O bodo de Monfortinho é uma festa que é assegurada anualmente por um grupo de festeiros (por norma três recém-casados, hoje praticamente diluída face aos problemas de envelhecimento populacional) que é nomeado pela comissão cessante (caráter de obrigatoriedade em fazer a festa) ou por um grupo que se propõe fazer a festa de forma espontânea (caráter voluntário, por motivo de promessa ou outros), tudo sob o consentimento do pároco local. Cabe a este grupo de festeiros, legitimado no ato do sermão da festa, no final da missa (Quinta-feira), efetuar ao longo do ano inúmeras iniciativas festivas (jantares, pequenas celebrações, confeção de doces, etc) que amiúde acompanham o calendário e seus ciclos produtivos, no sentido de angariar fundos para a festa, tal como os respetivos peditórios em Monfortinho e pelas povoações envolventes, indo nestes itinerários até à raia fronteiriça espanhola.
O calendário da preparação da festa assume deste modo o acompanhamento e integração do ciclo anual ritual festivo e produtivo da freguesia, revelando especificidades singulares ao nível dos períodos das festas de Verão, Santos, Natal, Reis, Carnaval, Quaresma e Páscoa. Entre as inúmeras atividades estruturais da preparação da festa destacam-se: a angariação de fundos, os peditórios (de forma ritualizada durante a Quaresma e Páscoa), a recolha das lenhas (Março), a confecção de bolos secos (Abril), a preparação das carnes caprinas/ovinas (vésperas da festa) e afins.
Angariação de fundos
Ao longo do ano, normalmente em concordância com o calendário festivo anual, o grupo de festeiros congrega-se para realizar iniciativas que visam a angariação de fundos para festa: sardinhadas, frangos assados que vendem junto das casas de Monfortinho e T. de Monfortinho, filhoses, festa dos caguetes (bolo frito associado ao trabalho das malhas de centeio), noite de fados, almoços variados, etc. Por outro lado, também inúmeras primícias das hortas (frutos, legumes), associadas aos períodos de maior abundância (verão), são doadas aos festeiros e posteriormente leiloadas pelas ruas da aldeia. Traduzindo uma importante ligação aos ritmos naturais do calendário agrícola e sua suposta gestão em termos alimentares.
Peditórios
Os peditórios oficiais para a festa têm início no primeiro Domingo da Quaresma e no Domingo de Ramos. Normalmente, durante a manhã, o grupo de festeiros reúne-se junto ao barracão das festas, munido de bandejas, cestos, potes para acondicionamento de azeite e faz o circuito completo pelas casas da povoação de Monfortinho. Porém, como já foi referido, outros peditórios são realizados posteriormente, extensíveis aos territórios limítrofes da freguesia (T. Monfortinho, Torre, P. Garcia e arredores de Monsanto) e raia fronteiriça espanhola (Cilleros, Zarza la Mayor e Moraleja), onde reside uma pequena comunidade de portugueses. A festa assume assim, para além de contribuir para a consolidação de relações sociais e culturais, uma singular natureza transfronteiriça.
Lenhas
Em meados de Março (varia consoante a disponibilidade dos festeiros e da meteorologia), depois de previamente terem combinado com o proprietário da lenha, deslocam-se até ao local no campo para ai iniciarem os trabalhos de corte das lenhas, transporte para a aldeia e posterior acondicionamento junto ao barracão do bodo. Este dia marca de igual modo a comunidade, em particular os homens, é a eles que cabe esta tarefa. Para além da "bucha" que comem em conjunto no campo, no final dos trabalhos, é ainda costume organizar-se uma feijoada no barracão do bodo. Esta lenha recolhida de forma coletiva (festeiros, familiares e ajudantes) servirá posteriormente de combustível na cozinha do largo nos principais dias da festa (quinta-feira e sexta-feira). Acaba também por ser recorrente o motivo da sua avaliação constante em termos das qualidades efetivas das lenhas.
Confeção de bolos
No último Domingo antes da festa, procede-se aos preparativos junto do forno localizado na aldeia. Acende-se o forno com lenha de carqueja, no sentido de o preparar (temperar) para o dia seguinte. Na segunda-feira, logo pela manhã, concentram-se os festeiros, familiares e restantes ajudantes (principalmente mulheres) no interior do forno para ai iniciarem os trabalhos de confeção de bolos secos (bolos de água ou de "farta ganhão", bolos de azeite e biscoitos) que irá durar todo o dia. Este dia concentra e ocupa umas 20 mulheres em torno do ciclo destes bolos. Depois de cozidos no respetivo forno a lenha, saem nos tabuleiros (latas) para o exterior, sob o grito "vai quente", onde arrefecem em tabuleiros de madeira. No final da manhã, um grupo de festeiros e familiares (mulheres) acondiciona um cesto com estes bolos e distribuem-nos pelas casas da aldeia. Trata-se, em termos simbólicos e na lógica social da circulação de alimentos rituais, de um primeiro ato de redistribuição de alimentos (contra-dádiva) da atual comissão de festeiros do bodo à população de Monfortinho.
