Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_2021_005
  • Domínio: Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais
  • Categoria: Manifestações artísticas e correlacionadas
  • Denominação: Processo de Confeção do Tapete de Arraiolos
  • Outras denominações: Processo de Produção do Tapete de Arraiolos
  • Contexto tipológico: O Tapete de Arraiolos é uma expressão artesanal de cariz artístico, têxtil, com processo de confeção singular e com propósito utilitário e decorativo. Tem uma história multissecular que teve origem na vila e concelho que lhe dá nome e onde continuamente se confecionou até aos nossos dias. Tendo havido uma disseminação das técnicas de confeção um pouco por todo o país a partir do início do século XX, Arraiolos permanece como o epicentro da manifestação.
  • Contexto social:
    Comunidade(s): População do Concelho de Arraiolos
    Indivíduo(s): Artesãs e artesãos do processo de confeção do Tapete de Arraiolos.
  • Contexto territorial:
    Local: Todas as sete freguesias que constituem o concelho de Arraiolos: Arraiolos; Igrejinha; Sabugueiro; Santa Justa; São Gregório; Sâo Pedro da Gafanhoeira; Vimieiro.
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente \ Alentejo \ Alentejo Central
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: A manifestação realiza-se continuamente e ao longo de todo o ano, não havendo uma época ou período definido ou identificável em que haja um aumento na confeção de tapetes de Arraiolos.
    Data(s): -
  • Caracterização síntese:
    A confeção do Tapetes de Arraiolos, com as suas técnicas e materiais de cariz artesanal e a sua decoração de caráter artístico é um tipo de produção têxtil com identificação com o seu centro originário, o qual lhe confere a designação. Sendo a sua confeção em Arraiolos referida em documentos desde finais do século XVI, no início do século XX gerou-se uma gradual e crescente disseminação das técnicas por todo o território nacional, permanecendo Arraiolos, todavia, como o grande epicentro da manifestação até aos nossos dias.

    A confeção das telas em tear, todo o processo de tratamento da lã e o seu tingimento com corantes naturais são procedimentos que se extinguiram durante a primeira metade do século XX. Por isso, atualmente o processo de confeção constitui-se pela conceção do desenho, o corte e marcação das telas, as diferentes fases do bordado e a confeção da franja.

    Há confeção de tapetes em que se borda exclusivamente com o ponto de Arraiolos e tapetes em que se utiliza a técnica de bordado em ponto pé-de-flor na armação do desenho, técnica muito utilizada na centúria seiscentista e só retomada a partir dos últimos anos do século XX.

    No que concerne à composição decorativa, no século XVII e primeira metade do século XVIII, a sua estrutura pré-decorativa e motivos eram, de uma forma geral, inspirados em expressões têxteis da arte oriental, tendo havido depois uma gradual tendência de afastamento da influência oriental, tendo-se gerado composições de um cariz mais popular e menos evocativas de outras expressões decorativas pré-existentes.

    Ao longo de todos estes séculos de confeção de tapetes de Arraiolos, a transmissão de conhecimentos foi sendo feita fundamentalmente no âmbito familiar, principalmente de mães para filhas. Durante o século XX, com a criação de unidades de produção, a transmissão continuou a ter um caráter intergeracional e em contexto familiar, mas algumas jovens artesãs aprenderam as técnicas de confeção com as mestres que coordenavam os trabalhos nas oficinas desses locais onde várias bordadeiras trabalhavam em conjunto.
  • Caracterização desenvolvida:
    O Tapete de Arraiolos pode ser caracterizado como uma arte decorativa têxtil com vertente utilitária, que se produz por meio de processo de confeção artesanal e que pela singular junção dos seus saberes, bem como pela continuidade histórica da sua produção ao longo dos séculos, se tornou possível discernir sobre a tradicionalidade dos seus materiais, utensílios, técnicas e composição decorativa.

    Sobre o Tapete de Arraiolos e a sua confeção tradicional, deve desde logo ser referido que existem duas tipologias materiais e técnicas distintas. Há a confeção de Tapete de Arraiolos convencional em que, no que ao bordado diz respeito, se utiliza exclusivamente o ponto cruzado oblíquo, o qual se tornou famoso como o ponto de Arraiolos, e em que, nos últimos cerca de cem anos, normalmente se utiliza tela em serapilheira. E há o Tapete de Arraiolos em ponto pé-de-flor, em que no contorno dos motivos decorativos se borda com essa técnica característica, utilizando-se o ponto cruzado oblíquo com algumas variantes e unicamente para preenchimento dos motivos decorativos e fundo do campo e das barras, sendo esses tapetes bordados sobre tela de linho ou estopa de linho.



    Processo de confeção do Tapete de Arraiolos convencional:

    Conceção e marcação do desenho

    Todo o processo de confeção de um tapete de Arraiolos tem início com a definição do desenho. Pode ser um desenho já existente que se reproduz de forma exatamente igual, pode-se utilizar um desenho já existente e realizar-se pequena alterações à sua estrutura e motivos decorativos ou pode-se conceber um desenho totalmente novo.

    Em cada uma das três hipóteses possíveis o procedimento de marcação do desenho para transposição para a tela é o mesmo: Num papel quadriculado com tamanho correspondente a um quarto do tapete, caso o desenho seja simétrico nos quatro quartos, ou com um papel quadriculado do tamanho total do tapete, caso não se confirme essa simetria, procede-se à marcação dos contornos do esquema e motivos decorativos com pequenas cruzes, cada uma correspondente a um ponto bordado, feitas com lápis de carvão, e que na sua totalidade formam o desenho. Nas várias zonas do desenho é referido, também com lápis de carvão, o número da cor a utilizar nessa zona ou motivo, sendo esses números correspondentes a um catálogo de cores.

    Escolha das cores

    Estando o desenho definido e marcado no papel quadriculado, procede-se à escolha das cores do fundo do campo e das barras, as mais importantes na composição.

    Estando definidas as cores a utilizar nos fundos do campo e das barras, procede-se à escolhas das cores da “armação” e do “matiz”, sendo as cores da “armação” as dos contornos do desenho e as do “matiz” as que se utilizarão nos vários motivos decorativos do campo e das barras. Combinam-se as cores de uma forma harmoniosa e de maneira a que se sigam os seguintes preceitos tradicionais: A cor de fundo do motivo central ser a mesma do fundo das barras, a cor do fundo do campo ser a mesma da franja e as seis cores utilizadas no cairel da franja serem as dos principais motivos do campo.

    Contagem, corte e marcação da tela

    Não sendo atualmente a tela confecionada em Arraiolos, é comprada a empresas portuguesas da especialidade, que têm produção própria ou, em regra, importam da Escócia.

    Com o desenho do tapete já definido e marcado, contam-se os pontos bordados que se preveem que venham a ser executados no comprimento e largura da tela, definindo-se assim a dimensão que deverá ter a tela com base no desenho previamente realizado no papel quadriculado. Corta-se em seguida a tela com mais dez centímetros do que as dimensões do desenho em cada uma das quatro extremidades de forma a que se possa fazer a bainha do tapete, fundamental para aí se coser a franja no final e para dar maior robustez às extremidades do tapete.

    Cortada a tela com tesoura, faz-se a marcação dos quatro quartos do desenho na tela com um lápis de carvão, bem como das barras, para além de ficar o centro definido pela interseção da linha central vertical com a linha central horizontal. Fica assim concluída a esquematização pré-decorativa do Tapete de Arraiolos, constituída por centro, campo simétrico nos quatro quartos e barras.

    Confeção da bainha

    Corta-se a tela para o tapete com mais dez centímetros que a dimensão do desenho do tapete em cada uma das quatro extremidades, de forma a se fazer uma bainha a toda a volta. Assim, os dez centímetros de tela em toda a volta são dobrados ao meio e em cada um dos quatro cantos dobra-se de forma a se criar uma linha diagonal no verso do tapete para união entre as partes da tela e assim se coser toda a bainha em volta do tapete com fio de linho mercerizado.

    A bainha dá robustez às extremidades do tapete e fica pronta para no final da confeção lhe ser cosida a franja, também com fio de linho mercerizado.

    O Bordado (armação, matiz e enchimento)

    O trabalho de bordado divide-se em três diferentes fases, armação, matiz e enchimento. Havendo em cada uma delas preceitos e procedimentos de confeção.

    A Armação ou o armar do tapete consiste em se bordar todos os contornos do desenho com recurso ao ponto cruzado oblíquo, popularmente conhecido como o ponto de Arraiolos, com técnica de dois por dois e nunca de três por três, para que o ponto seja o mais pequeno possível e assim a composição tenha a maior quantidade possível de pontos por metro quadrado, um dos mais importantes fatores de aferição da qualidade técnica artesanal.

