Domínio: Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais
Categoria: Atividades transformadoras
Denominação: Produção e Transformação do Linho de Várzea de Calde
Outras denominações: Ciclo do Linho de Várzea de Calde; Linho Várzea de Calde
Contexto tipológico:
A produção e transformação do linho de Várzea de Calde é uma manifestação artesanal que caracteriza a aldeia de Várzea de Calde, freguesia de Calde, Concelho de Viseu e singulariza-se pelos processos e técnicas ancestrais usadas em todas as fases do ciclo do linho.
É uma atividade que é desenvolvida durante todo o ano, envolvendo várias etapas que vão desde a sementeira à tecelagem.
Em Várzea de Calde, o ciclo do linho é desenvolvido essencialmente pela comunidade feminina, tendo o apoio da comunidade masculina em algumas das fases, mais concretamente nas atividades desenvolvidas no campo e na ribeira, ou seja, desde a sementeira à curtimenta, as fases seguintes da preparação das fibras para uso têxtil, ou seja, desde maçar até tecer são atividades exclusivamente femininas.
Atualmente, Várzea de Calde é o único lugar no distrito de Viseu onde ainda se verifica o ciclo do linho, sendo um dos poucos locais do país onde se mantém na íntegra segundo métodos tradicionais artesanais. Esta manifestação artesanal tem a particularidade de ter um rico e vasto cancioneiro ligado às diversas fases da produção e transformação do linho.
Contexto social:
Comunidade(s): Habitantes de Várzea de Calde Grupo(s): Grupo Etnográfico de Várzea de Calde; Cooperativa do linho de Várzea de Calde
Contexto territorial:
Local: Várzea de Calde País: Portugal NUTS: Portugal \ Continente \ Centro \ Dão-Lafões
Contexto temporal:
Periodicidade: O ciclo do linho envolve diversas fases, as quais se distribuem ao longo de todo o ano, podendo haver ajustes devido a alterações climáticas. Data(s): Semear:Mar/Abr-Regar e Mondar:Abr/Maio-Arrancar,Ripar e Curtir:Jun/Jul-Maçar:Jul/Ago-Tascar:Ago/Set-Sedar:Set/Out-Fiar e Ensarilhar:Out/Fev-Branquear:Mar-Dobar,Urdir e Tecer:Todo o ano.
Caracterização síntese:
A produção e transformação do linho de Várzea de Calde é uma arte tradicional, que caracteriza a aldeia de Várzea de Calde, freguesia de Calde, do concelho de Viseu. É uma atividade elaborada artesanalmente, usando técnicas ancestrais desde a sementeira à tecelagem. As fases desenvolvidas no campo e na ribeira, ou seja; preparar os terrenos/ semear, regar, mondar, arrancar, ripar e curtir, são feitas em comunidade, por homens e mulheres numa relação de entreajuda. Sendo que, as fases seguintes de preparação das fibras para utilização têxtil, como; maçar, tascar, sedar, fiar, ensarilhar, branquear, dobar, urdir e tecer, são atividades exclusivamente femininas, as quais se desenvolvem igualmente em grupo. Nas diversas fases do ciclo do linho, as quais se desenvolvem ao longo de todo o ano, foram preservadas todas as técnicas, assim como todo o saber-fazer transmitido de geração em geração, de forma oral, pela observação e mediante a prática. Sempre fiéis à tradição, a comunidade de Várzea de Calde, também soube preservar e transmitir o cancioneiro associado a esta manifestação artesanal, o qual também é amplamente divulgado através do Grupo Etnográfico de Várzea de Calde.
Caracterização desenvolvida:
A produção e transformação do linho de Várzea de Calde é uma arte tradicional, profundamente enraizada na vida sociocultural da comunidade da aldeia de Várzea de Calde, da freguesia de Calde, concelho e distrito de Viseu. É desenvolvida por homens e mulheres, habitantes da aldeia, mantendo o mesmo saber fazer de outrora, usando as técnicas ancestrais passadas de geração em geração. Esta prática ainda tem a particularidade de estar ligada a um rico cancioneiro cantado nas diversas fases do ciclo do linho, o qual também é divulgado através do Grupo Etnográfico de Várzea de Calde, constituindo um símbolo de identidade e orgulho de toda a comunidade local.
As primeiras fases do ciclo do linho, desde a preparação dos terrenos até ao curtir na ribeira de Várzea de Calde, são realizadas em grupo, com cerca de 10 pessoas, constituído por homens e mulheres, num processo de entreajuda da comunidade. Estas são fases festivas envoltas em muita alegria, com cantares associados ao linho e que culminam em convívio com merenda levada para os campos, esta é colocada sobre uma toalha de linho estendida no chão ou laje de pedra, onde além das iguarias da terra, como o presunto, chouriço, azeitonas, queijo, broa, não podem faltar as tradicionais filhós com o mel, este produzido igualmente na aldeia (Anexo II-I-Fot.9,10 e 26).
As fases seguintes, desde o maçar até ao tecer são atividades exclusivamente femininas, as quais são desenvolvidas igualmente em grupo, cantam e convivem, aproveitando para conversar e por em dia os acontecimentos da aldeia. Tanto se juntam à luz do dia, debaixo de frondosas carvalhas, como nas ruas em dias solarengos, assim como em suas casa em dias frios de inverno e aos serões, envolta de uma lareira, maridos e filhos também se juntam para fazerem companhia e conversar, outrora estes convívios também eram ponto de encontro para jovens enamorados.
O processo tradicional do ciclo do linho é constituído por diversas e diferentes fases de produção e transformação, iniciando-se pela preparação dos terrenos/sementeira, da rega, da monda, da arranca, do ripanço e curtimenta, seguidamente procede-se à secagem e preparação das fibras com vista à sua utilização têxtil, através das operações de maçagem, espadelagem e sedagem, processos que consistem essencialmente na separação das fibras lenhosas das fibras têxteis.
No que se refere às fases finais de preparação do fio para uso têxtil, a fase seguinte é caracterizada pelo tradicional processo e técnica de fiação, processo este amplamente conhecido e retratado ao longo da história, para a qual é usado a roca e o fuso, no qual é formada a maçaroca que posteriormente é transformada em meada através do “sarilho”. O branqueamento das meadas realiza-se através do processo de cozer (que também tem como função dar mais consistência ao linho), embarrelar, lavar, corar e secar. O fio das meadas é então objeto do processo de dobagem (transformação para novelos) para fins de urdidura da teia, assim como para encher a canela para usar na trama com vista à operação de tecelagem, ou seja transformação do fio de linho em tecido.
O culminar de todo o ciclo é precisamente a fase de tecelagem, realiza-se no tear, o fio do linho é então objeto de transformação em tecido, usado para criar diversas peças de vestuário e têxtil/lar.
Passamos à identificação e caracterização pormenorizada das referidas operações que integram o processo de produção e transformação do linho de Várzea de Calde e respetivos utensílios utilizados:
Sementeira do Linho
Na aldeia de Várzea, cultiva-se o linho galego; a sementeira acontece entre março/abril, conforme a situação climática o permitir, esta é realizada por homens e mulheres, em grupo de familiares e vizinhos (cerca de 10) num processo de entreajuda.
Inicia-se o dia pela fase de preparação do “linhar” (nome que se dá ao terreno onde se semeia o linho), a dimensão dos linhares varia entre 400 e 1000m2. Fertilizam-se os terrenos com matéria orgânica, dando preferência ao estrume proveniente de ovelhas, outrora o estrume era transportado em carros de vacas até aos linhares, hoje em dia recorre-se aos tratores.