Preparação das carnes (caprinas e ovinas)
Sendo a atual união de freguesias de Monfortinho e Salvaterra do Extremo um território com um passado histórico especificamente agro-pastoril, nos dias de hoje esta tendência sofreu importantes mudanças, como na maioria do concelho. Restando apenas alguns proprietários de gados (ovinos, caprinos e bovinos), o que fez com que se alterasse, de certo modo, a tradição que assinalava que as dádivas de carne eram da competência exclusiva destes proprietários de gados (aqui se incluíam grandes, pequenos proprietários e pastores). Estes indicadores aliados a um gradual crescimento do numero de visitantes e dos gastos da própria festa, estiveram na base de um acordo institucional entre o Município de Idanha-a-Nova e a união de freguesias de Monfortinho e Salvaterra do Extremo, no qual o Município fica responsável da atribuição de um subsidio para a aquisição da carne necessária para a realização do Bodo (sendo o numero total de reses deste ano cerca de 100, conjuntamente com 10 galinhas, aproximadamente 1700 kg). Deste modo, a carne é adquirida diretamente ao matadouro e chega ao recinto da festa na terça-feira (semana da festa). Depois de descarregada pelos homens e acondicionada num anexo com arca frigorífica, num dos barracões do bodo, as mulheres reúnem-se junto às bancadas para ai iniciarem os trabalhos de preparação das carnes. Iniciam os trabalhos com a preparação dos rins (arranjar e migar), estes trabalhos prolongam-se pela tarde. As restantes carnes (galinhas, bofos e restantes miudezas) ficam normalmente em processo de descogelamento em alguidares com água. No dia seguinte, quarta-feira, logo pela manhã reúnem-se novamente neste barracão para continuar o processo de preparação das carnes. Neste dia, já os homens participam em maior número no esquartejamento das carcaças e as mulheres entregam-se às tarefas mais minuciosas de migar e preparar as carnes. No espaço de um dos barracões organizam uma autêntica linha de montagem, um grupo transporta as carcaças para uma sala, onde são fixados em ganchos, aqui outro grupo inicia as primeiras preparações que consistem em extrair-lhes com uma faca as glândulas que se situam junto às pernas traseiras nos caprinos e nos ovinos a glândula crural, pré-crural ou pré-femural, para de seguida com a ajuda de um machado as esquartejar ao meio. Daqui seguem para outra bancada, onde está um cortador que dá seguimento aos cortes mais apurados, para daqui estes mesmos pedaços seguirem para outras bancadas onde se concluem com mais minuciosidade e aprumo (esquartejar as partes maiores, retirar as gorduras, verificar os nódulos ou coágulos, etc). No final destes segmentos, está um grupo de mulheres que última o processo. Um dos homens, normalmente com este saber, ocupa-se de ir afiando na máquina de esmeril os respetivos machados e facas. A meio da manhã é servida uma refeição, o pequeno-almoço (fígados guisados, pão, queijo, bolos), para estas pessoas que trabalham, assim como o almoço que consiste em frango com esparguete.
A festa
A festa tem início na quarta-feira com a chegada da Banda Filarmónica que como é tradição procede às três voltas da capela da N. Sª da Consolação, para em seguida descer até ao recinto do bodo onde lhes é servido o almoço. Posteriormente, reúnem-se novamente com os festeiros e o fogueteiro, para seguirem num autocarro em direção à Torre e às T. de Monfortinho para percorrer os itinerários principais das ruas destas povoações no sentido de angariarem mais fundos e redistribuírem bolos e vinho tinto, regressando ao final da tarde à aldeia. Também é durante a tarde que as mordomas da igreja se encarregam das tarefas de embelezamento do andor da imagem de N. Sª da Consolação, a maioria destas flores que irão ser colocadas no andor são igualmente dádivas de promessas, existe mesmo uma lista de espera que todos os anos é atualizada. Pelas 19h00, começam a reunir-se para o jantar e a tradicional prova dos rins, que são servidos depois da refeição principal. No passado, a refeição deste dia estava meramente assinalada com a prova dos rins, que acontecia durante a tarde (17 horas). Como é uma parcela do animal cobiçada e bastante valorizada, assumia alguma dimensão em termos de prestígio, espaço onde se destacavam através de generosas ofertas em dinheiro em troca de travessas desta preciosa iguaria, os grandes proprietários da região. Nos dias de hoje, realiza-se um jantar que consiste em sopa de feijão, ensopado, arroz com carne e no final a prova dos rins (rins com ovos). Durante este período por vezes dá-se aos festeiros algum dinheiro. À noite segue-se o arraial com quermesse (esta é constituída por festeiros mais novos, que são nomeados para este mesmo propósito).