    Primeiro borda-se a linha de pontos que a toda a volta separa as barras do campo do tapete, depois os contornos dos motivos do campo e por fim os das barras. Em motivos decorativos mais curvilíneos, na sua armação utiliza-se uma técnica de ponto mais alongado e de maior distanciamento entre pontos, para dar à composição um aspeto mais curvilíneo e menos geometrizado.

    Armado o desenho do tapete, começa-se a matizar, procedimento que consiste em bordar com o ponto cruzado oblíquo todo o interior dos motivos decorativos. Primeiros os do campo do tapete, e, por fim, o interior dos motivos decorativos das barras.

    Segue-se então o enchimento do fundo do campo e das barras, também com o ponto cruzado oblíquo. Primeiro o fundo do campo, bordando-se em sentido horizontal, e depois o fundo das barras, sendo as barras de cabeceira bordadas em sentido horizontal e as barras longitudinais bordadas em sentido vertical, para que visualmente se transmita a ideia de continuidade no bordado das barras.

    Em todas as três fases de bordado, no canto das barras utiliza-se a técnica popularmente conhecida como “canto em espiga” ou o “ponto casado” que consiste na união dos pontos bordados da barra longitudinal com os da barra de cabeceira, criando-se uma bissetriz visível no verso do tapete.

    Confeção da Franja

    A franja é confecionada no tradicional banco de franja de Arraiolos, o qual também pode ser designado de tear de franja. Com uma régua própria, em madeira ou metal, entrelaçam-se lãs de sete diferentes cores, sendo uma cor a que é utilizada para os laços da franja, sempre da cor do fundo campo, e as restantes seis para constituição do cairel da franja, entre as quais se contam cinco cores iguais às dos principais motivos decorativos do campo do tapete e uma correspondente à cor do contorno da barra. Após a confeção da franja, esta é cosida ao tapete com fio de linho mercerizado.

    Processo de confeção do Tapete de Arraiolos em ponto pé-de-flor:

    No que concerne à tipologia de confeção de Tapetes de Arraiolos com o ponto pé-de-flor, em que há a utilização de variantes técnicas e diferentes materiais e utensílios, deve ser referido que foi um tipo de confeção muito usual no século XVII, que esteve extinto até ao século XX e que se está a retomar em Arraiolos, sendo que nas décadas de oitenta e noventa do século XX e no início do presente século houve produção de réplicas de tapetes antigos nessa técnica característica nas oficinas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva.

    Criação artística e marcação dos desenhos

    Pelas características inerentes à técnica do ponto pé-de-flor a conceção do desenho destes tapetes é mais apropriada para a criação artística, pois um(a) artista pode realizar as linhas de desenho do tapete com lápis de carvão sobre uma folha de papel vegetal, desenhando normalmente apenas um quarto desse desenho de forma a que depois possa ser transposto para os quatro quartos que constituem o tapete na tela.

    No caso de se tratar de um desenho já existente, o procedimento pode ser realizado por um(a) desenhador(a), sem componente artística de criação, que com recurso a papel químico transponha através de decalque o desenho para o papel vegetal.

    Preparação da tela e transposição do desenho

    Sendo a tela destes tapetes em linho ou estopa de linho, a lã dos tapetes em ponto pé-de-flor é obrigatoriamente mais fina do que a utilizada nos tapetes convencionais, pois os espaços para a realização do bordado, entre o cruzamento da trama e da urdidura, são mais pequenos, pelo que o trabalho de contagem da tela é mais demorado e minucioso. Já o corte, obedece exatamente aos mesmos critérios dos tapetes de Arraiolos convencionais, deixando-se também neste caso espaço suplementar na tela para no final se fazer a bainha e aí se coser a franja do tapete.

    No que respeita à transposição do desenho para a tela é que há uma substancial diferença. Tendo o desenho sido previamente realizado no papel vegetal, utilizam-se várias folhas de papel químico dispostas sobre a tela em linho ou estopa de linho, e com o papel vegetal sobre essas folhas de papel químico, o(a) desenhador(a) passa por todos os contornos do desenho com um lápis de carvão ou uma esferográfica, fazendo-se assim a transposição do desenho do papel vegetal para a tela. Sendo o desenho no papel vegetal correspondente apenas a um quarto do desenho, repete-se o mesmo procedimento nos restantes três quartos para assim se unir os quatro quartos do desenho e se obter a totalidade do desenho do tapete.

    Bordado (Armação, matiz e enchimento)

    Com todo o desenho do tapete já transposto para a tela, tem início a armação do desenho, com a artesã a bordar todos os contornos que constituem o desenho utilizando a técnica do ponto pé-de-flor.

    Em seguida tem início o matiz ou matizar do bordado, que corresponde ao preenchimento dos motivos decorativos, primeiro do campo e depois da barra. Para se bordar o interior dos motivos decorativos do desenho utiliza-se o ponto de Arraiolos (ponto cruzado oblíquo), sendo que no caso específico destes tapetes o ponto não segue sempre a mesma direção, pois no caso de motivos mais curvilíneos ou que requeiram maior minúcia borda-se em sentido circular ou com ligeiras alterações na normal carreira de pontos.

    Por fim, procede-se à fase de enchimento, que corresponde ao bordar, em ponto de Arraiolos, dos fundos do campo e das barras, seguindo o bordado o tradicional sentido horizontal e em carreiras consecutivas de pontos.

    Bainha e Franja

    Nos tapetes de Arraiolos em ponto pé-de-flor e com tela em linho a confeção da bainha tem exatamente o mesmo procedimento utilizado nos tapetes convencionais, porém, só é feita após todo o trabalho de bordado estar concluído.

    A confeção da franja nesta tipologia de tapetes é completamente diferente da dos tapetes convencionais. Não se utiliza o banco de franja tradicional de Arraiolos, mas sim agulhas de tricô circulares em alumínio, com as quais, em trabalho de tricô, se confeciona toda a franja, a qual é depois cosida ao tapete com fio de linho mercerizado.

    Os desenhos

    No que concerne aos desenhos tradicionais dos Tapetes de Arraiolos, nos últimos cem anos a inovação tem sido escassa ou mesmo inexistente, sendo mais frequente a confeção de tapetes com desenhos já existentes ou a sua adaptação a outras dimensões ou com pequenas alterações nos seus motivos decorativos com base em estilizações. Todavia, o esquema pré-decorativo manteve-se exatamente igual, sendo constituído por um motivo central (só no caso de tapetes de desenho repetitivo não há um motivo central ou um centro do desenho definido), salvo raras exceções um campo simétrico nos quatro quartos e barras principais, tendo, por vezes, barras secundárias, mais estreitas, entre o campo e as barras principais, designadas de “gregas”, em alusão a tapetes antigos produzidos na Grécia em que se utilizava esse tipo de esquematização pré-decorativa.

    No que concerne aos motivos decorativos, havendo um enorme variedade, podem ser agrupados em quatro tipologias: Antropomórficos, zoomórficos, vegetais e geométricos.



    Materiais e Utensílios

    Os materiais e utensílios necessárias à confeção de Tapetes de Arraiolos são os seguintes:

    Agulhas – A agulha metálica de bico rombo serve para bordar em ponto de Arraiolos e a agulha metálica de bico pontiagudo serve para o bordado dos tapetes em ponto pé-de-flor, para coser a bainha da tela e a franja ao tapete. As agulhas de tricô metálicas n.º 4, o que corresponde aos seus 4 mm de diâmetro, servem para fazer a franja dos tapetes em ponto pé-de-flor.

    Banco de franja – Também podendo ser denominado de tear de franja, tem formato característico para a confeção de franjas para o tapete de Arraiolos convencional.

    Borracha – Utilizada para apagar os erros de quem desenha com recurso a lápis de carvão.

    Cadeira – É em pequenas cadeiras de madeira pintadas segundo a tradição eborense que as bordadeiras encontram a melhor posição para bordar durante várias horas.

    Dedal – Utilizado para proteção dos dedos das artesãs em todos os trabalhos com agulha inerentes à confeção do Tapete de Arraiolos.

    Esferográfica – Na transposição do desenho para o linho com recurso a folhas de papel químico por vezes utiliza-se a esferográfica, pois com a tinta o desenho fica mais visível do que com o lápis de carvão.

    Fio de Linho – Entre as artesãs denominado por “fio de carreto”, o fio de linho mercerizado serve para se coser a bainha da tela e para se coser a franja ao tapete.

    Lã – Com fios de lã de ovídeos de raça merina e sem qualquer adição de fibras artificiais bordam-se os tapetes.

    Lápis de carvão – Serve para marcar as cruzes correspondentes à prévia marcação do desenho em papel quadriculado, serve para fazer a marcação do esquema pré-decorativo na tela do tapete e para desenhar sobre papel vegetal os desenhos dos tapetes em ponto pé-de-flor.