Todo o grupo espalha o estrume no terreno (Fot.1) e depois é lavrado pelos homens- (Fot.2), seguidamente, efetua-se o processo de gradar o terreno, igualmente com o trator, passam várias vezes com uma grade de dentes voltados para baixo (outrora era de madeira puxada pela junta de vacas, atualmente é de ferro puxada pelo trator), até desfazer os torrões de terra. Depois completando a fertilização natural do terreno, espalham cinza por todo o linhar – (Fot.3) e passam novamente a grade, agora com os dentes voltados para cima para alisar o terreno- (Fot.4), completando assim o processo de preparação do linhar.
Chega então o momento de lançamento das sementes à terra, este processo é geralmente feito pelas mulheres, cada uma pega num cesto de linhaça (sementes do linho) enchem a mão e lançam as sementes em movimentos circulares ao longo de todo o linhar-(Fot.7), dado a semente não ser facilmente visível na terra, vão marcando com uma haste de árvore a terra semeada, para não correrem o risco de deitar semente na terra já semeada ou ficar terra sem semente. Os homens seguem atrás a passar levemente o ancinho- (Fot.8) para mexer um pouco a terra já com as sementes e a alisar para que a rega chegue a todo o linhar facilmente. Por fim, todos juntos, fazem o rego mestre e regos secundários, para posteriormente facilitar a rega sem pisar o linho, ao que designam por “belgar” a terra.
Regar e Mondar
Ao linho não pode faltar água, a rega também tem as suas especificidades, esta tarefa tanto é realizada por homens como por mulheres. Entre dois/três dias após a sementeira o linho começa a germinar. A primeira rega acontece quando a planta do linho atinge cerca de meio palmo de altura- (Fot.11), sensivelmente por volta do décimo dia após a sementeira. Para não pisarem o linho, a rega efetua-se a partir do rego mestre e dos regos secundários, a água vai correndo “encharcando” todo o linhar, as próximas regas acontecem sensivelmente de sete em sete dias durante cerca de dois meses.
Geralmente antes da terceira rega, (sensivelmente na terceira semana após a sementeira), procede-se cuidadosamente à monda (arranca das ervas daninhas) - (Fot.12). Cerca de um mês e meio depois o linho atinge o fim do seu crescimento e floresce- (Fot.13), mantendo a flor por cerca de dez dias. Depois desse tempo a flor cai e fica a baganha, (cápsula que contem a semente), depois de alguns dias a baganha começa a ficar com aspeto amarelo- (Fot.14), nessa altura deixam de regar e passado cerca de 4-5 dias toda a planta fica seca pronta para ser arrancada.
Arrancar
Após toda a planta do linho estar seca, o que se verifica entre junho/julho, cerca de dois meses e meio após a sementeira, a comunidade combina entre si o dia da arranca de cada linhar para que possam ajudar uns aos outros, num conceito de entreajuda. Sempre em grupo de mulheres e homens (cerca de 10), chegam ao linhar bem cedo pela manhã, o dia é longo, já que no mesmo dia procedem também ao processo de ripar e curtir o linho.
Geralmente são as mulheres que cuidadosamente vão arrancando as plantas pela raiz, fazendo mãos cheias, que vão juntando em montes no chão-(Fot.16) , aos homens cabe mais a tarefa de fazer os molhos (atam com cordão ou palha de centeio-Fot.18) para de seguida serem transportados à cabeça (mulheres) ou ao ombro (homens)-(Fot.19) para a sombra de uma carvalha para o processo seguinte de “ripar”.
Ripar
É através do processo de ripar que se separa a baganha do caule. Em Várzea de Calde é utilizado o ripanço- (Fot.144) ou seja, uma prancha de madeira com dentes de metal nas duas extremidades, a qual é cravada num carro de vacas- (Fot.20). Limpam o local e colocam mantas de farrapos (onde cairá a baganha), de seguida, homens e mulheres, pegam em mão cheias de linho pelas raízes e vão passando com força pelos dentes do ripanço para a baganha se soltar- (Fot.21). Colocam o linho já ripado (sem baganha) em molhos e atam com palha de centeio. Findo este processo, os molhos, também conhecidos por “aguadouros”, são transportados em trator (antigamente em carro de vacas) para o rio Vouga ou ribeira de Várzea para curtir- (Fot.27).
Relativamente às baganhas, são seguidamente levadas para uma eira/laje de pedra, onde são juntas num monte durante um dia para aquecerem e ficarem amarelas; depois são espalhadas a secar durante 4-5 dias, até abrirem, estas são erguidas ao vento (processo que separa a baganha da semente) depois as sementes (linhaça) são ainda crivadas para limpar completamente de restos da baganha. A linhaça é guardada em sacos de linho grosso/estopa, para se conservar até à próxima sementeira. A linhaça também é tradicionalmente usada no fabrico de pão caseiro, papas de linhaça, e até como mezinhas caseiras para curar feridas e outras maleitas, atualmente a linhaça já é usada em diversas receitas de culinária.
Curtir
Como já referido, os molhos são transportados para o rio ou ribeira, no mesmo dia e pelo mesmo grupo (homens e mulheres) da comunidade que procede à arranca e ripagem.
Em Várzea o processo de “curtir” o linho, também é conhecido por “empoçar”, ou seja, consiste em mergulhar na água um a um os molhos de linho, designados por “aguadouros” - (Fot.29), onde fica submerso, tendo o cuidado de escolher um sítio com pouca corrente (quando havia muita quantidade de linho faziam uma grande poça junto às margens). Para salvaguardar que a corrente leve o linho e para que este não suba à superfície colocam pedras em cima dos aguadouros- (Fot.30).
Após um período de oito a dez dias é retirado para as margens; (Fot.31) desmancham os aguadouros e estendem em campo de ervas secas junto às margens, para corar ao sol por um ou dois dias. Nesta fase retiram uma pequena amostra seca e esfregam com as mãos, é desta forma que fazem o teste para verificar como está a curtimenta, este é um conhecimento que diz respeito às mulheres, avaliam quantos dias mais necessita ficar na água e voltam a fazer os aguadouros e colocar na água a curtir. Nos dias seguintes, continuam a retirar amostras e a fazer o teste como referido (Em Várzea não é usado o teste de deitar a amostra à água e verificar se fica à superfície ou se afunda). O tempo exato em que se deve retirar o linho da água é determinado pelo conhecimento, o saber-fazer da artesã, mas geralmente, o processo não ultrapassa os doze dias.
Passado o período de curtir o linho, os aguadouros são desmanchados, e o linho é bem agitado/lavado para retirar o lodo. É retirado da água e colocado novamente no campo de ervas secas junto ás margens, fazendo um monte/moreia-(Fot.33) para este escorrer durante 4-5 horas. Seguidamente é espalhado a secar- (Fot.34) durante 4-5 dias, durante este processo vão alternando o lado exposto ao sol, para que seque uniformemente.
Maçar
Esta fase do “maçar” e as fases seguintes até à tecelagem, passam a ser executadas exclusivamente pelas mulheres.
O maçar acontece em julho/agosto quando o linho já está seco. É efetuado à sombra de uma carvalha frondosa, em cima de maçadoiros (muro de pedra com cerca de um metro de altura finalizado com pedras largas de granito-Fot.35). Embora a maçagem do linho, por meio de engenho, não exigisse tanto esforço esse meio nunca foi usado em Várzea.
Esta tarefa consiste em quebrar e separar as fibras lenhosas das fibrosas é feita animadamente e igualmente em grupo cantando as canções do cancioneiro associado ao linho. Cada mulher tem a sua “maça” (rolo de madeira com uma das extremidades mais estreita para segurar-Fot.134). Seguram com uma mão a “maçadoira” (termo usado para uma mão-cheia de linho seco) e com a maça batem ritmadamente o linho quebrando a parte lenhosa- (Fot.36). Depois de maçar bem o linho, dividem cada maçadoira em “estrigas” (mão cheia mais pequena) que são esfregadas e torcidas para partir e soltar ainda mais as fibras.