Na quinta-feira (onze dias depois da Páscoa), é tido como o dia oficial da festa, iniciando-se com o rebentamento de foguetes da alvorada que anuncia a chegada da banda filarmónica que segue novamente em direção à capela de Nossa Senhora da Consolação, repetindo a tradicional volta, seguindo para o recinto do bodo, onde é distribuído o pequeno-almoço aos músicos. Neste mesmo dia é tradição realizar-se na rua principal da aldeia uma feira que se correlaciona anualmente com a festa. No recinto do Bodo, ao amanhecer, acendem-se os lumes no largo onde se irão confecionar, segundo os preceitos da tradição local, a fogo de lenha e panelas de ferro (40/50 litros), durante dois dias, aproximadamente cem reses caprinas e ovinas, em ementas variadas (sopa de grão, canja de galinha, ensopado, arroz de carne e sangria). Normalmente, o cozinheiro que irá conduzir as tarefas da cozinha é escolhido com base na sua prática relacionada com o bodo, ou seja, são amiúde pessoas da proximidade local que de certa forma já receberam os ensinamentos da transmissão da festa.
Durante a manhã, pelas 11 horas reúnem junto à capela da Nossa Senhora da Consolação para transportarem o andor da imagem da N. Sª da Consolação, conjuntamente com as bandeiras, até à igreja matriz onde se irá realizar a respetiva missa. No final da homilia o padre agradece aos festeiros do presente ano e anuncia os novos festeiros à comunidade, segue-se a procissão com a imagem da N. Sª da Consolação e restantes Santos (S. Sebastião, S. Pedro, Sª do Rosário, Sagrado Coração de Jesus e respetivas bandeiras) até ao largo das Cruzes, recinto do Bodo onde o padre aqui procede à bênção da comida que irá ser servida. Para o efeito utiliza-se uma mesa com uma toalha de linho bordada, onde se dispõe vinho, pão, uma terrina com ensopado, arroz de carne, sopa e bolos. Finda a bênção que é extensível até ao espaço onde se agrupam as panelas junto ao lume, a procissão retoma o itinerário de retorno à Capela da N. Sª da Consolação, aqui novamente neste espaço, junto do andor, as pessoas concentram-se, rezam e agradecem à Virgem as graças recebidas, doam dádivas em troca de imagens, é costume levar-se uma flor do andor para casa. Segue-se o almoço ritual no recinto do Bodo, servido pelos festeiros, familiares e restantes ajudantes. Os dois amplos barracões por norma enchem e ainda se concentram pequenos grupos a comer na rua. É também neste dia que surgem mais espanhóis provenientes da raia fronteiriça. Como o recinto do bodo fica distanciado alguns metros do segundo barracão, ganha destaque o transporte das panelas de ferro na caixa de um trator.
Neste dia ganha relevância o fato deste repasto ser oferecido aos forasteiros, pois de forma generalizada os locais teimam em comer a refeição em suas casas, referindo que este dia está dedicado aos forasteiros das povoações circundantes. Na base desta prática podem estar comportamentos relacionados com os primórdios deste bodo, ou seja, a probabilidade deste dia estar dedicado aos mais pobres que aqui faziam romagem e o dia seguinte à generalidade da comunidade local. Durante a tarde segue-se o arraial com o grupo local "cantigas d'aldeia". Ao final da tarde, prolonga-se a festa com uma arruada pelas ruas da aldeia até às casas dos festeiros novos e velhos, é a passagem do testemunho da festa dos velhos para os novos festeiros. Trata-se de um momento efusivo de cantares e de redistribuição de bolos secos, vinho e licores junto das casas dos festeiros novos e velhos. A noite prolonga-se com o respetivo arraial e fogo de artifício.