    Linho – Tal como a estopa de linho, é o material utilizado para a tela dos tapetes de Arraiolos em que se arma o desenho com a técnica do ponto pé-de-flor.

    Papel quadriculado – Com as quadrículas previamente impressas e com a dimensão do ponto de Arraiolos que será utilizado no bordado, serve como base para a marcação do desenho e das cores.

    Papel Químico – Com várias folhas de papel químico de tamanho A4 dispostas sobre o linho faz-se a transposição dos desenhos nos tapetes de Arraiolos em ponto pé-de-flor.

    Papel vegetal – Na confeção de tapetes em ponto pé-de-flor serve como base para o artista realizar o desenho de forma a que depois seja possível a sua transposição para a tela em linho ou estopa de linho.

    Régua – Em madeira ou metal, com formato espalmado e cerca de 15 cm, serve para envolver e entrelaçar as lã na confeção da franja realizada no tradicional banco de franja.

    Serapilheira – Material das telas dos Tapetes de Arraiolos convencionais.

    Tesoura – Serve para cortar a tela dos tapetes e para cortar os fios de lã sempre que necessário durante a bordadura do tapete.



    Arraiolos e tapete são palavras indissociáveis. A manifestação e todo o seu processo de confeção estão profundamente enraizados entre a população feminina do concelho. Entre a população masculina, havendo alguns homens que bordam tapetes, são muito raros, sendo normalmente a sua função no processo de confeção a marcação do desenho em papel quadriculado. Já no que concerne às mulheres, uma esmagadora maioria é detentora dos vários saberes necessários à confeção de tapetes de Arraiolos, o que se revela de forma ainda mais veemente na faixa etária entre os quarenta e os oitenta anos, em que é muito raro conhecer-se mulheres naturais do concelho que não detenham competências de confeção do Tapete de Arraiolos.

    Muitas dessas artesãs, nas décadas de setenta e, principalmente, nas décadas de oitenta e noventa do século XX, tinham na confeção de tapetes de Arraiolos a sua profissão e principal meio de sustento. Essa dinâmica de conhecimento e saber tem ainda alguma relevância nas ocupações de um considerável número de mulheres do concelho, registando-se a existência de cento e vinte e nove que, nos últimos dois anos (2017 e 2018) confecionaram tapetes de Arraiolos de forma contínua para unidades produtivas do concelho, sendo atualmente, porém, e salvo exceções, uma atividade económica secundária e de parco sustento. Há depois uma larga franja de mulheres do concelho de Arraiolos que confecionam com frequência para utilização própria e decoração das suas casas ou para oferta de tapetes a familiares e amigas. O bordar dos tapetes é algo inerente ao seu percurso de vida, a uma sociabilidade assente num contexto muito próprio existente no concelho de Arraiolos, onde os tapetes e a sua confeção são parte integrante e muito presente no quotidiano das pessoas, havendo uma relação de afeto e pertença para com a manifestação.

    Essa dinâmica e os conhecimentos que detêm é algo indissociável da contínua transmissão desses saberes durante séculos, de mães para filhas, de avós para netas, num âmbito familiar, principalmente, mas também, em épocas áureas da produção em Arraiolos, através do ensino ministrado pelas “mestras” que coordenavam os trabalhos de confeção em contexto oficinal nas unidades produtivas de tapetes de Arraiolos, o que aconteceu muito nas décadas de quarenta e cinquenta do século XX e mais recentemente nas décadas de oitenta e noventa.

    Esse contexto cultural e a presença constante da manifestação no quotidiano das artesãs do concelho de Arraiolos é muito visível na forma como continuam a bordar tapetes em grupo “… à porta de casa, quando está bom tempo...”, fazendo parte dos hábitos de sociabilização da comunidade e estando associado ao hábito que muitas adquiriram noutros tempos em que se dedicavam em exclusivo à confeção de tapetes e bordavam em grupo nos espaços oficinais das unidades produtivas para as quais trabalhavam. Não sendo algo já tão vulgar como noutros tempos não assim tão distantes, assim que o sol dá um ar da sua graça é comum “… pôr-se a cadeirinha à porta...”. Veem-se então grupos familiares ou de vizinhas a, como é comum dizer-se no concelho de Arraiolos, “… coserem tapetes...”. Essa confraternização em volta da manifestação é comum a todas as freguesias do concelho, sendo hoje, curiosamente, até menos vulgar na vila de Arraiolos que em aldeias do concelho, onde a ruralidade está ainda muito vincada, passam menos carros nas ruas e muitas mulheres desenvolvem o seu quotidiano na casa ou em volta dela, e sempre que podem vão “prá porta coser tapete” e aproveitam para pôr a conversa em dia com as vizinhas e “… saber das novidades da terra...”.

    Apesar de ter havido uma disseminação das técnicas de confeção do tapete de Arraiolos pelo território nacional a partir de inícios do século XX, primeiro num âmbito restrito e num contexto de lavores femininos de classes mais abastadas e depois já em maior escala e com intuito comercial, Arraiolos continua a ser o epicentro da manifestação, continuando a haver muitas pessoas que se deslocam a Arraiolos, portuguesas e estrangeiras, para conhecerem a “terra dos tapetes”. Procuram o contacto com as gentes da terra, com as bordadeiras, vêm visitar o Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos, vêm comprar tapetes e procuram quem lhes possa restaurar tapetes antigos.

    Para além do Centro Interpretativo, que abriu ao público em 2013, onde podem conhecer a história, as técnicas, os materiais e a evolução decorativa do Tapete de Arraiolos, grande parte dos muitos visitantes que Arraiolos recebe diariamente trazem tapetes para restaurar, um dos saberes que as artesãs de Arraiolos dominam. Mesmo que as lãs desses tapetes tenham sido tingidas com corantes naturais, sabem como lavar os tapetes sem debotar as cores, limpam tapetes antigos, preenchem as zonas do tapete em que os pontos bordados estão degradados, remendam as telas, cosem as franjas e confecionam e cosem forros aos tapetes para futura proteção. Os saberes do restauro, não sendo parte integrante do processo de confeção dos tapetes de Arraiolos, refletem o conhecimento e experiência acumulada pelas artesãs e contribuem para que Arraiolos se mantenha como o reconhecido centro de origem e principal baluarte da manifestação apesar do facto de existirem noutras zonas do país produções com as técnicas de confeção do tapete de Arraiolos com organizações até mais desenvolvidas e com canais de distribuição massificados.

    No que concerne à confeção de tapetes de Arraiolos armados em ponto pé-de-flor sobre tela de linho ou estopa de linho, houve produção em grande número no século XVII, extinguiu-se a sua produção durante séculos e recentemente tem vindo a ser retomada, lentamente, em Arraiolos. São pois muito menos as artesãs que dominam as técnicas de confeção desses tapetes, que demoram quatro a cinco vezes mais tempo a serem confecionados e requerem uma muito maior minúcia e paciência em todo o seu processo. Por essa razão, no concelho de Arraiolos, contam-se cerca de meia centena de artesãs com esses conhecimentos, o que não sendo comparável com o número de artesãs que sabem confecionar tapetes de Arraiolos convencionais, é um considerável registo. Mais ainda pelo facto de que com o fim da confeção desses tapetes nas oficinas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva em inícios do século XXI, segundo se sabe, ser um tipo de confeção apenas existente no concelho de Arraiolos.

  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: A transmissão de conhecimentos da confeção de tapetes de Arraiolos entre as artesãs do concelho processa-se de duas formas: Em contexto familiar, onde aprendem com a mãe, uma irmã, uma avó ou uma tia, e em contexto oficinal profissional, onde, normalmente na adolescência, já integradas numa unidade produtiva de tapetes de Arraiolos, aprenderam com a “mestra” que coordenava os trabalhos em curso nessa oficina.
    Data: 2019/09/03
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Artesãs e artesãos do processo de confeção do Tapete de Arraiolos
  • Origem / Historial:
    Sobre a origem histórica e contexto inicial de confeção do Tapete de Arraiolos há teorias e indícios que apontam para diferentes hipóteses. Todavia, duas teses explicativas tornaram-se mais conhecidas.

    Uma teoria da autoria de Joaquim de Vasconcelos defende que os primeiros tapetes foram bordados em conventos, a qual foi depois melhor fundamentada por Sebastião Pessanha, investigador e colecionador de Tapetes de Arraiolos, que em 1916 defendia essa tese com base no facto de muitos tapetes antigos, até à extinção das ordens religiosas, em 1834, terem estado na posse de conventos portugueses e, segundo o autor, “serem obra do labor particular e conventual do século XVII” e recordarem “a existência tranquila de uma freira”.

