graça 1953), ou seja, com vozes sobrepostas em movimento paralelo, foi descrito por sucessivos viajantes, etnógrafos e folcloristas. O registo mais antigo de que temos conhecimento deve-se ao Marquês de Montebello e refere-se a raparigas que na região do Minho cantavam na rua em coro, impressionando com as suas vozes os “forasteiros” que por ali passavam: “sucede muchas veces a los forasteros, que passan por as calles, particularmente en las tardes del Verano, parar, y suspenderse, eschuchando los tonos que à coros cantan, con fugas y repeticiones, las moçuelas, que para exercitar la labor de que viven les es permittido, por tomar el fresco, hacerla en la calle” (1660, 44 cit. in Pimentel 1905, 34). O papel das mulheres no canto foi também destacado por Teófilo Braga e Carolina Vasconcelos (cit. in Sampaio 1931, 5). Segundo Teófilo Braga, “uma caraterística fundamental da poesia popular de Portugal e da Galiza que, com as Astúrias constituem uma unidade étnica, é esta iniciativa da mulher na improvisação poética e no canto” (Neves e Campos 1893, VI). Numa palestra proferida na cidade do Porto, António Arroio sustentava ser a “harmonização” vocal das canções em terceiras paralelas um traço da música do norte do país, onde se realizavam “coros a duas vozes, em terceiras, terminando no acorde perfeito, atacadas a dominante e a oitava na cadência final” (1898, 14). Duas décadas depois, Armando Leça sustentava que no extinto concelho de Lafões “rareia a voz masculina [...] se bem que a ouvisse ajuntada a um coro de velhas serranas” (Leça 1922, 52) e Gonçalo Sampaio afirmava que há certos cantos religiosos que “pertencem exclusivamente às mulheres” (Sampaio 1931, 8), constatando que “as maçadeiras do Minho possuíam um canto próprio, um coro de trabalho” (Sampaio 1933, 355). Informa ainda que “as notas do acorde final [...] são extremamente prolongadas [...] o movimento das vozes é sempre directo, e em algumas passagens oblíquo, produzindo-se sequências de 5as [...] além dos intervalos consoantes, as hábeis cantadeiras minhotas empregam também dissonâncias, por pedal, antecipação ou retardo” e “quartos de tono, em certas passagens” (Sampaio 1940, xx-xxi). De igual modo, o diplomata Rodney Gallop observou que “Desde os séculos XII e XIII têm as mulheres de Portugal sido portadoras de uma tradição cuja antiguidade e origem é impossível avaliar. Já no tempo de D. Dinis notaram viajantes estrangeiros que no Noroeste da Península, ao contrário do que sucedia em outros países, as mulheres cantavam mais que os homens. O mesmo se verifica ainda hoje. Em toda a parte onde vi dançar e cantar, sempre que não havia música instrumental, eram as mulheres que a substituíam, [...] e que, com as suas vozes estridentes, agudas, nasaladas, insuportáveis numa sala, mas adequadas ao ar livre, onde a voz tem de ir longe, cantam versos intermináveis” (Gallop 1960, 24-25). A documentação coligida pelos etnógrafos e folcloristas ao longo de mais de 150 anos, revela que esta forma de cantar teve expressão no centro e norte de Portugal, como refere Armando Leça: “estes corais, verdadeiramente a três vozes, e aos quais se junta na cadência final o rebique ou guincho [...] não são privativos da gente minhota [...] ouvem-se também em Trás-os-Montes, Beira Alta” e “Beira Litoral” (Leça 1946, 130 e 114-17). A relevância do repertório polifónico justifica que no esboço de classificação da canção popular portuguesa Fernando Lopes Graça tenha proposto a divisão entre “canções monódicas” e “canções polifónicas” (1992 [1953], 44). “Harmonização” foi um termo utilizado pelos observadores externos em finais do século XIX e no início do século XX para referir o canto a vozes em patamares, apesar de não corresponder ao modo de progressão das vozes polifónicas. Foi assim que o folclorista Armando Leça se referiu ao modo de cantar na região do Minho: “a gente minhota [que] também sabe cantar vagarosamente e sentida[mente]: embalos tristonhos, toadas dolentes e em seus coros harmoniza por instinto com a ‘voz ao de cima’, o ‘botar o alto’ ou o ‘botar o terno’”. Armando Leça usou o mesmo termo para designar a competência de sobreposição das vozes, quando escreveu sobre as polifonias no extinto concelho de Lafões (atualmente, concelhos de Oliveira de Frades, S. Pedro do