Na sexta-feira, rebenta novamente a alvorada e ao som do toque dos sinos a comunidade local junta-se para assistir a uma missa na capela de Nossa Senhora da Consolação. No final seguem para o recinto do Bodo para aqui almoçarem, as ementas repetem-se: sopa de grão, ensopado e arroz de carne. Durante este período os novos festeiros (mulheres) vão pelas ruas da aldeia distribuir o Bodo às casas dos doentes e enlutados, impossibilitados de se deslocarem ao largo. Também a refeição é servida pelos festeiros, seus familiares, com a particularidade da incorporação da ajuda dos novos festeiros. A meio da tarde, tem lugar no recinto desportivo das T. de Monfortinho um jogo de futebol entre solteiros e casados. No final da tarde, dá-se o grande momento da festa, "a volta da caldeira" ou "a caldeira", como localmente é designada. A comunidade por inteiro da aldeia e arredores junta-se no largo e daqui seguem em procissão festiva (ao jeito de arruada), com enérgicos cânticos do cancioneiro local, acompanhados por um tocador de concertina, pelas ruas da aldeia, cujo objetivo é a redistribuição de comida (ensopado), vinho e bolos. Nesta imensa multidão, ganha especificidade um notável carrinho móvel, coroado com a seguinte inscrição "do bodo ao povo", sob o qual transportam um pipo com vinho e numa panela aquecida com brasas o respetivo ensopado. Esta procissão festiva da comunidade que segue um longo itinerário até aos limites cimeiros da aldeia, sempre ao som das vozes e da concertina, vai parando em alguns locais e redistribuindo carne, bolos e vinho. No regresso, junto à porta da igreja matriz cantam as alvíssaras à Virgem da Consolação, repetindo novamente junto da capela da N. Sª da Consolação, culminando de forma efusiva no recinto do Bodo. É de referir que nos anos de menor abundância, face a eventuais prejuízos mal calculados da festa, esta "volta da caldeira" tinha a função de angariar fundos para a festa. Fazendo-se um género de peditório pelas casas da aldeia, para o efeito improvisava-se uma vara comprida para alcançar as janelas e varandas das casas, onde colocavam dinheiro.
À noite segue-se o jantar que consiste novamente na sopa de grão, ensopado e arroz de carne. Mais tarde, durante o arraial abre-se espaço para um dos momentos mais esperados, o sorteio das rifas que entretanto foram vendidas ao longo do ano. Este ano (2016), o evento ganhou ainda mais espetativa pela novidade da criação de uma tômbola, desenhada e construída por um festeiro (Sr. João Dionísio), com os propósitos funcionais de servir de suporte a este sorteio. A noite e a festa em si terminam pela madrugada com um amplo fogo de artifício.
No sábado, pela manhã reúnem-se as mulheres que prestam serviços para o bodo e demais festeiros para as respetivas arrumações gerais. O almoço deste dia é apenas para estas pessoas que aqui trabalharam e consiste em migas de ovo, com o acompanhamento de enchidos e queijo. Logo a seguir ao almoço, estas mulheres que aqui trabalharam recebem o salário e alguns géneros, terminando aqui as suas tarefas.
A comunidade volta a reunir-se ao som do pequeno sino da Capela de N. Sª da Consolação, para aqui neste espaço se efetuar um pequeno leilão com alguns dos géneros que sobraram, no sentido de angariarem alguns fundos para a festa do próximo ano. É também o momento de distribuir às pessoas fatias de pão bento e toucinho. Estas mesmas fatias de pão, segundo os habitantes locais, possuem efeitos profiláticos, daí o seu acondicionamento no interior das casas para futuras protecções divinas. Terminado o leilão, recolhem ao recinto do bodo e começam imediatamente a preparar o momento final, uma "gaspachada" para desenjoar (desenratar) da carne consumida ao longo dos três dias da festa. Desta forma, a festa finda como começa, com a entreajuda da comunidade, de forma coletiva. Cabe aos homens, com a ajuda dos festeiros novos a preparação desta "gaspachada", o cozinheiro que por norma e tradição última os temperos é também um dos locais (António "Bailarico"). A receita desta "gaspachada" consiste em alfaces que se adquirem em alguma horta local, alhos, cebolas, toucinho, pão fatiado, água, sal, poejos silvestres, azeite e vinagre. Esta refeição é novamente acompanhada com enchidos e queijo.