    A outra teoria, com vários seguidores, que do século XIX até à atualidade foram defendendo e completando essa tese, trazendo novos argumentos, defende que o início da produção se teria dado por iniciativa de mouros tornados cristãos-novos após o édito de 1496, que determinava a expulsão ou conversão ao cristianismo das minorias religiosas existentes em território português.

    A primeira teoria, defendida principalmente por Sebastião Pessanha, é altamente improvável devido à inexistência de referências a teares, lãs e demais utensílios e materiais necessários à confeção dos tapetes de Arraiolos nos inventários de bens móveis dos conventos onde existiam tapetes de Arraiolos, sendo presumível que esses tapetes tenham feito parte de doações e dotes recebidos pelos conventos aquando da entrada para a vida monástica de religiosas de estratos sociais altos e, por isso, confecionados antes de serem incorporados nos bens desses conventos.

    A segunda teoria, aparentemente mais verosímil, é iniciada por Sousa Viterbo em 1892 e depois melhor substanciada, com dados históricos, em estudo publicado da autoria de Maria José Mendonça, em 1951. Esta autora liga o início da produção aos tapeteiros que se sabe terem existido na comuna muçulmana de Lisboa nos séculos XIV e XV. Tese seguida por Fernando Baptista de Oliveira, em 1973, e mais recentemente, em 2015, com a publicação da monografia “Origens e influências decorativas do Tapete de Arraiolos”, da autoria de Rui Miguel Lobo, em que à componente histórica dessa teoria se juntam indícios arqueológicos, nomeadamente a descoberta de uma tinturaria para tingimento lãs em Arraiolos, em 2003 e numa segunda campanha de escavações em 2012, que dados arqueológicos comprovam ter estado ativa entre os séculos XIII e XV, no local onde hoje fica a Praça do Município, e que pela sua enorme dimensão (133 fossas escavadas no substrato geológico) e características islâmicas (estrutura similar à tinturaria para tingimento de curtumes da Medina de Fès - Marrocos), certamente teria tornado Arraiolos terra conhecida entre a comunidade muçulmana pelo que, após o édito de 1496, faria de Arraiolos o local ideal para tapeteiros mouros convertidos ao cristianismo assentarem arraiais e aí iniciarem uma singular confeção de tapetes bordados e não tecidos em tear, como era tradição entre os mouros, como forma de demonstrarem a sua plena conversão e consequente adoção de técnicas culturalmente não islâmicas, para melhor integração na comunidade local.

    Contudo, apesar de assentes em indícios históricos e até arqueológicos, ambas as teorias têm um caráter especulativo e hipotético e carecem de confirmação documental e arqueológica mais elucidativa, pelo que de cabal e concreto apenas temos que os mais antigos tapetes de Arraiolos que chegaram aos nossos dias são datáveis do século XVII e que a primeira referência documental conhecida aos tapetes de Arraiolos é de 1598. Nessa referência documental e em outras duas de época muito próxima (1601 e 1602), que o historiador Jorge Fonseca encontrou no Arquivo Histórico Municipal de Arraiolos e publicou em 1996, no n.º 13 da Revista “Almansor”, há já indícios de um forte enraizamento da produção em Arraiolos e da sua indissociável ligação a essa vila, por serem referidos como “tapete da terra” e “tapetes feitos na terra”.

    Até finais do século XX, do contexto de produção do século XVII em Arraiolos pouco ou nada se sabia. Só em 1996, com o referido artigo publicado por Jorge Fonseca, é que houve alguma luz sobre a envolvência desta singular manifestação imaterial de cariz artesanal e expressão artística. Com base na consulta de 462 documentos de inventários pessoais ordenados pelos juízes de órfãos da vila de Arraiolos à data da morte dos respetivos proprietários, datados de um período entre 1573 e 1700, o referido historiador encontrou 148 referências a tapetes e alcatifas e várias referências a materiais fundamentais para a sua confeção, pelo que foi possível contextualizar a sua possível relevância, organização e caráter geral no período em causa.

    Segundo Jorge Fonseca, de um modo geral, o contexto social de produção até meados do século XVII, com base nos documentos consultados, centrava-se na vila de Arraiolos, sendo até possivelmente exclusiva dela. As presumíveis bordadeiras identificadas pertenciam às camadas sociais médias, em que se incluíam outros artesãos e pequenos proprietários. Seria uma atividade de âmbito doméstico, desenvolvida por mulheres, complementar da atividade dos maridos, artesãos, comerciantes ou pequenos proprietários agrícolas.

    O facto de na primeira metade do século XVII não se conhecerem referências a tapetes de Arraiolos noutros locais do território português mostra que muito possivelmente só na segunda metade desse século se tenha dado um ténue início à produção para comercialização e venda, satisfazendo necessidades de luxo e conforto da nobreza, de conventos e da burguesia mais abastada.

    No plano decorativo os Tapetes de Arraiolos datados do século XVII que chegaram aos nossos dias, apesar de tecnicamente serem bordados e, nesse aspeto, completamente diferentes dos orientais, decorativamente caracterizam-se por uma nítida inspiração na arte oriental e em especial nos tapetes de nós que as elites portuguesas importaram abundantemente nos séculos XV, XVI e XVII, vindos da Turquia, da Pérsia e da Índia. Esses tapetes orientais, apesar de distintos entre si no que concerne à sua decoração, tinham em comum o seu esquema pré-decorativo, constituído por centro, campo e barra, tal como o seu contexto de produção, pois tratavam-se de tapetes palacianos produzidos em oficinas das cortes otomana, safávida e mogol, respetivamente.

    Todavia, os tapetes de Arraiolos desse período não foram um decalque dos tapetes orientais, apenas partiram de uma base decorativa de influência oriental, tendo-se adotado os pressupostos formais e estruturais dos tapetes chegados a Portugal no dealbar da Idade Moderna. Numa época em que chegavam à Europa estilos e tipologias artísticas que tiveram influência na evolução das artes decorativas europeias, dos bordados ao mobiliário e da faiança à azulejaria, o Tapete de Arraiolos inclui-se nessa tendência da arte europeia e teve o percurso característico das artes ornamentais desses tempos. Numa primeira fase foram-se buscar influências não só aos tapetes de nós orientais, mas também às colchas indo-portuguesas e a padrões azulejares em voga, tendo-se transposto para o bordado todas essas inspirações, umas vezes de forma mais fiel aos modelos originais, outras de uma forma mais imaginativa. Nessa época, em que muitos tapetes foram bordados com a técnica do ponto pé-de-flor, enraizou-se a tradição de utilização nas composições dos tapetes de Arraiolos de vários motivos decorativos de origem oriental como são a “águia bicéfala”, o “arabesco”, o “cipreste”, o “cravo”, a “corça”, a “cruz suástica”, a “flor-de-lótus”, a “nuvem-tchi”, o “octógono” ou a “palmeta persa”.

    Das tentativas de alguns autores em distinguirem e agruparem decorativamente os Tapetes de Arraiolos, a mais eficiente foi preconizada por Maria José Mendonça, em 1951. Sendo, enquanto conservadora do Museu nacional de Arte Antiga, uma profunda conhecedora dos tapetes orientais, e não podendo, no caso dos tapetes de Arraiolos, fazer uma divisão com base nos seus centros de produção, como era normal nos tapetes orientais, esta autora realizou uma divisão por padrões decorativos. Segundo Maria José Mendonça, os tapetes de Arraiolos do século XVII e primeira metade do século XVIII podiam ser agrupados em cinco padrões: “padrão geométrico”, “padrão floral”, “padrão de rosetões”, “padrão oriental” e “Padrão de bichos”. Já no que concerne à produção posterior, já mais popular e menos influenciada pela arte oriental, correspondente à segunda metade do século XVIII e primeiro quartel do século XIX, divide a produção em três padrões decorativos: “padrão de ramagens”, “padrão geométrico” e “padrão floral”.

    O Tapete de Arraiolos tornou-se uma arte singular partindo de técnicas e tendências decorativas e ornamentais já existentes. O ponto cruzado oblíquo, hoje conhecido como ponto de Arraiolos, não é original de Arraiolos, sendo em épocas mais recuadas referido como o ponto de trança eslava, o qual é conhecido na Península Ibérica desde, pelo menos, o século XII. E as decorações utilizadas também não eram uma novidade. Contudo, a transposição dessas decorações para o linho, estopa de linho ou canhamaço por meio de um bordado em lã merina, deu-lhe a singularidade própria de uma confeção artesanal de experimentação, de tentativa e de procura de novas formas que marcou a evolução histórica e artística do Tapete de Arraiolos até ao seu crepúsculo e ressurgimento na passagem do século XIX para o século XX.