Sul e Vouzela): “Agrupadas, achegadas, as moçoilas assim cantam. Uma levanta o ‘descante’ – melodia principal ou copla quando há estribilho -, outras após dois ou três compassos quando não é copla ajuntam-se nas ‘falas’ – reforço do ‘descante’, ou ‘voz harmónica inferior’ – e numa das divisões da melodia entra o ‘erguer’, para preencher a meia cadência melódica e segue até ao final, ou entra na dominante da cadência perfeita, fazendo quase sempre um fragmento de escala descendente a procurar notas do acorde final” (Leça 1922, 48 e 51-2). Se o canto a vozes de matriz rural é referido desde o século XVII, a descrição detalhada, transcrição musical, ou registo sonoro datam de meados do século XX. As primeiras transcrições musicais e poéticas acompanhadas de descrição detalhada dos papéis das mulheres no canto a vozes de matriz rural deve-se ao botânico Gonçalo Sampaio. Sampaio descreveu os ternos, designação émica dos grupos de mulheres e do canto polifónico realizado por um ou dois baixos, um meio, um guincho e um sobreguincho (1931:8). Armando Leça registou o som de modas a três, quatro e cinco vozes na Recolha Folclórica, um levantamento sonoro de música de matriz rural de dez das onze províncias que administravam o território continental, em 1939 e 1940, uma coleção que permanece inédita. Nos cadernos de campo transcreveu (i) três modas de Rocas do Vouga a três vozes, com entradas sucessivas fazendo terceiras e quintas paralelas entre si (o encher, fala fora e alto ou falsete); (ii) um coro a três vozes entoado por mulheres “minhotas” enquanto espadelavam o linho; (iii) um “coral” que ouviu em Esposende: “O baixo entra no primeiro verso; o meio, em fabordão de terceiras, no 2º; espécie de desenvolvimento neumático – la-rai – descendente, até à prolongada suspensão do fim tonal; entrada do guincho na cadência perfeita, oitavando o baixo na suspensão. Nalgumas regiões, o griteiro do apupo remata o coro”; (iv) um “coro em terno” observado em Besteiros, concelho de Amares, onde predominam as terceiras e oitavas paralelas (Leça c.1946, 114-117, 135 e 155). Mas será com o levantamento do maestro Vergílio Pereira no centro e norte de Portugal, sob o patrocínio da Comissão de Etnografia e História do Douro Litoral e da Comissão de Etno-Musicologia da Fundação Calouste Gulbenkian que se evidencia a extensão do canto a vozes em patamares em meados do século XX. O autor descreveu os termos émicos que as práticas e tipologias vocais adquiriam nas diferentes localidades onde eram praticadas. A sua coleção esclarece sobre as especificidades performativas desta forma de cantar, nomeadamente no que se refere ao número de vozes cantantes para cada uma das cordas vocais. Registando primeiro na pauta de música e, depois, num gravador de fita, Vergílio Pereira coligiu ao longo de dezasseis anos cantas, cantaraços, cantaréus, crámois, lotes, ternos, romances e outras cantigas a duas, três e mais vozes, cantados quase exclusivamente por mulheres. Na introdução ao Cancioneiro de Cinfães, Bertino Daciano registou uma das raras descrições da disposição das cantadeiras em performance: “Relativamente às cantas, as mulheres tomam a posição de quem se projecta para a frente, colocam as mãos em forma de concha, de uma e outra banda da boca, como para projectar a voz a maior distância, aproximando os corpos umas das outras [...] gritando tanto quanto podiam, com longas suspensões [num] desafio à capacidade pulmonar de cada uma” [...] ‘Faziam cantas’ ou ‘botavam cantas’, com efeito, noutros tempos mais do que hoje, as mulheres” (ibid.: 21). Armando Leça, em data desconhecida, fotografou três grupos de cantadeiras numa disposição idêntica à descrita por Daciano (as três fotografias foram anexadas a este processo na secção documentação). Logo depois de publicados os primeiros cancioneiros de Vergílio Pereira, Michel Giacometti iniciou o levantamento sonoro da música de matriz rural que viria a ser parcialmente divulgado na Antologia da Música Regional Portuguesa. Todo este processo, despertou o interesse pela documentação e estudo do canto a vozes, expresso por Fernando Lopes-Graça na pequena antologia de transcrições musicais e poéticas que anexa ao livro A Canção Popular Portuguesa, em 1953 e teve impacte na coleção que o etnomusicólogo Artur