As ementas
Bolos secos (segundo a receita local)
Biscoitos
Bolos de leite
Bolos de água
Broas de mel
[descrição segundo o cozinheiro do bodo de 2015, David]
Quarta-feira (almoço)
Sopa de feijão
15 l de feijão
8 Kg de couve lombarda
6 pacotes de massa
Agua
Azeite
Sal
Esparguete com frango (almoço)
8 frangos do campo
5 Kg de esparguete
Azeite
Sal
Colorau
Louro
Rins com ovos (jantar)
(repetem-se os restantes pratos do almoço)
Quinta-feira (Almoço)
Sopa de grão
Ensopado
Arroz de carne
Rins com ovos
Sangria
Sexta-feira (almoço)
Sábado (Almoço)
Migas de ovo
Pão
Ovos
Azeite
Sal
Água
Gaspachada (final da tarde, fecho das atividades)
Pão (migado)
Alfaces
Alhos
Cebolas
Toucinho
Água
Sal
Azeite
Vinagre
Poejos
*acompanha com enchidos e queijo
O bodo em si é assegurado anualmente por um grupo de festeiros (por norma três recém-casados, hoje praticamente diluída face aos problemas de envelhecimento populacional) que é nomeado pela comissão cessante (caráter de obrigatoriedade em fazer a festa) ou por um grupo que se propõe fazer a festa de forma espontânea (carater voluntário, por motivo de promessa ou outros), tudo sob o consentimento do pároco local. Cabe a este grupo de festeiros, legitimado no ato do sermão da festa, no final da missa (Quinta-feira), efetuar ao longo do ano inúmeras iniciativas festivas (jantares, pequenas celebrações, confeção de doces, etc) que amiúde acompanham o calendário e seus ciclos produtivos, no sentido de angariar fundos para a festa, tal como os respetivos peditórios em Monfortinho e pelas povoações envolventes. Estas iniciativas, para além de contribuírem para o reforço da coesão social do território, são também formas arcaicas de transmissão de conhecimentos e de experiências em torno da festa, fortalecendo de igual modo esse sentido de pertença ligado à festa.
A nomeação de festeiros mais novos para assegurarem a quermesse inscreve-se nessa mesma lógica de transmissão de conhecimentos e experiências da festa. A comunidade local mais jovem tem um papel extremamente participativo nas procissões festivas, pois existe de fato um profundo sentido identitário generalizado ligado a esta celebração, o que faz com que muitos dos jovens ausentes regressem propositadamente para organizar a festa, tornando-se esta numa das razões principais para o seu regresso.
No fundo, a inserção nos mecanismos práticos da própria festa, realiza-se, para além dos espaços domésticos das casas, ora enquanto festeiros, ora enquanto ajudantes nas tarefas a realizar no espaço da própria festa. Tornando-se este espaço no principal vetor para a transmissão de conhecimentos.
Observando a génese dos territórios como um todo de diversas escalas e conexões, impõe-se um breve enquadramento geográfico do concelho de Idanha-a-Nova para os respetivos desenvolvimentos históricos do encaixe da própria festa. Assim, este amplo concelho divide-se em duas grandes áreas: a área Norte e a área Sul/Sudeste. Monfortinho fica localizado na faixa Norte, numa das encostas da Serra de Monfortinho ou Serra de Santa Maria, complexo montanhoso que entronca, já em Espanha, na Serra da Gata. A Sul deste lugar, pontuam as Serras da Murracha, a de Toulões, de Toulica, tal como o imponente Monte Santo (inselberg geminado de Monsanto-Moreirinha). A união de freguesias de Monfortinho e Salvaterra do Extremo comporta as aldeias de T. de Monfortinho e Torre. Em relação à paisagem circundante, abundam os matos arbustivos, conjuntamente com aglomerados de sobreiros e azinheiras. A oliveira, "a mais prestigiada árvore mediterrânea", conheceu aqui como em todo o concelho um singular incremento durante o século XIX, tornando-se assim, a par com o trigo, os pastos e o montado, a base da economia local.
Embora a data fundacional desta festa seja difusa, existem em termos históricos, referências documentais a esta celebração nas respostas do pároco de Monfortinho, Padre Manuel dos Santos Leitão, às Memórias Paroquiais de 1758 (séc. XVIII), do Padre Luís Cardoso:
"Em o Outavário da Páscoa vem, a Câmara da vila de Penha Garcia, e o povo em satisfação de um voto que fez a dita vila mais antigo com louvores à dita Senhora Padroeira do dito Lugar, aonde lhe fazem uma festa no dia de N. Senhora dos Prazeres, concorrem da vila de Salvaterra com o mesmo voto, cujos votos fizeram estas duas povoações pelos estragos que lhes faziam nas searas a lagosta, da qual até hoje se têm visto livres, por intercessão da Senhora." (Rego, pp. 36-37).