    Se tal como indiciou Jorge Fonseca a confeção de Tapetes de Arraiolos no século XVII, ou pelo menos na primeira metade dessa centúria, teria um caráter doméstico, particular e, possivelmente, sem fins lucrativos, no século XVIII, segundo as fontes existentes, começa já a denotar um forte caráter comercial, tendo-se tornado um negócio significativamente rentável, dado o exponencial aumento de bordadeiras e de produção de que há conhecimento através da consulta de documentos da época. Todavia, esse crescimento da componente comercial e organização da produção terá sido gradual, indo ganhando uma cada vez maior dimensão ao longo dessa centúria, como o demonstram as fontes existentes sobre o assunto.

    No início do século XVIII, pelo elevado número de referências a materiais e utensílios para a produção de tapetes que se encontram nos inventários de bens de pessoas da vila de Arraiolos e de aldeias do concelho, como Sabugueiro, S. Pedro da Gafanhoeira ou Santana do Campo, tudo indica que já haveria uma organização de um grupo ou grupos que coordenavam os trabalhos e tratavam da sua comercialização, mas teria ainda uma pequena dimensão, como o demonstra o facto de não haver qualquer referência à confeção e comercialização de tapetes no “Corografia Portuguesa”, publicada em 1708 e da autoria do Padre Carvalho da Costa.

    Até final da primeira metade do século XVIII, certamente que esse panorama terá mudado drasticamente, havendo em meados do século um comércio e contexto de produção já organizado e que começava a ganhar uma dimensão nacional, pois no “Dicionário Geográfico”, publicado em 1747 pelo Padre Luiz Cardoso, já se lê que “ha nesta villa fabrica de tapetes, que d’aqui levam para outras terras do reino”. Esta informação e a forma como foi escrita indiciam já uma confeção e produção organizada em moldes certamente similares aos atuais, havendo um grupo ou grupos que coordenavam os trabalhos em curso e comercializavam e os indivíduos que procediam à confeção, em que nesta altura se incluíam não só as bordadeiras, mas também os tecelões, cardadores e fiandeiras, profissões sobre as quais há vastas referências em documentação da época respeitante à vila de Arraiolos e povoações do seu concelho, tendo-se já então formado a comunidade envolvida que ainda hoje se mantém como baluarte desta manifestação, a população do concelho de Arraiolos.

    Em meados do século XVIII inicia-se o que alguns autores denominaram de período áureo da produção popular, no que foi, no plano decorativo, um gradual afastamento dos desenhos de inspiração oriental como forma de acompanhar os gostos vigentes da época, tendo a confeção de tapetes assumido o papel de grande “indústria” da vila, gerando uma crescente procura e ganhando fama por todo o território português (começam a surgir várias referências a Tapetes de Arraiolos em fontes documentais de outras geografias), ao mesmo tempo que se enraizava como algo muito próprio da população arraiolense e a sua imagem de marca. Há também já nessa altura indícios fortes de que os artesãos e artesãs iam transmitindo os seus conhecimentos de geração em geração, num âmbito familiar, pois como mostrou o investigador Bruno Lopes havia com frequência apelidos comuns, como era o caso de muitos tecelões e cardadores do século XVIII terem os apelidos Rodrigues, Prates e Lopes.

    Havendo ainda muito por estudar e saber sobre o Tapete de Arraiolos do século XVIII, é ponto assente que é nessa centúria que atinge uma dimensão nacional. A confeção atinge números consideráveis e o próprio nome da vila se torna indissociável da produção de tapetes. Em 1791, num poema intitulado “Caloirados”, integrante da obra de cariz humorístico “Macarronea Latino Portuguesa” a vila de Arraiolos é referida e apelidada de “dives terra tapetum”, o que é demonstrativo do enraizamento da manifestação nas gentes da vila já nessa época e da sua repercussão de âmbito nacional.

    Se no plano artístico e decorativo se sabe ter havido um afastamento dos padrões decorativos orientais, no que concerne aos modos de organização e contexto de produção as fontes são muitos escassas e esparsas. Todavia, a passagem do aristocrata e viajante inglês William Beckford por Arraiolos, em 1787, foi um forte contributo para o esclarecimento das dúvidas relacionadas com o contexto de produção e dos seus modos de organização. Ainda que em poucas palavras, fica a clara ideia de que havia um grupo organizado que coordenava os trabalhos em curso de todos os artesãos e artesãs envolvidos, pois após ter comprado vários tapetes na vila de Arraiolos, William Beckford escreveu no seu diário que eram “producto d’uma fábrica que dá trabalho a 300 operários”.

    Precisamente por haver uma elevada produção, gerou-se um aumento da concorrência, o que teve reflexo nos materiais utilizados na produção e nas tipologias decorativas. Para além das tendências de gosto estarem em permanente mutação, o objetivo de obtenção de lucros mais rápidos fez com que os desenhos passassem a ter uma menor complexidade esquemática, sendo o linho e a estopa de linho substituídos por materiais mais grosseiros para produção das telas, de forma a que o espaço entre a trama e a urdidura fosse maior, reduzindo-se assim o número de pontos bordados por metro quadrado e o tempo de confeção dos tapetes. É por isso que nos tapetes de final do século XVIII e da primeira metade do século XIX se vislumbram alterações decorativas drásticas, com os chamados padrões de ramagens e os desenhos de cariz vegetalista a serem a grande imagem de marca dessa época. Do orientalismo restava apenas o esquema decorativo, quase sempre simétrico nos quatro quartos do desenho, e a sua divisão pré-decorativa constituída por centro, campo e barra.

    No início do século XIX a produção de Tapetes de Arraiolos começa a evidenciar sinais de crise. Em 1807, no âmbito de uma crise de fornecimento de pau-brasil associada às consequências das invasões napoleónicas, como explicou o historiador de arte José-Augusto França, é assinado um requerimento por trinta fabricantes de Tapetes de Arraiolos, todos homens: António Gomes, António Joaquim da Gama, António José Silvério, António Pais, António Pinto, Bento José Venta, Constantino José Malegão, Cristóvão José Vidigal, Domingos José da Fonseca, Francisco António Pitaça, Francisco Manuel Prata, Francisco Varela Ramalho, Isidoro Martins Fernandes, João Idalgo, João Inácio dos Santos, João Inácio Fragoso, João Martins Dordio, João Martins Fernandes, José António de Carvalho, José da Silva Ventura, José do Carmo, José Maria, José Martins Banha, José Martins Bento, José Pais de Carvalho, Manuel Barreto, Manuel da Mota Veiga da Cunha, Manuel José, Maurício de Paiva e Miguel Martins Conrado. Comprovadamente era aos homens que cabia a gestão e organização produtiva, sendo que na confeção, salvo exceções, cabia também aos homens o trabalho de tecer as telas (há referência a vários tecelões no concelho) e cardar as lãs e às mulheres a carmeação, fiação e tingimento das lãs e todo o trabalho de preparação das telas e da bordadura dos tapetes.

    No primeiro quartel do século XIX adensa-se a crise na comercialização de Tapetes de Arraiolos, fruto do tumultuoso contexto económico-social do país, havendo uma drástica redução da produção e de pessoas ligadas à sua confeção. A título de exemplo, em 10 de março de 1816 há um novo requerimento conjunto assinado pelos fabricantes de Tapetes de Arraiolos, contando-se apenas dezasseis fabricantes, sendo que apenas um dos trinta fabricantes que assinam o documento de 1807 também tem assinatura no documento de 1816, José Martins Banha.

    Para além do acentuado decréscimo de qualidade material e decorativa que se registou na passagem do século XVIII para o século XIX, a produção comprovadamente caiu de forma abrupta, pois sendo mais recentes, são muito menos os tapetes do século XIX que chegaram aos nossos dias do que os que têm datação do século XVIII e mesmo do século XVII. Ao longo dos dois últimos terços do século XIX a confeção de tapetes de Arraiolos foi gradualmente diminuindo, tendo-se chegado ao ponto de no último quartel do século XIX a produção estar praticamente extinta, mantendo-se apenas uma escassa confeção por pessoas que detinham o saber fazer e davam continuidade à produção apenas num plano particular e no recato dos seus lares, certamente para uso próprio. Houve mesmo informações que indiciam uma extinção, como a referência de Pinho Leal, no primeiro volume da obra “Portugal Antigo e Moderno”, publicada em 1873, e em que se refere à confeção de tapetes como coisa do passado: “Houve aqui uma boa fábrica de tapetes, que no século passado prosperou muito, tendo os seus productos grande extracção no paiz e nas nossas possessões ultramarinas”.