Santos reuniu para a British Broadcasting Corporation (BBC), nas regiões da Beira Baixa e da Beira Alta, publicada em 1956 com o título Folk Music of Portugal. Em finais dos anos 1950, Michel Giacometti iniciou o levantamento sonoro da música de matriz rural que viria a ser parcialmente divulgado na Antologia da Música Regional Portuguesa. O canto a vozes de mulheres foi um dos comportamentos expressivos da cultura popular portuguesa difundidos no programa Povo que Canta de Michel Giacometti difundido pela Rádio e Televisão de Portugal no início dos anos 1970. Os conteúdos foram parcialmente publicados pela Tradissom, numa edição crítica de Paulo Lima, em finais do século passado. A divulgação fora de Portugal do levantamento sonoro realizado por Michel Giacometti atraiu investigadores como Anne Cauffriez. Viveu com as mulheres que cantam em polifonia e entrevistou-as longamente sobre a prática dos seus cantos, acompanhando essencialmente a cultura dos cereais. O seu estudo do repertório polifónico minhoto foi objecto de várias publicações em revistas especializadas de etnomusicologia, das quais se destacam: «Les polyphonies du grain». Minho (Portugal) in Ethnologie Française, n° 19/1, Paris 1999 (p. 121-129); « Des polyphonies sauvées des eaux : les représentations de « la tradition » dans une micro-société du Portugal » in Estudos de Literatura Oral, Université de Faro (Algarve, Portugal), 2007-08, n°13/14 (p.73-83); “Female polyphony and ritual of the cereal growth” (North Portugal) in Musiké (International Journal on Ethnomusicological studies), London, School of African and Asian studies, 2006 (p.147-156); “Female polyphony in Northern Portugal, a morphology of voices ”in Local and Global Understandings of Creativities: Multipart Music Making and the Construction of Ideas, Contexts and Contents, ICTM Study Group on Multipart music, Newcastle, Cambridge Scholars Publishing, 2012 (p. 118-136). Anne Caufriez documentou também as polifonias femininas de Trás-os-Montes no livro Le Chant du Pain e Romances du Trás-os-Montes, editados pela Gulbenkian em 1977, acompanhados de um CD com algumas polifonias transmontanas. A mesma autora fez também algumas conferências sobre as polifonias minhotas nos EUA e em Paris, tendo contribuído também para o conhecimento das polifonias femininas portuguesas em conferências científicas internacionais como o International Coucil for Tradicional Music. Num estudo exemplar - Os Cantares Polifónicos do Baixo Minho (1997) -, sustentado em trabalho de campo, Ana Maria Azevedo analisou 77 cantares a duas, três e quatro vozes coligidos por si em oito freguesias do Baixo Minho: S. M. de Oleiros, Vilela, Palmeira, Seramil, Goães, P. de Gatim e Covide. Para a realização deste estudo a autora teve de reunir mulheres e apelar à sua memória, confessando a dificuldade que teve em encontrar cantadeiras que conseguissem cantar todas as vozes: “Por vezes, um destes ‘baixos’ desdobrava, em função de contrabaixo, para a nota inferior de certos acordes, como no acorde perfeito da dominante, nas semicadências: esta voz era denominada ‘baixão’ e, embora dela restem poucos vestígios, são várias as referências às mulheres que a executavam” (1997, 54). Na análise desta forma de cantar, a autora destacou as respirações que por vezes as cantadeiras fazem no meio das sílabas, idêntico ao hoquetus (1997, 55) e o prolongamento do acorde final em notas que diz serem bem sustentadas e a participação diferenciada das vozes que por vezes ocorre “Constata-se igualmente que as diferentes vozes nem sempre ornamentam do mesmo modo a melodia. Há pequenas variações introduzidas segundo o gosto e a virtuosidade das cantadeiras” (Ibid., 58). Ana Maria Azevedo identificou alguns dos critérios que enformam a performance do canto destas mulheres: “Na opinião das executantes, ‘o baixo quer-se bem cheio’. Isto é, quantas mais vozes fizerem a melodia, melhor: ‘Quantas mais roncarem, mais bonito fica’, afirmam. No mínimo é exigido a presença de três ou quatro mulheres na voz de baixo, uma para a voz de cima, uma para executar o alto e finalmente uma para o guincho” (Ibid., 56). Escreveu ainda que “durante a execução, a expressão facial é normalmente contraída, por vezes o sangue aflui ao rosto, a cabeça é conservada levantada, e o olhar