Tascar
Esta fase acontece entre agosto/setembro, consiste em limpar e amaciar o linho, o que se solta neste processo designam por “arestas”. É feito numa parte exterior da habitação, também têm por hábito juntar-se nesta tarefa. A artesã com uma mão segura numa estriga de linho, coloca-a na beira do cortiço (casca de sobreiro enrolada em forma de colmeia-Fot.146), de modo que fique exposta para o lado de fora, mantendo-a segura nessa posição. A outra mão segura a “espadana” (forma de cutelo em madeira-Fot.147) e aplica pancadas ritmadas e incisivas na estriga- (Fot.38), de vez em quando roda e inverte a posição da estriga segurando-a pelo lado já tascado para que o processo alcance todo o linho. O processo envolve duas fases, a primeira designada “abaixar”, ou seja, tirar as arestas maiores, a segunda designada “limpar”, abrindo bem a estriga para permitir soltar o resto das arestas, ficando o linho macio. De seguida, juntam em grupos de 25 estrigas, ao que designam um “adeito”. Durante o processo de tascar são aproveitados os “chascos”, fibras mais grossas que se soltam, e que depois de fiados servem para a produção de tecidos mais grosseiros usados para fazer sacos que servem para guardar sementes/cereais, antigamente também o usavam para fazer os “enxergões”.
Sedar
A sedagem ou assedagem é um processo desenvolvido durante os meses de setembro/outubro, geralmente é feito dentro da habitação; não obstante sempre que possível as artesãs juntam-se aproveitando para conviver, ao mesmo tempo que trabalham conversam e cantam. A artesã segura na estriga de linho e passa-a suavemente várias vezes pelo sedeiro- (Fot.41). O sedeiro é uma tábua de madeira retangular com cerca de 70-80 cm de comprimento e 20 cm de largura- (Fot.148). Em Várzea o sedeiro tem um orifício aberto numa das extremidades onde a artesã coloca o pé para ajudar a segura-lo na vertical, encostado a si própria, a outra extremidade é revestida por uma chapa de metal com filas de “dentes” (pregos afiados), este método de “pentear” o linho separa as fibras longas e finas (linho de melhor qualidade) das fibras mais curtas e grossas (estopa e estopinha), as quais se soltam da estriga, estas são guardadas e fiadas separadamente. A estriga com o linho mais puro e fino que permanece na mão da artesã é dobrada a meio e torcida para guardar sem emaranhar umas nas outras (Fot.42).
Fiar
Este processo desenvolve-se essencialmente durante os meses de outubro a fevereiro, as mulheres de Várzea juntam-se aos serões numa casa com maior lareira, fiam enquanto cantam e conversam. Nos restantes meses do ano também aproveitam qualquer bocadinho para fiar. Em tempos que ainda são recordados pelas artesãs, também era usual fiarem enquanto guardavam o gado, nos percursos para feiras e para os campos e até mesmo enquanto amamentavam. O fiar consiste na transformação das fibras do linho num fio o mais fino possível, fase que requer muita habilidade. Para o efeito, é usado a roca (feita de cana-Fot.149), e o fuso (feito de madeira-150).
No processo de fiação as artesãs colocam na roca a “rocada” (quantidade de fibras desejada) e enrolam com uma tira de couro- (Fot.44), prendendo esta com uma ponteira de cana. Inserem o cabo da roca no cós (cinta) da saia e vão puxando as fibras de linho- (Fot.47), de vez em quando o fio é passado pela boca, para o humedecer, ou para ajudar a distendê-lo com os dentes para facilitar e aperfeiçoar o processo e desta forma vão torcendo e enrolando o fio no fuso formando maçarocas.
Ensarilhar
O processo de ensarilhar desenvolve-se essencialmente entre os meses de outubro a fevereiro, aproveitando qualquer hora do dia ou ao serão, tanto o fazem juntas como individualmente, com o objetivo de chegarem a março com o máximo de linho em meadas, para a etapa de branqueamento.
O ensarilhar consiste na transformação das maçarocas em meadas, para tal, utilizam o sarilho (instrumento de madeira de quatro braços em cruz que rodam verticalmente -Fot.151), o qual tem um encaixe onde fixam o fuso com a maçaroca, (por vezes colocam o fuso no colo segurando-o com a mão). O fio da maçaroca é atado a um braço do sarilho, a artesã vai rodando-o lentamente e deste modo forma a meada- (Fot.49-50). De uma forma geral para formar uma meada são necessárias dez maçarocas, as quais vão sendo atadas umas às outras para dar continuidade ao fio.
Para não se perder o fio da meada quando retirada do sarilho, atam-se os fios finais da meada, ao qual se dá o nome de “costalinho” e com o “costal” ata-se com voltas largas envolvendo toda a meada. O costal é composto por uma quantidade considerável de fios de linho, para suportar o peso da meada quando molhada durante todo o processo de branqueamento.
Emborrar/Cozer
O processo de cozer as meadas dá início ao processo de branqueamento assim como também concede maior consistência ao linho. Geralmente acontece no mês de março com a chegada da primavera e dias solarengos, uma vez que seguidamente é necessário lavar as meadas, corar e secar.
As artesãs juntam-se e escolhem um lugar ao ar livre junto a uma pia de pedra (vários espaços junto às casas têm pias). Fazem uma grande fogueira, colocam duas ou três enormes panelas de ferro (conforme a quantidade de linho) onde colocam água para ferver.
De seguida na pia de pedra começam por misturar água fria com cinza onde mergulham as meadas- (Fot.52), usam o termo “emborrar as meadas”, depois retiram e colocam nas panelas de ferro com a água já a ferver- (Fot.55), juntam mais cinza previamente peneirada- (Fot.54), raspas de sabão e ervas, como o sabugueiro ou o trevo. As meadas ficam a cozer nessa calda, em fogo lento até ao dia seguinte.
Em Várzea de Calde também se verifica outro método para cozer as meadas, usando o forno de lenha da aldeia (forno tradicional de cozer o pão). Aquecem bem o forno e depois retiram as brasas e acamam as meadas no forno (bem ensopadas em calda de cinza), e aí permanecem durante o dia ou noite, fecham a porta do forno e selam muito bem para não permitir nenhuma entrada de ar, outrora com os dejetos de vaca sendo que em tempos mais recentes passaram a usar o barro. Embora hoje em dia prevaleça o método de cozer as meadas na panela de ferro.
Desemborrar, lavar e secar
No dia seguinte ao cozer as meadas, as artesãs, (sempre em grupo num conceito de entreajuda) juntam-se novamente para continuar o processo de branqueamento.
As meadas são retiradas das panelas e torcidas- (Fot.58). Colocam as meadas em canastras (cestos) e geralmente a pé, duas a duas seguram nas alças da canastra e transportam até aos lavadoiros da ribeira de Várzea ou até às poldras no rio Vouga. As pedras das poldras são ideais para bater e esfregar as meadas- (Fot.60), assim como a corrente entre as pedras é a adequada para lavar as mesmas.
Depois das meadas bem lavadas e torcidas são colocadas novamente nas canastras- (Fot.62) e levadas para um local com erva/relva. Verificam se o costal está inteiro e as meadas não estão emaranhadas- (Fot.63), estas então são abertas o mais possível e colocadas estendidas na relva a secar- (Fot.65), (geralmente 1 dia) assim que estejam secas seguem para a fase de embarrelar.
Embarrelar/lavar/corar/secar
Este processo é feito logo de seguida à fase anterior, continuando assim o processo de branqueamento, e igualmente em comunidade pelas mulheres da aldeia num local fora da habitação.