    Todavia, ao contrário do que possa parecer não terá havido uma total extinção da produção e muito menos da existência de pessoas com as competências necessárias à confeção, antes houve foi uma paralisação da organização por unidades produtivas com fins de comercialização, pois pessoas com o saber fazer e as competências necessárias continuou a haver. Em 1917, o ilustre pintor arraiolense Dordio Gomes, em artigo sobre os Tapetes de Arraiolos publicado no jornal local “O Povo de Arraiolos”, refere várias tapeteiras que trabalharam na confeção de tapetes no século XIX, nomeadamente Joaquina Rosa Pais Leitão, Maria Paula Rocha, Mariana Emília Leitão, Mariana Luz, Antónia Freira, Dorotea Maria Ventura e Genoveva do Carmo.

    Curiosamente, o notório declínio de produção do Tapete de Arraiolos coincidiu com o início da sua historiografia, a qual gerou a sua inclusão nas artes decorativas portuguesas. No Portugal do Liberalismo resultante da guerra civil finda em 1834, o Estado português passa a ser proprietário de uma vasta e valiosa coleção de tapetes de Arraiolos, em virtude da extinção das ordens religiosas, logo em 1834. E é nesse contexto que tapetes de Arraiolos dos séculos XVII, XVIII e XIX existentes em conventos portugueses são incorporados, entre o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, em coleções de museus de âmbito nacional, como o Museu Nacional de Arte Antiga, em 1884, em palácios nacionais e em edifícios ministeriais e do Estado Central. É dessa forma que se tornam conhecidos e motivo de curiosidade entre muitos intelectuais portugueses de finais de XIX e inícios do século XX e que, de forma peculiar, se enraíza entre as bordadeiras arraiolenses as designações que passaram a utilizar para identificação de desenhos históricos de tapetes. Utilizam, na maior parte das vezes sem conhecimento do porquê de se ter atribuído essa designação ao tapete, nomes como “o Coimbra”, “o Vila Viçosa”, “o Arte Antiga”, “o Arronches”, “o Portalegre” “o Seteais” e muitos mais. Designações essas que correspondem à coleção museológica em que os tapetes foram incorporados, ao convento de onde provêm, como é o caso do “Seteais”, ou à localidade de proveniência, como é o caso do “Arronches”, designação correspondente a uma tapete seiscentista, em ponto pé-de-flor, pertencente à coleção do Museu Nacional de Arte Antiga e proveniente da Ermida de Nossa Senhora da Conceição dos Matos, em Arronches.

    Logo no século XIX surgem artigos sobre os Tapetes de Arraiolos da autoria de nomes tão distintos como Fialho d’Almeida, Ramalho Ortigão e Sousa Viterbo, embora mais no âmbito de darem notícia de tão importante tradição e da sua antiguidade, sem que haja qualquer estudo aprofundado.

    No século XIX apenas o erudito arraiolense Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara se refere ao Tapete de Arraiolos de uma forma mais específica e alongada, deixando um fundamental contributo para o seu estudo através da referência às receitas de tingimento de lãs com corantes naturais. É pois ao longo do século XX e até à atualidade que vários autores desenvolvem estudos específicos sobre o Tapete de Arraiolos, sob o prisma de diferentes áreas do conhecimento, criando-se datações e balizas cronológicas, agrupando-se padrões decorativos e tipologias ornamentais e enquadrando-se a sua confeção e produção em domínios do saber científico. De entre um vasto leque de autores devem ser referidos os estudos, por ordem cronológica das suas publicações, de Joaquim de Vasconcelos, José Pessanha, Sebastião Pessanha, Maria José Mendonça, Reynaldo dos Santos, Fernando Baptista de Oliveira, Fernanda Passos Leite, Teresa Pacheco Pereira, Jorge Fonseca, Cláudia Almeida, Bruno Lopes, Cristina Dias, Ana Manhita e Rui Miguel Lobo.

    No que concerne à continuidade da manifestação imaterial e consequente produção do Tapete de Arraiolos na sequência da sua quase extinção no final do século XIX, foi fundamental um movimento que teve a duração de quase trinta anos, ativo em vários âmbitos e com muitos protagonistas, e que ficou conhecido como o “Ressurgimento do Tapete de Arraiolos”, o qual permitiu a continuidade, mas gerou significativas alterações técnicas, materiais e decorativas, sendo fundamental o conhecimento desse período para que se perceba como e de que forma o Tapete de Arraiolos chegou aos nossos dias.

    Em 1897, o conhecido artista plástico e decorador José Queiroz é convidado para decorar a casa do Poço Novo, em Lisboa, propriedade do seu amigo José Viana da Silva Carvalho. José Queiroz, conhecedor que era dos tapetes de Arraiolos, propôs que a sala de bilhar fosse decorada com um exemplar do bordado arraiolense. Para tal, em 1898 desloca-se a Arraiolos, onde para seu espanto tem muita dificuldade em encontrar alguém que pudesse realizar essa tarefa. Apenas encontrou algumas senhoras já de idade avançada que iam muito pontualmente bordando tapetes que lhe encomendavam a título particular. José Queiroz, que, entretanto, também já tinha sido incumbido de decorar a casa de Anselmo Braamcamp Freire, acaba por encomendar a confeção dos tapetes a Angélica Perdigão de Carvalho, que tem a ajuda das suas irmãs e do cardador António Santos Conrado.

    É neste contexto, em que se corria o risco de desaparecer por completo o saber fazer do Tapete de Arraiolos, dada a idade avançada das poucas pessoas com as competências necessárias para a produção, que José Queiroz começa a idealizar a abertura de uma escola técnica de tapetes de Arraiolos. É então que em conversas como seu amigo Augusto Ennes, com ligação à Real Casa Pia de Évora, consegue que por intermédio de Henrique de Sá Nogueira, antigo governador civil do distrito de Évora, e do próprio provedor da Real Casa Pia de Évora, entre em funcionamento uma oficina de confeção de tapetes de Arraiolos na Real Casa Pia de Évora, em 1900, em que passaram a aprender e trabalhar órfãs e jovens mulheres de estratos sociais muito baixos. Por indicação do administrador do concelho de Arraiolos, Maria Paula Rocha e a sua filha Joana Amália da Rocha vieram de Arraiolos para ensinar todas as técnicas à professora, Teresa de Jesus Roberto da Silva, que veio a ser a responsável pela oficina, e acabaram elas próprias por integrar a oficina como artesãs. Vieram ainda de Arraiolos o cardador António Santos Conrado e Teodoza Cascalho, que com as suas irmãs eram as últimas conhecedoras do processo de fiação das lãs. Os desenhos dos tapetes que se produziam na oficina eram da autoria de Jayme Rodrigues Feliciano e, em 1917, Maria do Sacramento Palma Guerreiro já era uma das gerentes da oficina, ela que tinha sido uma das primeiras alunas da oficina em 1900.

    Também nos primeiros anos do século XX o Tapete de Arraiolos começa a ser motivo de interesse de investigadores que começam a criar divisões tipológicas e decorativas para diferenciar a produção conhecida desde o século XVII, no que se tornaram mais conhecidos os trabalhos de José Pessanha, que em 1906 divide os tapetes de Arraiolos entre eruditos e populares, sendo eruditos os do século XVII e os da primeira metade do século XVIII que apresentavam composições inspiradas na arte oriental, e populares os posteriores, de conceção não evocativa e de caráter mais inocente de um ponto de vista artístico. Depois, em 1916, o seu filho Sebastião Pessanha, também investigador e colecionador de tapetes de Arraiolos, desenvolve a já referida teoria relativa às origens da produção em conventos e divide a produção em três épocas decorativas distintas, no que se mantém, até aos nossos dias, como a mais conhecida divisão decorativa entre as bordadeiras de Arraiolos, as quais continuam a balizar cronologicamente os desenhos dos tapetes por serem da primeira, segunda ou terceira época. E que consiste, grosso modo, numa divisão entre os tapetes da segunda metade do século XVII (1.ª Época), dos dois primeiros terços do século XVIII (2.ª Época) e último terço do século XVIII e primeira metade do século XIX (3.ª Época).

    É pois precisamente Sebastião Pessanha uma das principais figuras que contribuem para o sucesso do movimento que se veio a convencionar denominar de “Ressurgimento do Tapete de Arraiolos”, pois foi a revista “Terra Portuguesa”, de que era proprietário e um dos investigadores, a organizar a grande exposição de 1917 no Convento do Carmo, em Lisboa. Essa exposição, proposta por José Queiroz, logo em 1913, numa assembleia-geral do Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga, com a ideia de que a exposição se pudesse realizar nos salões do museu, o que foi imediatamente aprovado, mas foi sendo adiado e nunca se chegou a concretizar. Foi então que, em 1916, com organização da revista “Terra Portuguesa” e apoio da revista “Archeólogos Portugueses”, Sebastião Pessanha se rodeou de vários intelectuais (Vergílio Correia, Alberto de Sousa, Teixeira Lopes, José Queiroz e José Pessanha) para que se consumasse a realização da exposição no Convento do Carmo, onde foi inaugurada no dia 8 de Março de 1917.