Tornando-se evidente esta referência histórica das pragas de gafanhotos como causa do voto perpetuo à Virgem da Consolação de Monfortinho. Espelho de remotas práticas face aos temores de um suposto e recorrente castigo divino. Destaca-se ainda nesta nota a própria designação lagosta (langosta) que nos remete para o contexto geográfico raiano da fronteira luso-espanhola, pois trata-se da designação de gafanhoto em castelhano.
Também na obra que antecede esta data, de Frei Agostinho de Santa Maria (séc. XVII), se documentam um conjunto de referências pontuais à possível existência, efetiva, de pragas de gafanhotos na região da Beira Interior. Neste preciso contexto de ocorrências sistemáticas de pragas de gafanhotos nesta região, na obra "Portugal Antigo e Moderno", datada de 1878, Pinho Leal escreve:
"Em Junho de 1876 foram estas terras invadidas por uma nuvem de gafanhotos, que fizeram grandes devastações nos campos e pomares. Para se fazer ideia aproximada da grande quantidade de gafanhotos que assolaram estas terras, basta dizer que, no dia 2 de Junho, 30 pessoas, em 45 minutos, apanharam 60 alqueires d'elles! Não foi só aqui a invasão d'estes terríveis insectos: quasi todo o districto administrativo foi invadido, vendo-se o general da divisão obrigado a empregar 200 soldados no seu extermínio. Nos concelhos d'Elvas, Salvaterra do Extremo (hoje Idanha-a-Nova) e Figueira de Castello Rodrigo, foram então apanhados 44.400 Kilogrammas de gafanhotos! Veio esta praga, da Extremadura hespanhola (e que cousa boa nos virá de Hespanha). Os castelhanos lhe chamam 'langostas'.
Ainda no dia 21 de Maio de 1877, tornaram os campos, e até mesmo as terras incultas de Salvaterra de Magos, Figueira de Castello Rodrigo, Escarrigo, Almofalia, Matta de Lobos, e outras freguezias d'esta região, a ser invadidas por outra praga de gafanhotos; porém a freguezia que mais soffreu, foi esta de Salvaterra do Extremo. No referido dia 21, foram apanhados 1.291 kilogrammas d'estes insectos - no dia seguinte 2.208 e meio kilogrammas - e no dia 23, 2. 232 e meio kilogrammas. Foram pagos aos apanhadores, a razão de 40 réis o kilogramma, o que somou em 229§280 réis, pois o total da apanha, foi de 5.732 kilogrammas pagos.
Além d'isto, foram apanhados gratuitamente, pelos Lavradores da freguezia, 2.000 kilogrammas, o que faz a totalidade de 7. 732 kilogrammas." (Leal, pp. 370-371).
Para além destas duas pragas datadas por este mesmo autor em Junho de 1876 e Maio de 1877, Jaime Lopes Dias acrescenta uma outra data anterior, 1870, segundo informação local que obteve, traduzindo-se assim em três pragas documentadas durante esta segunda metade do século XIX.
Maria Adelaide Salvado transcreve um outro documento, um decreto publicado no Diário do Governo de 19 de Junho de 1901, onde se faz referência a uma outra praga que causou prejuízos nos campos de Idanha:
"(…) hei por bem approvar a deliberação da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova de 23 do mês último, acerca do empréstimo de 2.500$000 réis, amortizável em vinte annos, não podendo a somma dos respectivos encargos exceder em cada anno a 230$000 réis, que pretende contrahir, a fim de applicar o produto do mesmo empréstimo exclusivamente à destruição dos acridios, que infestam diversas freguesias do referido concelho" (Salvado, p. 22).