É efetuado no “cortiço da barrela” cilindro de cortiça (maior que o cortiço de tascar) com cerca de um metro de altura-(Fot.152). O cortiço é normalmente colocado numa base de pedra ou diretamente no chão de terra, colocam no fundo do cortiço vides ou arbustos para que a água escorra fácilmente. Depois as meadas são acamadas umas sobre as outras- (Fot.66) e cobertas com um barreleiro (pano velho de estopa); em cima deste deitam uma mistura de água quente e cinza- (Fot.67), esta vai escorrendo pelas meadas, e vão repetindo o processo durante o serão. No dia seguinte são retiradas e lavadas com sabão azul, no lavadoiro da aldeia- (Fot.68) e colocadas ao sol a corar- (Fot.70), vão regularmente molhando com regador para não secarem completamente. Estes processos, desde a barrela no cortiço, lavar e corar, são repetidos tantos dias quantos os necessários até as meadas de linho estarem no branco desejado (geralmente dois a três dias), só então as lavam bem com o sabão azul e deixam secar completamente na relva (vão virando as meadas de vez em quando), conforme o clima, geralmente, demoram dois a três dias a secar.
Dobar
Depois das meadas estarem secas, estão prontas para serem dobadas, este processo desenvolve-se durante todo o ano, as artesãs podem fazê-lo sozinhas, mas sempre que podem, juntam-se nas ruas, ou no inverno aos serões junto à lareira- (Fot.73), simplesmente pelo convívio do qual não abdicam sempre que têm possibilidade.
Colocam as meadas na dobadoira, (instrumento de madeira de quatro braços em cruz que rodam horizontalmente-Fot.153), onde começam por enrolar o fio numa bugalha de carvalha para que o novelo fique redondo e apertado; na fase seguinte “urdir” a bugalha também tem como função alertar a artesã quando o novelo termina, através do barulho que produz no “urdidor” (termo usado em Várzea para a caixa de madeira dividida em 12 compartimentos iguais onde colocam os novelos-Fot.154).
Urdir a teia
A urdidura da teia é efetuada durante todo o ano conforme a necessidade das peças a tecer. Dada a complexidade deste processo, algumas artesãs têm mais aptidão para o fazer, e estas, em contexto de entreajuda, são solicitadas para ajudarem a fazerem as teias de outras com menos experiência.
Em Várzea de Calde é usada a urdideira fixa na parede- (Fot.76), que é constituída por duas tábuas na vertical com uma distância uma da outra de cerca de dois a três metros, e uma tábua mais pequena na horizontal na parte superior direita; tanto das tábuas verticais como da tábua horizontal saem pequenos tornos de madeira com cerca de 10cm de distância entre eles.
No urdidor são colocados 12 novelos - (Fot.75), passam a ponta do fio de cada novelo por cada orifício da “espadilha” (tábua com dez orifícios-Fot.155) juntam e atam as doze pontas, depois separam em duas series de 6 fios cada e prendem/cruzam nos tornos superiores do lado direito da urdideira, e com a espadilha a artesã vai percorrendo a urdideira- (Fot.77), prendendo e cruzando os fios nos tornos das tábuas verticais de um lado para o outro- (Fot.76), fazendo um determinado número de “ramos” (voltas/caminhos), conforme o comprimento da teia desejado (cada ramo dá para tecer sensivelmente quatro metros de tecido).
Depois da teia formada, é retirada de forma encadeada, (Fot.78) para não emaranhar e de seguida “montar” no tear.
Nota: Dado a escassa produção do linho, por vezes usam fio de algodão para a elaboração da urdidura da teia.
Montar a teia no tear
O tear usado em Várzea de Calde é um tear tradicional horizontal de duas ou quatro apeanhas (pedais).
A este processo de montagem da teia/linhol no tear dá-se o nome de “empeirar”; executado por duas ou três mulheres em conjunto - (Fot.81) logo após urdir a teia. Este processo requer força, paciência e habilidade das artesãs, passam alternadamente um dos fios de cada serie no respetivo liço, cada fio contorna a “casinha” do liço”- (Fot.83) e depois deste processo começam a meter os fios entre os “dentes do pente”-(Fot.84). Cada tecedeira possui vários tipos de pentes adequando-os ao tipo de trabalho que pretende executar. Só posteriormente aos fios estarem todos metidos no pente é que este se encaixa nas queixas. Em seguida atam os fios que saem do pente no compostoiro do órgão do tear, é nele que se se enrola a teia. Os cordéis estendem-se dos liços até ao chão onde são ligados às apeanhas.
Em Várzea, as próprias artesãs fazem os seus liços com fio norte. O utensilio usado designa-se de “liceiro”(Fot.82), feito em madeira na forma de banco comprido, com duas tabuas nas extremidades onde é encaixada uma tábua/régua larga, em torno da qual fazem os liços.
Encher a canela
O utensilio usado para encher a canela é designado por “caneleiro” (Fot.156) e consiste num eixo de ferro com uma roda, na ponta do qual é colocada a canela (um pequeno tubo de cana onde se enrola o fio-Fot.157); a artesã faz rodar a roda do caneleiro com uma mão e com a outra segura o fio de linho e enche a “canela” (Fot.85), para depois ser colocada na “lançadeira” (peça de madeira com uma cavidade onde se coloca a canela, esta tem orifícios nas laterais por onde passa o fio-Fot.158). Esta atividade é executada em qualquer altura do ano, sempre que necessitem de canelas cheias para a tecelagem.
Tecer o linho
O culminar de todo o ciclo do linho acontece no tear, tecer o linho é uma atividade desenvolvida durante todo o ano pelas artesãs da aldeia, tanto tecem na cooperativa do linho como tecem nas suas casas, pois cada artesã tem o seu próprio tear em casa.
Como já foi referido, em Várzea de Calde é usado o tear horizontal (Fot.159), com duas ou quatro apeanhas, composto por vários apetrechos e acessórios, dos quais os mais relevantes sãos os órgãos, liços, pente, queixas e apeanhas. O tecer consiste no entrelaçamento dos fios de uma camada da teia/linhol com o fio da trama o qual é deixado a cada passagem da lançadeira, esta é lançada de um lado para o outro entre os fios da teia, e com os pés nas apeanhas- (pedais) fazem levantar alternadamente cada serie de fios batendo vigorosamente com o pente. É neste processo que se dá a formação do tecido- (Fot.88). Tecer um metro de linho liso, com cerca de 80cm de largura, demora cerca de 2 horas, caso este seja trabalhado com “puxadinhos” seguindo um desenho (Fot.91), o tempo duplica, dependendo também da complexidade do desenho. Para os trabalhos referidos são usadas duas apeanhas, para a elaboração de bainhas abertas e outros feitios mais complexas é necessário o uso das quatro apeanhas e o tempo também pode duplicar conforme a dificuldade do trabalho.
Peças e motivos mais relevantes
Além do tecido de linho, que depois é usado para vários fins, como; confecionar diversas peças de vestuário, peças de têxtil/lar e merchandising, também são feitos diretamente no tear, durante o ato de tecer, colchas, toalhas de mesa, toalhas de mãos, toalhas de chá, toalhas de batismo, toalhas de altar e diversos panos decorativos. Os motivos são predominantemente geométricos, letras, flores, folhas, produzidos através de fios puxados. Seguindo desenho previamente feito em papel quadriculado, a artesã, com agulha tradicional de fazer renda vai puxando fios, formando relevo, ao que designam por “puxadinhos”.
Os desenhos não são exclusivos de uma ou outra tecedeira, vão passando de geração em geração e são partilhados por todas as artesãs, emprestam ou copiam para novo papel quadriculado, por vezes fazem pequenas alterações ou mesmo novas composições, mantendo a mesma gramática decorativa. Algumas das artesãs mais antigas ainda mantêm a tradição de criar o motivo simplesmente no momento de tecer, ao seu gosto, sem necessidade de um desenho prévio.