e a atitude são de concentração. As mulheres conservam-se de pé, encostadas umas às outras, em semicírculo, agrupando-se segundo as vozes, pousando as mãos em cima do ventre ou colocando uma delas, em concha, num dos lados da boca. Por vezes, a cantadeira que dá o ‘guincho’ aproxima-se mais da que faz a voz de cima, quase encostando as cabeças” (Ibid., 55-6). Ana Maria Azevedo desenvolveu uma investigação que aliou a análise teórica, com a devida racionalização da experiência, à incorporação da prática em atos performativos. Este conhecimento prático habilitou-a a criar o grupo Mulheres do Minho, sediado na cidade de Braga. Num estudo sobre os cantares polifónicos a S. João, o musicólogo Manuel Pedro Ferreira analisou um registo sonoro coligido por José Alberto Sardinha no lugar de Correlhã, concelho de Ponte de Lima, em 1979, enquadrando esse documento na literatura especializada e ilustrando numa transcrição musical por si realizada as características desses cantares: a microtonalidade, a “elevação gradual do diapasão”, a “liberdade métrica associada a uma pulsação regular, mas de tempo lento e elástico, as pausas para respiração no meio das palavras; e os finais de frase extremamente prolongados” ou “a conjugação harmónica por sobreposição sucessiva, com predominância de terceiras e sextas e sonoridade final de terceira, quinta e oitava” (Ferreira 2010, 7 e 8). Estudos recentes revelam que na sociedade agrária tradicional, a voz cantada, comumente designada “fala”, foi um elemento definidor da sexualidade das mulheres. O estudo de Maria do Rosário Pestana evidencia essa relação. Após a morte do marido, e inclusive durante o período em que estivesse emigrado, as mulheres deveriam, segundo a tradição local, “calar a fala” (Pestana 2011). A autora sustenta que nesse contexto o canto foi um espaço de interlocução de mulheres, inclusive quando estavam fisicamente distantes, tendo ao longo de gerações constituído um repertório de cânticos e modas que lhes era próprio (Ibid.). O canto a vozes de mulheres está documentado em diferentes cancioneiros publicados ao longo do século XX. No seu conjunto, a documentação e análise dos etnógrafos, folcloristas e musicólogos evidencia dois tipos principais de modas, a partir da relação funcional que, segundo a sua perspetiva, estas estabeleciam com os contextos em que foram realizadas: (i) Nas modas ligadas a trabalhos agrícolas ou a atividades laborais realizadas em grupo, predomina uma métrica regular em que as variações de andamento (cinética musical) se relacionam com os ritmos próprios dos trabalhos e da necessidade de coordenar os gestos e/ou para motivar os trabalhadores; (ii) Nas que acompanham os bailes, desfiles e procissões, com ou sem a presença de instrumentos, o ritmo relacionar-se-á com a própria cadência dos passos que determina a velocidade e as flutuações rítmicas. Nas cantigas que requerem imobilidade dos corpos e disposição circular (Azevedo 1997: 51-52), predominava “uma liberdade métrica associada a uma pulsação regular, mas de tempo lento e elástico; as pausas para respiração no meio das palavras; e os finais de frase extremamente prolongados”, que Manuel Pedro Ferreira considera ser revelador do seu arcaísmo estilístico (Ferreira, 2010, 151-152). A documentação histórica (registos sonoros e transcrições musicais) levantada por folcloristas e etnógrafos, revela que o canto a três ou mais vozes era uma prática cultivada da Beira Baixa (inclusive) até ao Minho e Trás-os-Montes, do distrito da Guarda, ao distrito de Aveiro. No século XXI, o canto a três ou mais vozes tem dois núcleos de atividade principal, um (com mais grupos) no centro-norte, entre os concelhos de S. Pedro do Sul e Arouca, outro (com menos grupos em atividade), no litoral-norte, com destaque nos concelhos de Ponte da Barca e Viana do Castelo.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direito consuetudinário Uso imemorial, que na memória local se atribui como existente há pelo menos cinco gerações Grupos de Canto a Vozes de Mulheres
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Maria do Rosário Pestana
    Função: Coordenação da equipa de investigação
    Data: 2021/04/27
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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