    Essa exposição, em que estiveram patentes setenta e sete tapetes de Arraiolos, de várias épocas e proprietários, teve uma dimensão nacional e enorme eco em Arraiolos, tendo saído uma grande reportagem no jornal “Povo de Arraiolos” e havido contactos próximos com muitos arraiolenses pertencentes aos círculos locais mais influentes e que se deslocaram à exposição, participando ativamente na sua organização.

    É precisamente por via desse contacto prévio à inauguração da exposição que logo no início de Novembro de 1916 Vergílio Correia dava nota na revista “Terra Portuguesa” da abertura de uma oficina em Arraiolos, iniciativa do abastado lavrador arraiolense João Piteira Franco, ficando a sua direção a cargo da sua mulher, Lucrécia Ramalho Franco, e a coordenação dos trabalhos a ser realizada por duas mestres da confeção do bordado arraiolense, Jacinta Leal Rosado e Angélica Perdigão de Carvalho, a qual tinha bordado os tapetes encomendados por José Queiroz em 1900. Essa oficina, onde logo se juntaram várias artesãs, teve contudo uma curta duração, no que concerne a ser propriedade de João Piteira Franco, pois em 1920 já se havia tornado na Sociedade Rosado & Pinto, que anos mais tarde, em 1945, viria a ser conhecida como a “Kalifa”, unidade produtiva que marcou todo o século XX arraiolense no que respeita à confeção de tapetes e à sua transmissão a várias gerações de mulheres do concelho.

    A sociedade Rosado & Pinto era constituída por Jacinta Leal Rosado, diretora artística, no que era coadjuvada pela sua afilhada Maria Jacinta Xavier. O outro sócio era João Marcos Pinto, arraiolense, filho do comerciante João Sebastião Dordio Pinto, que se havia formado bacharel em Lisboa e que assumia o papel de diretor comercial. João Marcos Pinto, jovem letrado e de grande dinamismo, começou de imediato a tratar da expansão comercial e da divulgação do Tapete de Arraiolos além-fronteiras, com a presença em exposições e pequenas mostras em França, Inglaterra, Espanha, Estados Unidos da América e Brasil, tendo o Tapete de Arraiolos, nessa década de vinte ganho um enorme impulso e uma dimensão internacional.

    Todavia, no final da década de vinte, numa das viagens ao Brasil, João Marcos Pinto acaba por aí se estabelecer, só voltando a Portugal vinte e cinco anos depois. A unidade produtiva Rosado & Pinto passa a ser gerida por Jacinta Leal Rosado e por Maria Jacinta Xavier, entrando de imediato em percurso descendente, o que veio a causar o seu estado de falência em 1937. Em julho desse ano, após sucessivos apelos do pintor arraiolense Dordio Gomes e do intelectual eborense Celestino David, a Câmara Municipal de Arraiolos decide prestar proteção à oficina de Jacinta Leal Rosado, cedendo-lhe gratuitamente uma casa para instalação da oficina mediante o cumprimento dos requisitos de autenticidade dos tapetes aí produzidos.

    Esta preocupação do poder local em defender a tradicionalidade da produção de tapetes de Arraiolos surge do facto de, paralelamente a todo o processo de ressurgimento do Tapete de Arraiolos, terem começado a surgir, desde o início do século XX, um pouco por todo o país, oficinas de produção de tapetes com um tipo de produção já mais industrializada, como foram os casos de Granja (Vila Nova de Gaia), Santarém e também em Nelas, na Beira Alta.

    Essa disseminação das técnicas de confeção do Tapete de Arraiolos tem início nos primeiros anos do século XX e num âmbito particular. Com a divulgação e destaque que o Tapete de Arraiolos foi tendo entre círculos intelectuais da época, algumas senhoras de classes sociais altas e abastadas de outras regiões do país desenvolveram o hábito de se reunirem ao serão a bordar tapetes e almofadas para decoração das suas casas com as técnicas de confeção que há vários séculos se realizavam em Arraiolos. Foi a partir desse âmbito privado, muito restrito e inserido numa tendência muito em voga na época, os lavores femininos, que, gradualmente, as técnicas do bordado arraiolense se foram tornando conhecidas de mais pessoas e se foram desenvolvendo estruturas organizadas de produção, as quais tomaram algum fulgor e se mantêm até aos dia de hoje, havendo pelo território português, principalmente no norte, uma organizada produção com algumas das técnicas de confeção do Tapete de Arraiolos.

    Logo no início desse processo de disseminação nacional, se por um lado esta realidade mostrava a criação de um estatuto social elevado do Tapete de Arraiolos no contexto da valorização da arte popular iniciado em finais do século XIX, por outro lado começaram a surgir preocupações quanto à descaracterização da confeção e decorações tradicionais por parte dos próprios protagonistas do processo de ressurgimento do Tapete de Arraiolos, como o demonstram as palavras de Sebastião Pessanha em artigo no jornal “Povo de Arraiolos” logo em 8 de Abril de 1917: “Eu tenho a maior consideração pelo trabalho particular d’algumas senhoras de Lisboa, Santarém, Porto, Granja, mas considero-o como uma muito restrita influência n’esse desejado ressurgimento (…) a diversidade de centros produtores, fora da região, pode levar etnograficamente a dois erros lamentáveis: o deslocamento da indústria, e a confusão a que poderia levar de futuro os bordados modernos, não rigorosamente inspirados nos antigos.” Sendo uma opinião muito localizada no tempo e proferida por um dos principais protagonistas do processo de ressurgimento do Tapete de Arraiolos, o tempo e o passar dos anos não deixaram, de alguma forma, de confirmar os seus receios.

    Entretanto e paralelamente foi através da firma Rosado & Pinto, principalmente, que se foi dando continuidade em Arraiolos à manifestação e à sua transmissão. Desde a sua abertura que se determinou que se tomaria como regra a produção decorativa dos séculos anteriores, tomando-se como referência as três épocas decorativas propostas por Sebastião Pessanha para diferenciar os exemplares a confecionar. Nesse processo de regresso aos modelos decorativos mais antigos, surgem tapetes de Arraiolos decalcados de exemplares de outros séculos e, por vezes, a junção de motivos de diferentes épocas e tipologias num mesmo exemplar, tendo-se gerado uma miscelânea decorativa de motivos e esquemas de outras épocas. No que respeita às cores utilizadas nos tapetes houve uma tendência generalizada de utilização de cores de tons ténues como o bege ou a cor de grão no fundo do campo e das barras dos tapetes, o que aconteceu por serem essas as cores que a maioria dos tapetes de outros séculos apresentavam no início do século XX.

    Sabemos hoje, porém, que essas não eram as cores originais desses tapetes mais antigos, pois entre 2007 e 2010, através do projeto REMATAR, desenvolvido pelo Laboratório HERCULES da Universidade de Évora, em colaboração com o Museu Nacional de Arte Antiga, foi possível realizar análises químicas às lãs tingidas com corantes naturais de tapetes dos séculos XVII, XVIII e XIX da coleção daquele museu e assim determinar os corantes e mordentes utilizados e dessa forma saber, aproximadamente, quais as cores que originalmente teriam tido esses tapetes. Em resultado desse estudo, de que resultou a tese de doutoramento da investigadora Ana Manhita, confirmou-se o que há muito se suspeitava, que os tapetes mais antigos tinham, em regra, cores fortes, vermelhos, azuis, verdes, tal como os tapetes orientais dessas épocas, as quais se tinham desvanecido pela sua exposição à luz e a raios ultravioletas. Assim se confirmava a descrição que William Beckford havia escrito em 1787 sobre os tapetes de Arraiolos que comprou naquela vila: “desenhos grotescos, cores extravagantes e garridas que proporcionavam um espectáculo exótico flamejante.”

    Todavia, por desconhecimento, nas décadas de vinte e trinta do século XX, foram-se repetindo os desenhos e esquemas decorativos dos tapetes de séculos anteriores com as cores que os olhos viam naquele tempo e não com as cores originais desses tapetes. Essas alterações cromáticas enraizaram-se na produção e foram seguidas, em regra, até aos dias de hoje, havendo atualmente, de uma forma geral, a ideia que a tradição do Tapete de Arraiolos são os fundos de cor clara.