Gostaríamos também de referir que alem das peças de linho, também tecem mantas/tapetes com “firmas” (aproveitamento de roupas que já não usam cortadas às tiras que unem e enrolam formando novelos para o ato de tecer) estas mantas são as que usam para a baganha cair no ato da ripagem, outrora também eram usadas como cobertas de cama. Atualmente já é possível encontrar no comércio tiras de algodão (trapilho) de diversas cores já prontas a tecer.
Comercialização e divulgação do linho
Sensivelmente até aos finais da década de 70 do Séc.XX, quase sempre ao domingo, as artesãs percorriam distâncias a pé por várias localidades para vender e receber encomendas. Por vezes, acontecia que não lhes pagavam em dinheiro, mas sim em bens provenientes da agricultura, como por exemplo, feijão ou milho, o que não lhes era de muito agrado, pois iam carregadas por caminhos e montes com as peças de linho e vinham igualmente carregadas com os gêneros agrícolas.
Hoje em dia, o processo de venda alterou, as artesãs já não se deslocam à procura de clientes, estes vão diretamente à casa das artesãs. Sendo que a maior parte das encomendas/vendas são feitas pela Cooperativa do Linho.
A Cooperativa do Linho de Várzea de Calde foi criada em 2006, instalando-se provisoriamente num espaço do Pavilhão da Associação Cultural e Recreativa de Várzea de Calde, posteriormente, em 2009 foi inserida num espaço cedido pelo Município de Viseu, no mesmo edifício do Museu do Linho de Várzea de Calde do qual falaremos posteriormente.
Com uma natureza multissetorial, que vai desde a sementeira à tecelagem e comercialização do produto final, conta com cerca de 25 cooperantes, todas da comunidade de Várzea. A Cooperativa solicita aos habitantes da aldeia a título gratuito terrenos adequados (de preferência junto ao rio/ribeira) para a sementeira do linho, frequentemente estes terrenos são pertença das próprias cooperantes, juntas fazem todo o ciclo do linho. Relativamente à tecelagem, dado terem somente dois teares na cooperativa, vão alternando a permanência no local conforme a disponibilidade de cada uma, quando há mais encomendas levam o fio de linho que necessitam e tecem nos teares que têm nas suas casas. Os produtos finais são comercializados pela cooperativa no próprio espaço (Fot.99) e em feiras de artesanato.
A Cooperativa também desenvolve um trabalho relevante na transmissão do saber-fazer do processo produção e transformação do linho. Promove formações de tecelagem, assim como cursos/workshops de costura e bordados para desenvolverem no tecido de linho, sensivelmente anualmente conta com a parceria do CEARTE.
Devemos realçar que a criação desta Cooperativa ficou a dever-se em grande parte a um relevante curso que decorreu durante o ano de 2004, promovido pela ADRL- Associação Desenvolvimento Rural de Lafões. Num total de 566h repartidas entre aulas teóricas e aulas práticas, e que contou com o apoio da Associação Cultural e Recreativa de Várzea de Calde a qual cedeu as instalações, os terrenos foram cedidos por habitantes da aldeia. Este curso abrangeu todo o ciclo do linho desde a sementeira à tecelagem foi uma importante fonte de transmissão de todo o saber-fazer. Participaram cerca de 15 formandas, maior parte delas são hoje em dia cooperantes da referida Cooperativa e também elementos do Grupo Etnográfico.
Na década de sessenta do século passado, por iniciativa do então Pároco da Freguesia, Padre João juntamente com as gentes da aldeia procederam à formação do “Grupo Etnográfico de Várzea de Calde” então com a denominação “Grupo Etnográfico de Trajes e Cantares de Várzea”, com o intuito didático-pedagógico de mostrar os trajares, os cantares, os utensílios e técnicas do cultivo do linho das gentes de Várzea de Calde. O grupo sempre foi formado por elementos da comunidade, as mesmas gentes que trabalham todo o ciclo do linho. Os habitantes da aldeia salientam que a atividade do referido grupo até aos dias de hoje é sem dúvida um garante da preservação e divulgação desta arte, assim como, para a continuidade desta atividade na comunidade. Todos os anos o grupo semeia um campo de linho para ter produto para as demonstrações ao vivo durante as suas atuações.
É composto por cerca de 15 elementos, 13 mulheres e 2 homens, com idades compreendidas entre os 30 e 85 anos, sendo que a maioria ascende os 70 anos, todos habitantes da aldeia e praticantes da atividade do linho, com o conhecimento de todo o saber-fazer.
O Museu do Linho de Várzea de Calde, Inserido na Rede Municipal de Museus de Viseu, foi inaugurado em setembro de 2009, então com a identificação de Casa de Lavoura e Oficina do Linho, e é resultado de uma respeitável recuperação de uma antiga Casa de Lavoura, característica da região. O Museu é um forte vetor de divulgação do linho, tem por missão principal contribuir para a salvaguarda e preservação da tradição do linho, promovendo atividades de dinamização cultural, numa perspetiva antropológica, educativa e turística.
O Museu mantém uma relação de bastante proximidade com a comunidade, especialmente com as artesãs do linho envolvendo-as sempre que possível nas suas atividades. Inclusive quando há visitas programadas, de destacar a comunidade escolar, convidam as artesãs a desenvolver algumas das fases possíveis ao vivo, como; maçar, tascar, sedar, fiar, ensarilhar, dobar e tecer, ao que elas aderem com muito agrado e de forma gratuita, demonstrando e explicando todo o processo com enorme orgulho e amor à arte.
Devemos reiterar que as artesãs da aldeia que trabalham na produção e transformação do linho, também fazem parte da Cooperativa do Linho e do Grupo Etnográfico, ou seja, o linho é parte integrante da vida sociocultural da comunidade é o que mantem viva esta aldeia do interior apelidada de “aldeia milagre” precisamente por ainda manter viva esta tradição do ciclo do linho na integra associado a um rico e vasto cancioneiro.
A produção e transformação do linho, desde a sementeira à tecelagem constitui uma prática profundamente enraizada na cultura da comunidade de Várzea de Calde, ligado a um rico cancioneiro, constituindo um símbolo de identidade e orgulho de toda a comunidade local.
Manifestações associadas:
- Nas festas religiosas, de São Francisco-Padroeiro da aldeia, que se realiza a 4 de outubro, e da Nª Srª de Fátima a 15 de agosto, era muito usual os habitantes colocarem nas janelas e varandas das suas casas por onde passava a procissão, colchas e toalhas de linho, atualmente, já mais raramente se verifica essa prática.
- O rico cancioneiro do Grupo Etnográfico de Várzea de Calde reflete as vivências, os dizeres/vocabulário que envolve todo o ciclo do linho de Várzea.
- Iniciativa do Museu do Linho de Várzea de Calde em parceria com a Junta de Freguesia, em 12 de outubro de 2014 realizou-se a primeira Feira do Linho e Produtos Locais na aldeia. A 18 de maio 2019 foi retomada a iniciativa com o objetivo de passar a realizar-se anualmente, devido à situação Covid 19, a mesma foi suspensa até à presente data. Esta é uma manifestação que envolve toda a comunidade (Fot.163) em que o maior destaque é o linho, além da venda, são demonstradas ao vivo fases relevantes do ciclo do linho, como; ripar, maçar, tascar, sedar, fiar, ensarilhar, dobar e tecer, contando sempre com a atuação do Grupo Etnográfico de Várzea de Calde (Fot.164).
- No relevante Desfile das Cavalhadas de Vildemoinhos, com tradição ininterrupta desde 1652 (com exceção em 2020/21 dado a situação pandémica) que se realiza anualmente a 24 de junho pelas ruas de Viseu, o Grupo Etnográfico de Várzea de Calde desde o início da sua atividade-1961, participa no mesmo, demonstrando algumas das fases do linho acabadas de referir no paragrafo anterior (Fot.131 a 138), suscitando enorme curiosidade e deleite para as milhares de pessoas que assistem ao desfile.