Sobre as possíveis origens e causas destas pragas, a mesma autora apresenta os seguintes argumentos explicativos:
"Várias são as noticias, em datas historicamente registadas, de invasões desses insectos predadores nos campos da raia. As razões encontram-se hoje cientificamente esclarecidas. Pertencentes à espécie 'dociostaurus marroccanus', os gafanhotos peninsulares vivem habitualmente nas chamadas zonas marginais de reserva, que se localizam nos arredores de Badajoz (La Serena), Cáceres (zona de Trujillo), no vale de Alcudia (Ciudad Real) e Córdova (Comarca de Hinojosa del Duque). São, nesta fase, solitários e inofensivos. Acontece que a especificidade morfológica da Península Ibérica, de litorais pouco recortados e onde a disposição periférica do relevo de maior altitude isola de influências moderadoras do mar as terras do interior, determina nestas a existência de Invernos rigorosos e Verões quentes e muito secos. A pluviosidade é, nessas regiões, em regra, escassa. No entanto, quando a seca se instala e se prolonga por anos sucessivos, os gafanhotos sofrem, ao fim de dois anos de secura, uma mutação: tornam-se gregários, reúnem-se em cordões, saem das reservas e abatem-se com uma voracidade sem limites pelos campos vizinhos em nuvens espessas que, outrora, cobriam o sol" (Idem, p. 15)
Maria Adelaide Salvado documenta ainda na região da Beira Interior um conjunto de festividades que detêm esse mesmo voto perpétuo pela acção de graças concedida de lhes livrarem os campos destas pragas: "Alcains (festa das papas), Lousa (voto colectivo em honra de Nossa Senhora dos Altos Céus), Penamacor (voto da Câmara a Nossa Senhora do Incenso) (Idem, p. 23).
Assim sendo e na continuidade histórica desta festa, Jaime Lopes Dias publica em 1944 no "Boletim da Casa das Beiras" nº6 (Abril-Junho), um texto descritivo sobre esta mesma festa que será por sua vez transcrito em 1948 no volume VII da "Etnografia da Beira" do mesmo autor. Nele se contemplam as origens da festa, a transferência do local, os bodeiros e suas obrigações, a organização do bodo, as alvíssaras, a procissão e bênção do bodo e um retrato particular do bodo em 1944. Neste texto, em relação à génese das formas de organização do bodo, redige que:
"Desde sempre, a organização do bodo da N. Sª da Consolação pertenceu a uma Comissão de três bodeiro com o seu presidente, tesoureiro e secretário, escolhidos pela comissão cessante, de acordo com o pároco (…) Têm por obrigação proceder, no fim das colheitas, de rua em rua e de casa em casa, ao peditório de trigo e outros cereais acompanhados de um saco, de um rasoiro e uma medida de meio alqueire e, na semana anterior ao bodo, à recolha do gado, para o que percorrem os arraiais, a cavalo, com odres de vinho e tabaco que distribuem em quantidade, para que as ofertas cresçam com o entusiasmo e a boa disposição da vinhaceira. Nunca houve faltas no bodo" (Dias, pp. 136-137).
Em relação aos géneros o mesmo autor revela "trigo, vinho, azeite, toucinho, etc…oferecem-nos os patrões e os criados, e gado os criadores e os pastores para que Nossa Senhora lhes dê mais em anos futuros e para pagamento de promessas feitas em hora de aflição, peste ou arremetida de lobos. O trigo, género que avulta entre todas as dádivas, é farinado e cosido na medida das necessidades do bodo, e vendido o que cresce, para pagamento das demais despesas" (Ibid.). Descreve ainda de forma exímia a antiga romagem que se fazia de Salvaterra do Extremo para Monfortinho:
"Todos os anos, ao dealbar da segunda-feira referida, nas ruas de Salvaterra e nas dos povos anexos, ia movimento desusado: os animais de tracção e os que davam cavalaria eram engatados, ajaezados ou aparelhados para se incorporarem no cortejo e levarem as populações ao bodo, a Monfortinho, enquanto as donas de casa ensacavam as merendas, e todos os que iam à festa davam os últimos arranjos nas suas fatiotas de ver a Deus. O grande cortejo, com pendões e cruzes, em que se incorporavam carros, carroças, cavaleiros e peões, com a bandeira do Espírito Santo à frente, seguia, mal o sol despontava, vagarosamente (que outra coisa não permitiam os velhos caminhos) a cumprir o voto, a rezar e a dar aos pobres e a todos os que quisessem servir-se, pão, caldo, vinho e carne em abundância" (Ibid., pp. 134-135).
Este mesmo texto é reproduzido na íntegra na monografia de Salvaterra do Extremo (1945), da autoria de J. D. Bargão e continua a impor-se como o documento fundacional e explicativo do bodo.
Outra documentação se dispersa pela imprensa local que vai documentando cada ano os desenvolvimentos da própria festa, anotando os nomes dos festeiros, receitas e despesas que a celebração contemplou. Um fato histórico importante é a cisão da festa que se organizava de forma conjunta entre a população de Monfortinho e Salvaterra do Extremo (até 1905). Indo em romagem a povoação desta até Monfortinho. Esta cisão que segundo relatos locais teve na sua base um hipotético roubo ritual da santa original para Salvaterra do Extremo contemplou posteriormente (1905), a organização em dois bodos, com organizações próprias, distribuídos por cada uma destas aldeias, com datas diferenciadas. Segundo o padre Bonifácio bernardo, "em Salvaterra, o dia da festa a Nossa Senhora da Consolação, desde 1905 e até 1975, sempre se realizou na segunda-feira de Pascoela, ou seja, segundo a maneira litúrgica de falar hoje, na segunda-feira, após o segundo domingo de Páscoa" (Bernardo, p. 38). Aliás, dia estipulado historicamente na origem da festa, antes desta mesma cisão.