    Ainda nessa perspetiva, deve ser referido que nesse período de ressurgimento do Tapete de Arraiolos foi muito comum a confeção de um tipo de tapetes em que as lãs não eram tingidas e que visualmente se assemelham às mantas alentejanas de Reguengos de Monsaraz e Mértola, modelo que Thomas Alvim num artigo de 1927 anunciava em tom elogioso, escrevendo que “um novo tipo foi agora criado, que caracteriza e marcará no futuro a época actual do Ressurgimento. Refiro-me ao tapete sem colorido artificial, apenas executado com as cinco cores naturais e próprias da lã: preta e branca; melton ou surrubeca, clara, cinzenta ou escura. Sem cromatismos, sem rutilâncias, dão harmonias bem combinadas”.

    A partir da década de trinta do século XX assiste-se à multiplicação de focos de produção noutras regiões do país, mais sólidos que os existentes em Arraiolos no plano produtivo e comercial, mesmo apesar de ser a produção em Arraiolos a preferida da classe intelectual responsável pelo ressurgimento. Tal como evidenciou a antropóloga Cláudia Almeida na sua dissertação de mestrado de 2004, são um exemplo claro de como a tentativa de alguns intelectuais de finais do século XIX e de inícios do século XX de darem um enquadramento nacional a algumas manifestações da arte popular se veio a revelar problemática, refletindo-se na desterritorialização de algumas produções artesanais. O que acabou, por outro lado, por valorizar a ideia de regionalidade e de preservação das manifestações e produtos no seu local de origem.

    Curiosamente, a escola-oficina de Évora no processo de ressurgimento fechou e a própria oficina de Arraiolos entrou em decadência prematuramente. Na década de quarenta do século XX a confeção de Tapetes de Arraiolos, em Arraiolos, era assegurada por artesãs ao serviço da sociedade Rosado & Pinto, situada em edifício da Rua Alexandre Herculano, onde muitas jovens arraiolenses aprenderam e entraram no mundo laboral logo após concluírem o ensino obrigatório, no que era a melhor forma de escaparem às agruras do duro trabalho rural onde a maioria da população trabalhava então.

    Tendo Jacinta Leal Rosado falecido em 1942, a direção da oficina passa a ser assegurada por Maria Jacinta Xavier, que imediatamente procura um parceiro financeiro para o projeto, encontrando o empresário Henri Chatelanaz, que havia constituído avultada fortuna pessoal desde a sua chegada a Portugal no início do século XX. No dia 1 de janeiro de 1945 surge então uma nova sociedade comercial que integra todos os bens da antiga firma Rosado & Pinto, constituída pelos dois sócios e designada de M. J. Xavier e C.ª Lda. Porém, logo em março desse ano entra para a sociedade, como sócio minoritário, Agostinho Correia Barbeiro, “o Sr. Barbeiro”, personagem marcante para várias gerações de bordadeiras arraiolenses e que personificou a produção de tapetes em Arraiolos, até à sua morte, no início da década de noventa do século XX. Foi o “Sr. Barbeiro” que passou a gerir a firma, então já registada como “Kalifa: Arraiolos-Portugal”, em Abril desse ano.

    Por ser negócio rentável, em 1946 a empresa calipolense “Sofal” também cria uma secção de produção de tapetes de Arraiolos, vindo em 1966 a abrir uma loja-oficina denominada de “Sempre Noiva”, na população de Ilhas, pertencente à freguesia de Arraiolos, dando início a uma produção de tapetes de Arraiolos nos mesmos moldes organizacionais da “Kalifa” e que durou até ao final do Estado Novo.

    Também na década de sessenta e com duração até ao 25 de Abril de 1974, abriram as unidades produtivas “D. Nuno” e “Ilha Bela”, sendo que esta última, pertencente ao empresário Vaz Belo, apenas tinha oficina de confeção nas Ilhas-Arraiolos.

    Em meados do século XX, aproximadamente na mesma altura em que a empresa “Sofal” começa a produzir tapetes de Arraiolos, dá-se uma mudança de grande relevo na confeção, tanto a “Sofal” como a “Kalifa” passam a comprar lãs previamente tingidas com corantes artificiais, extinguindo-se assim todo o processo de tratamento da lã e o seu posterior tingimento com corantes naturais. Foi precisamente nessa altura que teve início o processo de confeção de tapetes de Arraiolos que se pratica atualmente.

    Até à Revolução de 25 de abril de 1974, que pôs fim ao regime do Estado Novo, os modo de organização, transmissão e produção do Tapete de Arraiolos mantiveram-se inalterados, atraindo muitas mulheres arraiolenses para a profissão de bordadeira.

    Após o 25 de Abril de 1974, apenas a Kalifa se mantém aberta (encerra nos primeiros anos do século XXI, já sob a gestão de Alfredo Barbeiro, filho do “Sr. Barbeiro”) e são criadas várias unidades produtivas a funcionar nos mesmos moldes, com um edifício com loja e uma pequena oficina. As décadas de setenta, e principalmente as de oitenta e noventa, foram um período áureo da produção, devido à acentuada melhoria das condições de vida da população portuguesa e a uma cada vez maior divulgação da sua produção, havendo um substancial aumento da procura dos Tapetes de Arraiolos. No início da década de noventa contavam-se cerca de vinte unidades produtivas em funcionamento que mantinham quase todas as mulheres do concelho ativas na confeção.

    É no virar do século XX para o século XXI que se regista uma redução no volume de produção dos Tapetes de Arraiolos. Gera-se o encerramento de muitas unidades produtivas, há redução do número de bordadeiras e consequentemente estagnação da transmissão tanto em contexto familiar como oficinal. Diminui o trabalho comum e em grupo das bordadeiras em espaço oficinal, passando os trabalhos de bordado a serem realizados no recato dos lares e apenas por uma franja da população, se tivermos em consideração o enorme universo de pessoas no concelho de Arraiolos com as competências necessárias à confeção de Tapetes de Arraiolos.

    Neste contexto entre o 25 de abril de 1974 e os tempos mais recentes, é fundamental a referência ao trabalho desenvolvido pela Câmara Municipal de Arraiolos na defesa, divulgação, promoção e salvaguarda do Tapete de Arraiolos. Há desde o início do século XX e em especial desde o período do “ressurgimento” uma noção generalizada e muito enraizada entre a população e as instituições locais de que o Tapete de Arraiolos e todo o seu processo de confeção se constituem como o mais importante património da vila e concelho, mas é somente no período do poder local democrático que tem início uma série de iniciativas que visaram valorizar o Tapete de Arraiolos, com a câmara municipal a assumir um papel fundamental nesse processo.

    A defesa e valorização das condições de trabalho das bordadeiras passou a ser uma preocupação constante, realizaram-se várias exposições sobre a temática na vila de Arraiolos, em vários locais do país e no estrangeiro (Espanha, Bélgica, Luxemburgo), em 2001 foi erguido o “Monumento à Tapeteira”, em 2003 teve início o evento anual “O Tapete Está na Rua”, que atrai todos os anos a Arraiolos milhares de pessoas e no qual se desenvolvem várias atividades culturais dirigidas a vários públicos e em que o Tapete de Arraiolos tem sempre um papel principal, e em 2013 abriu ao público o Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos, projeto museológico visitado desde então por milhares de pessoas e onde acima de tudo se valoriza o Tapete de Arraiolos e se dá a conhecer a sua história, materiais, técnicas e evolução decorativa, sendo a contínua investigação das várias temáticas do Tapete de Arraiolos e a sua publicação uma das mais importantes componentes do projeto.

    Em conclusão, o Tapete de Arraiolos, com todas as dificuldades próprias e comuns à maioria das artes tradicionais portuguesas, chega aos dias de hoje bem vivo, com pessoas capazes de lhe dar continuidade no futuro e mantendo uma forte ligação à vila e concelho onde teve origem e onde permanece uma comunidade envolvida e indivíduos com as competências necessárias à sua preservação.

  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direitos coletivos de caráter consuetudinário e direitos individuaisO processo de confeção do Tapete de Arraiolos deve ser entendido como sendo indissociável do centro de produção de Arraiolos, com origens que remontam ao século XVI, que teve origem neste local e aqui se desenvolveu ao longo de diversas gerações até ao presente. Como tal, o processo de confeção do Tapete de Arraiolos deve ser considerado indissociável de direitos coletivos, de natureza consuetudinária, que identificam a produção em exclusivo com este centro geográfico e cultural e os seus agentes locais. Contudo, não obstante essa matriz coletiva, que define e caracteriza formalmente este tipo de produção, e independentemente da impossibilidade de atribuição exclusiva de determinados modelos a um determinado artesão ou artesã, devem ser igualmente reconhecidos os direitos individuais de cada produtor sobre as suas produções específicas. Artesãs e artesãos do processo de confeção do Tapete de Arraiolos.
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Rui Miguel Bartolomeu Alves Lobo
    Função: Técnico Superior de História do mapa de pessoal do Município de Arraiolos, a exercer funções de responsável técnico pelo Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos
    Data: 2019/09/05
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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