Contexto transmissão:
Estado de transmissão activo Descrição:
A produção e transformação do linho está ativa na aldeia de Várzea de Calde, cerca de 35 artesãs com idades compreendidas entre 30 e 85 anos, são detentoras de todo o saber-fazer e mantêm viva a tradição. Estas vão insistindo na pratica da arte do ciclo do linho, integrando a cooperativa e o grupo etnográfico, não se registando nenhuma artesã que faça desta arte profissão a tempo inteiro.
Esta arte milenar permanece viva em Várzea de Calde, graças ao amor, à dedicação a esta arte da comunidade, especialmente a feminina, que persiste em transmitir e não deixar morrer esta manifestação artesanal tão relevante nas suas vivências diárias, a qual perpetua as suas memórias e faz parte integrante da identidade da aldeia.
Data: 2021/12/03 Modo de transmissão oral Idioma(s): Português Agente(s) de transmissão: Os agentes de transmissão são as artesãs da comunidade detentoras de todo o saber-fazer do ciclo do linho.
Origem / Historial:
Não se conhece a data, certamente remotíssima em que se começou a produção e transformação do linho. No Egipto foram encontrados fragmentos de tecidos de linho e fusos em jazidas do Neolítico, datadas de 5.000 a.C., pela perfeição do tecido, sugere que existiu um longo desenvolvimento anterior.
Até às primeiras décadas do Séc. XX era comum o cultivo do linho em praticamente todas as aldeias beirãs à semelhança do resto do País. O cultivo e transformação do linho respondia às necessidades ancestrais de abrigo, proteção e conforto do corpo (roupas de vestir ou de cama).
Ocorria no contexto de uma economia de auto-subsistência, tanto para uso no seio familiar como para troca por outros bens e serviços.
Relativamente a Viseu, são vários os documentos que atestam a relevância do linho neste distrito, os quais, referem a venda do linho em feiras, e ainda, como pagamento de vendas e aforamentos de propriedades.
Encontramos referências fiscais ao linho, quer em panos quer em cabelo fiado ou por fiar expressa no foral Manuelino de 1513 concedido à cidade de Viseu.
Ainda acerca do linho no distrito de Viseu, escreveu Ruy Fernandes (1532) citado por Pinho Leal (1890).
Item outro sy há por soma no dito compasso, de linho, a saber: pano de linho, que se faz nestas duas legoas, de dizimo (só de dizimo! Dezoito mil varas, de maneira, que se colhem no dito compasso, e se fiam cento e oitenta mil varas,…entre o qual he pano de linho, e estopa e trez(?) , e haa estopa que se vende a 12, 14, 15 réis até 20, e o pano de linho de 15 até cento, e cento e vinte a vara, e vende-se este pano a mercadores, e vay pera castella muita soma, e pera lixboa, e pera alemtejo, e pera o algarve, e pera as ilhas, e outro se gasta na terra, e fitas em peças. (…) na dita cidade he cercohito haverá duas mil tecedeiras de panno de linho, e de estopa,….
Entre 1630 a 1636 o Dr. Manoel Botelho, falando da cidade de Viseu, escreveu o seguinte; “De panos, especial de linho, concorrem a ella tantos ao mercado, que se faz todas as 1.as e 3.as feiras dos mezes, que provê muita parte de Castella e do Alentejo, para onde o levão mercadores, que a ella vem só a isso”.
Em 1872 o Administrador do concelho de Viseu, respondendo a um ofício informa, “que o linho é cultivado em quasi todas as povoações deste concelho, sendo essa cultiva ainda bastante, pois a produção é, pouco mais ou menos de quinhentas arrobas”.
Ainda em 1940 no apuramento do inquérito sobre a cultura do linho em Portugal, Viseu registava 1001 teares, cultivando-se em 150 freguesias.
Também Alexandre Alves (1978) faz referência a documentos de 1114, 1123, que pertenceram ao Cartório do Cabido de Viseu, referentes a vendas e aforamento de propriedades em Viseu, pagáveis em módios e bragais (panos de linho).
Após o exposto, podemos confirmar a relevância da produção e comércio do linho no distrito de Viseu ao longo dos séculos.
Como se confirma pelas diversas pesquisas efetuadas, a cultura do linho e produção artesanal no país a partir de meados do séc. XX deixou de ser significativa, digamos que quase inexistente, devendo-se em parte à industrialização e à utilização do fio de algodão.
Em alguns antigos centros, outrora de grande relevo, foram criadas associações que só ocasionalmente fazem alguns dos processos da produção e transformação do linho para demonstração da manifestação tradicional.
No distrito de Viseu o único lugar que persistiu até aos dias de hoje com a produção e transformação do linho na íntegra, desde, a sementeira à tecelagem e preservando o cancioneiro associado às diversas fases do ciclo é a aldeia de Várzea de Calde, Freguesia de Calde, concelho de Viseu.
Praticamente em todas as aldeias do concelho de Viseu se praticava o ciclo do linho. Mas a aldeia de Várzea de Calde, sempre se distinguiu pela grande quantidade de fiandeiras e tecedeiras, que se destacavam pela perfeição com que fiavam e teciam. Das aldeias circundantes era comum levarem a Várzea de Calde linho para fiar e tecer, serviço que pagavam em troca de outros serviços ou em bens alimentares.
A aquisição do tear representava um elevado custo, sabendo-se das dificuldades económicas que existiam, faz-nos deduzir que o facto de existir grande quantidade de teares em Várzea de
Calde e não em outras aldeias do concelho que também tinham produção do linho (mas não teares/tecedeiras) pode dever-se à existência de um grande número de carpinteiros na aldeia,
conforme testemunhos locais, faziam e restauravam os teares, para as esposas, filhas e familiares sem grandes custos, assim como faziam todos os utensílios associados.
Provavelmente este facto justifique a persistência e continuidade ao longo dos tempos desta arte em Várzea de Calde, aliado ao imensurável amor da gente desta aldeia relativamente ao ciclo do linho, o qual, sem dúvida, faz parte integrante das suas vivências diárias e da sua identidade.
Várzea de Calde, mantem desde tempos imemoriais uma profunda ligação ao cultivo, tratamento e tecelagem do linho e é comum ouvir-se dizer na aldeia “aqui em Várzea sempre existiram teares, casa sim, casa sim”. A aldeia tem as condições ideais para o desenvolvimento da cultura do linho, o que se fundamenta pela qualidade dos terrenos e proximidade do rio Vouga e da ribeira de Várzea, proporcionando terrenos regadios, essenciais para este tipo de cultivo.
Várzea de Calde mantém o ciclo integral do cultivo e da transformação do linho segundo métodos tradicionais artesanais, não existindo memória de alguma vez ter existido interrupção. É uma atividade que se desenvolve num contexto de entreajuda, essencialmente da comunidade feminina, só pontualmente, mas sempre sob a orientação das mulheres os homens ajudam nas fases realizadas e relacionadas com o campo. Nestas tarefas sempre existiu o convívio e a entreajuda, são atividades envolta em muita alegria, sempre com cantares associados, que culminam com as merendas tradicionais com as iguarias da região como; presunto, chouriço, queijo, broa, azeitonas, não podendo de forma alguma faltar as filhós com mel, também ele produzido na aldeia.
Segundo conversas com as artesãs mais idosas, era usual fazerem o seu próprio enxoval, assim como cedo começavam a fazer o das suas filhas, predominando os lençóis e toalhas.
Também de linho eram os cueiros dos meninos, as camisas de homem, as de trabalho e as domingueiras, as camisas de intimidade de mulher com aplicações de renda e também as domingueiras, as toalhas de usar no dia a dia, os guardanapos de cozinha, de linho também eram os alforges, as taleigas que iam e vinham do moinho e até os típicos “enxergões” que eram cheios com palhas de diversos cereais.