Em Monfortinho, face à dita rutura, passaram a celebrar na Quinta-feira seguinte, três dias depois, mantendo-se até hoje. Já em Salvaterra do Extremo, a partir de 1976, anteciparam a festa para a primeira segunda-feira depois da Páscoa, mantendo-se até á atualidade. Em consequência da natureza complexa deste fato histórico foi se gerando nestes discursos de alteridade interessantes e enriquecedoras formas agonísticas em relação ao espaço vivencial e celebrativo de cada um dos bodos, aguçando-se por esta mesma via discursos que suportam, reforçam e fixam uma identidade cultural local, ora espelhada nos aspetos particulares da comida, ora nas práticas mais generalizadas relacionadas com cada uma das festas. É a própria monografia sobre Salvaterra do Extremo, do coronel António Lopes Mendes, datada de 1914, posteriormente redigida por José Flores Romão em 1936, que nos revela esta cisão entre as duas povoações,
"O povo de Salvaterra (…) devoto de Nossa Senhora da Consolação a qual todos os anos, até 1905, era levada em romaria ao lugar de Monfortinho, onde lhes faziam uma festa solene e davam bodo aos pobres e romeiros, na primeira segunda-feira, depois do Domingo de Páscoa. Desde 1905 para cá em que a expensas do benemérito cidadão desta terra, Joaquim José Fernandes, se reconstruiu a capela do Senhor da Pedra na Deveza, destinada à Senhora da Consolação, acabou-se aquela praxe religiosa, fazendo-se a festa do bodo em Salvaterra, para que todos os vizinhos dão como era costume, o que podem e têm na sua devoção, cumprindo-se assim o voto dos nossos antepassados por calamidades que aterraram o povo de Salvaterra, ao ver por mais duma vez as suas searas destruídas pelas pragas dos gafanhotos" (Mendes, pp. 53-54).
Jaime Lopes Dias nas obras referidas acima ("Boletim da Casa das Beiras" e "Etnografia da Beira") intitula o bodo de Salvaterra do Extremo, como a "o bodo ou a 'festa de Monfortinho', o que reforça esta mesma ligação histórica de complementaridade entre as duas aldeias. Ainda no sentido de reforçar esta mesma originalidade e ancestralidade ao bodo de Monfortinho, o padre Bonifácio Bernardo, em 2008, refere na sua obra "A festa da Nossa Senhora da Consolação", que "era em Monfortinho que a festa se realizava, por força de uma promessa dos antepassados do próprio lugar, como parece lógico, a que se juntavam, pelo mesmo motivo, os povos de Penha Garcia e de Salvaterra" (Bernardo, p. 21).
Realce-se que esta tipologia de festas com componente de gasto tiveram uma ampla difusão no país, ora na sua expressão de bodos, ora na realização de festas do Espírito Santo. Os bodos surgem normalmente associados, na tradição oral, a promessas coletivas por ocasião de pragas de gafanhotos. Promessas que vinculavam as comunidades à prática de uma obrigação ritual perpetua. No caso de Monfortinho, perpetualizada sob a forma de um bodo aos pobres. Nas memórias coletivas locais ouve-se com frequência estas dimensões da pobreza generalizada extensível ao vasto concelho.
O bodo de Monfortinho, tal como a maioria dos bodos na tradição oral das sociedades rurais, estrutura-se assim, historicamente, como um impulso das comunidades em períodos magros de crise, uma vez que as próprias pragas sempre denotam o risco extremo de agravamento das próprias condições de vida.
Tipo | Circunstância | Detentor |
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Direito canónico | A componente religiosa da festa está a cargo da Igreja Católica que oficia e preside à dimensão litúrgica do culto através dos sacerdotes locais, conforme a lei eclesiástica. | Igreja católica |
Direito consuetudinário | Toda a dimensão profana da festa, ou seja, a sua organização e concepção cabe à comunidade local de Monfortinho, sendo por esta via detentora dos direitos colectivos de carácter consuetudinário. | comunidade de Monfortinho |