Também relevante na aldeia como ato simbólico, e que ainda perdura nas memórias das artesãs, era o facto de quando estavam doentes e chamavam o padre a casa para dar a Santa Unção, colocavam um crucifixo ao lado da cama coberto com uma toalhinha de linho, a qual tinham sempre reservada para esse efeito.
O linho constituiu, e ainda constitui um elemento essencial da vida social, cultural e económica. Conforme testemunhos das artesãs, era comum ter um tear em casa, por vezes dois, onde teciam quando podiam, depois das lides da casa e do campo. Especialmente os serões eram passados a tecer ou fiar, usualmente juntavam-se numa casa com maior lareira para conviver e também servia de ponto de encontro entre jovens enamorados.
Também era usual meterem a roca no coz das saias e fiavam enquanto caminhavam para os campos e feiras, guardavam os animais, amamentavam, esperavam que a comida cozinhasse, todos os tempos além das lides de casa e do campo eram aproveitados para fiar. As tecedeiras com mais posses davam o linho a fiar e ensarilhar a outras e pagavam com uma broa de milho por cada meada.
Havia artesãs que produziam e teciam para seu uso próprio, outras viam nesta atividade uma fonte de rendimento para ajudar na economia familiar. Sensivelmente até aos finais da década de 70 do Séc.XX, quase sempre ao domingo, as artesãs percorriam distâncias a pé por várias localidades para vender e receber encomendas. Por vezes, acontecia que não lhes pagavam em dinheiro, mas sim em bens provenientes da agricultura, como por exemplo, feijão ou milho, o que não lhes era de muito agrado, pois iam carregadas por caminhos e montes com as peças de linho e vinham igualmente carregadas com os gêneros agrícolas
Existem antigos exemplares de peças de linho, já muito degradadas, em que as proprietárias garantem estar na posse da família há muitas gerações.
Os teares eram feitos na própria aldeia, muitos têm sido recuperados ao longo dos tempos. Na aldeia ainda permanece, como já foi referido, o Sr. José Joaquim que ainda constrói e repara teares e restantes utensílios que acompanham o ciclo do linho.
Apenas os pentes artesanais feitos com cana eram encomendados fora da aldeia, geralmente vinham de Resende; atualmente os mais usados são os de metal dado o elevado custo dos artesanais.
À semelhança das aldeias do resto do país, em Várzea de Calde também se verifica uma desertificação acentuada, elevado número de naturais deixaram a aldeia à procura de novas oportunidades profissionais, quer para centros urbanos quer para fora do país. O que originou a redução significativamente do numero de habitantes, que na década de 70 do Séc. passado contava com cerca de 600 habitantes, atualmente conta com cerca de 280, maioritariamente com idades avançadas, sendo também um dos motivos do declinar desta atividade artesanal e da diminuição da produção do linho, que até à década de 70 era bastante intensa nesta localidade.
Convém neste ponto realçar que as instituições locais, quer o município de Viseu, quer a junta de freguesia de Várzea não têm sido indiferentes a este processo de declínio da produção e transformação do linho, tomando várias iniciativas tendentes à preservação e divulgação do Linho Várzea de Calde. Destacamos algumas iniciativas, (desenvolvidas no Anexo II), como a criação do Museu do Linho na aldeia e atividades desenvolvidas no mesmo que envolvem a comunidade, protocolo com o CEARTE para cursos de formação e workshops, criação do selo oficial do Linho de Várzea de Calde, registo de marca nacional, estudo e elaboração do presente pedido no Inventario Nacional no Património Cultural Imaterial, apoios financeiros e logísticos a atividades pedagógicas em contexto escolar, à participação das artesãs em exposições e feiras, à participação em programas televisivos, ao Grupo Etnográfico e à Cooperativa do Linho, à edição de bibliografias, à investigação e a desafios lançados a artistas.
Porém, apesar de todos os esforços, não há registo de nenhuma artesã a dedicar-se a tempo inteiro a esta arte tradicional, todas praticam de uma forma supletiva e irregular. São urgentes novas medidas, incentivos e apoios por parte dos organismos competentes, para que as mulheres se interessem em fazer desta arte uma profissão rentável a tempo inteiro, e assim, seja possível garantir a continuidade desta arte secular tradicional. Pois enquanto as mais idosas ainda vão fazendo todo o ciclo do linho, desde a sementeira ao tear, para ocupar o tempo e não deixar morrer a tradição, as mais novas têm necessidade de um emprego a tempo inteiro que lhes garanta estabilidade financeira.
Se medidas não forem tomadas e criadas condições de escoamento do produto final, com certeza vão gradualmente deixar de fazer o ciclo do linho, o que o município pretende reverter através das medidas explanadas no Anexo II-, a iniciar por este reconhecimento no INPCI de que tanto anseia a comunidade de Várzea de Calde e que com certeza vai ser um grande incentivo para o despertar das gerações mais novas, relativamente à importância e potencialidades que esta manifestação artesanal encerra.
A produção e transformação do Linho Várzea de Calde é desenvolvida principalmente pela comunidade da aldeia mais envelhecida, por isso, é urgente motivar e sensibilizar as mulheres mais novas de Várzea para este facto, pois é a tradição e identidade deste povo que está em causa.
O ciclo do Linho de Várzea de Calde e o cancioneiro associado constitui parte importante do património cultural Imaterial, um símbolo de identidade e orgulho da comunidade do concelho de Viseu e particularmente da Freguesia de Calde, especificamente da aldeia de Várzea de Calde, que urge preservar, valorizar e promover.
O linho de Várzea de Calde constitui um caso especial, sendo um dos raros centros de produção e transformação do linho no país onde se mantém o ciclo na íntegra, desde a sementeira à tecelagem, com um cancioneiro associado.
Como testemunho oral, embora à presente data algumas artesãs já não se encontrem em atividade, transcrevem-se excertos das relevantes entrevistas efetuadas por - Luís Gomes da Costa, As Mulheres que Cantam o Linho in Várzea de Calde - Uma Aldeia Tecida a Linho, 2018, p.187-219.
Maria de Jesus Chaves, nascida em 1940
“ (…).Com a minha avó paterna, que era tecedeira, aprendi a tecer. Como a minha avó vivia connosco, estava habituada a vê-la no tear e fui aprendendo. Comecei a tecer com 14 anos quando já conseguia chegar às peanhas. Herdei o tear da minha avó e com 17 anos já fazia tudo, a minha avó ensinou-me muito bem.”
Nota: A D. Maria Chaves distinta artesã foi durante muitos anos colaboradora na Casa da Ribeira-Viseu, onde ia tecer para demostração aos visitantes.
Palmira Gaspar, nascida em 1940
“ (…).Comecei a aprender a urdir e a tecer ainda muito nova, tinha dezasseis anos. Vi por duas vezes uma senhora a fazer e aprendi logo. (…). A minha mãe fiava muito de noite, ao lume nos serões. Quando íamos com as vacas e as ovelhas levava-se a roca e aproveitava-se o tempo para fiar. O meu tear tem mais de duzentos anos, já foi recuperado e levou algumas peças novas mas as mesas ainda são as originais. O bordado dos panos pode ser feito à mão, mas eu faço-o no tear, é uma tarefa difícil e requer concentração, mas fica um trabalho bonito.”
Engrácia Casal, nascida em 1944
“ (…).A minha família sempre teve tradição do linho. Comecei a tecer bastante cedo, teci muito no tear dos meus avós. Em casa sempre houve um tear, era o trabalho das mulheres, fiar e tecer. (…) Aqui na aldeia vivia-se do linho e do burel. Com o linho fazíamos lençóis, colchões e peças de roupa. O nosso vestuário era feito de linho.”
Maria Duarte Gonçalves, nascida em 1944
“ (…). A minha mãe era tecedeira. Aprendeu com a minha avó que também já era tecedeira, aqui nesta terra era assim. As mães ensinavam às filhas esta arte e depois ia passando de geração em geração. Durante a minha infância sempre vi a minha mãe a tecer, era a vida dela. Tinha treze anos quando comecei a tecer. (…) Para mim fiar nunca foi uma obrigação, era o nosso trabalho do dia-a-dia e gostávamos de o fazer. Andávamos sempre com a roca, íamos com as ovelhas e a roca ia metida na cinta e sempre que podíamos íamos fiando.”
Brilhantina Gonçalves, nascida em 1948
“ (…). De pequena, a minha mãe já me mandava para o tear e embora fosse fazendo algumas asneiras fui sempre aprendendo alguma coisa. Aprendi a urdir com uma senhora vizinha que teve muito gosto em me ensinar e ganhei de tal maneira gosto que depois até já urdia as teias dela. Esta terra sempre foi terra de linho até chamavam a aldeia das tecedeiras pois em cada casa havia um tear. (…)a minha mãe tecia muitas mantas que depois vendia noutras aldeias. Em troca, em vez de receber dinheiro, recebia bens alimentares, que também faziam falta. Lembra-me que em casa tudo o que havia de panos era a minha mãe que fazia. Faziam-se toalhas de linho para a Igreja,….”
Lúcia Ferreira, nascida em 1949
“ (…). Aqui em Várzea havia muitas tecedeiras, era casa sim, casa sim, muitas, muitas. Faziam serão de noite e fiavam e eu pequenita estava lá ao pé delas. Uma tia com quem vivia, fez-me uma roquinha muito pequenina e meteu lá um bocadinho de linho para me ensinar. As vizinhas e amigas juntavam-se e faziam serão, fiavam, cantavam (…). As crianças também iam para os serões e ficavam ao colo das mães mesmo estando elas a fiar (…). Às vezes, quando algum chorava não perdiam tempo, continuavam a dar de mamar e a fiar ao mesmo tempo”.
Adelaide Campos, nascida em 1952
“ (…). Com a minha mãe semeávamos o linho e lembro-me de ver a minha mãe com a minha irmã ao colo, ainda pequenina, e a fiar. Lembro-me que havia um tear encostado à cozinha e a minha mãe, sempre que podia, refugiava-se lá a tecer, nas horas vagas. (…). Este tear que tenho foi recuperado de um tear muito antigo por vontade da minha filha. Chegámos a tecer tapetes, uns paninhos e a minha filha tem muito jeito, (…).Depois foi para o Canadá e deixou de tecer mas tem vendido lá muita coisa de linho aqui da aldeia. Ainda tenho guardadas umas camisas chamadas as camisas domingueiras, feitas com um linho muito fininho e a gola muito bem feita.”.
Laura Filipe, nascida em 1952
(…) O meu pai sempre ajudou nas tarefas do linho que competiam mais aos homens. (…). O único fertilizante que se deitava na terra onde era semeado o linho era o estrume dos animais, (…). Quando íamos levar o almoço às pessoas que andavam na agricultura levava-se uma toalhinha de linho a cobrir o cesto e que depois dava para servir. Lembra-me que a minha mãe sedava e depois punha uma manta no chão com a estopa de um lado e a estopinha para outro para se fiar separado. O linho mais grosso, chamado chascos ou tomentos, era para os colchões que depois se enchiam de palha de centeio. O linho mais fininho era para as camisas dos homens porque as das mulheres eram feitas com estopa. As camisas de linho e os lençóis iam para a barrela. Não se passava a ferro, era tudo muito esticadinho e punha-se a corar”.
Alcina Campos, nascida em 1956
“Aqui na nossa aldeia quase todas as casas tinham um tear. Lembro-me de ver a minha mãe a fiar e as vizinhas da minha mãe a tascar, a maçar e eu gostava de ver aquilo, tinha curiosidade porque nunca o fiz. Depois, mais tarde, quando semeei o meu linho é que percebi que era tão duro maçar. (…). Lembro-me que a minha avó e a minha mãe só utilizavam panos de linho na cozinha, ninguém tinha outros panos e os paninhos para limpar o rosto eram feitos com o linho mais fino”.
Maria Estrela Maurício, nascida em 1962
“Na minha família apenas a minha bisavó teve um tear. (…). Após frequentar o curso de tecelagem é que adquiri o meu tear. (…) É uma tarefa que exige muita dedicação porque fazemos isto nas horas vagas e durante o dia temos o nosso trabalho e as terras para cuidar. As sementes do linho ficam guardadas de uns anos para os outros. A semente do linho é uma coisa que não se estraga, mas tem de estar guardada num saquinho de pano, pois se for de plástico estraga-se. A nossa semente tradicional vem passando de ano para ano, desde o tempo em que pessoas antigas semeavam”.
Isabel Souto, nascida em 1965
“ (…). A minha mãe tinha um tear que era da minha avó mas, mas ela não nunca teceu, em pequenina não tive ligação com o linho. Tudo começou com um curso que fizemos há dez anos em que aprendemos a semear o linho, a trabalhar com o linho; fizemos tudo, desde a sementeira ao pano. Foi desde ai que eu comecei e nunca mais parei.” (…) Para mim, a parte de montar o tear é a mais difícil. Urdir a teia é muito importante pois não se pode falhar um fio; se falha, está tudo estragado. Hoje em dia tenho muito prática porque nunca deixei de praticar e, por exemplo, em meio-dia consigo urdir uma teia”.
Maria Goretti Gonçalves, nascida em 1969
“ Na minha infância sempre ouvi falar do linho por ser uma tradição da aldeia, mas como a minha mãe estava ligada à costura não aprendi nada. O meu interesse pelo linho surgiu mais tarde, quando frequentei o curso de formação ligado ao linho em que aprendemos tudo desde o princípio, da sementeira até ao pano. O trabalho final foi aprendermos a tecer e foi aí que eu realmente me interessei por esta arte. No fundo do povo, onde ainda vivo com os meus pais, lembro-me de ver as tecedeiras a passar na rua com as encomendas que levavam à cabeça num molhinho. Lembro-me das pessoas a maçar o linho nas lajes, eram momentos de convívio entre todos. Neste momento não tenho peças à venda. O que tenho feito é tudo para uma senhora que tem o filho em Inglaterra e lá dão muito valor ao linho,…”.
Sónia Casal, nascida em 1979
“Comecei a interessar-me pelo linho ao ver o trabalho que faziam na cooperativa e, passado um ano, decidi entrar, por uma questão económica e também pelo convívio entre tecedeiras. Eu e a D. Laura já nos conhecemos há alguns anos e neste momento trabalhamos em conjunto, somos a única dupla a tecer. Como eu não tenho um tear e aqui na aldeia ainda há um espirito de entreajuda, a D. Laura convidou-me para tecer peças no tear dela e assim fazemos um trabalho em conjunto. Sou a tecedeira mais nova da cooperativa (…) Antes de fazer o curso já tinha conhecimentos de costura que me permitiam fazer outros trabalhos: por exemplo, já fazia bainhas nos tapetes que saiam dos teares da cooperativa”.
Podemos concluir que as artesãs aprendizes iniciaram esta arte depois do curso de formação, desenvolvendo os conhecimentos posteriormente na cooperativa com as artesãs mais experientes. Mas, como já referido, nenhuma faz desta arte a sua profissão a tempo inteiro.
Direitos associados :
Tipo
Circunstância
Detentor
Direitos coletivos de carácter consuetudinário.
São detentores dos direitos relativos à produção e transformação do Linho Várzea de Calde, a comunidade da aldeia de Várzea de Calde
Responsável pela documentação :
Nome: Maria Fernanda Gomes Mendes Função: Técnica Superior de Estudos Artísticos da Divisão de Cultura e Turismo da Câmara Municipal de Viseu Data: 2021/11/30 Curriculum Vitae