Domínio: Práticas sociais, rituais e eventos festivos
Categoria: Festividades cíclicas
Denominação: Festa em Honra da Nossa Senhora dos Navegantes - Ilha da Culatra
Outras denominações: Festa da Ilha
Contexto tipológico: Manifestação cultural que tem na sua génese um culto religioso, de invocação mariana que presta devoção a Nossa Senhora dos Navegantes, padroeira da Ilha da Culatra e protetora dos homens do mar. A festa realiza-se com regularidade anual, no primeiro fim-de-semana de agosto. A dimensão religiosa decalca alguns elementos característicos de uma romaria sendo que a sua maior singularidade se manifesta na procissão fluvial que tem lugar na Ria Formosa, entre o litoral continental - cidade de Olhão – e a Culatra, cordão dunar da Ria. A circulação de duas imagens marianas que cruzam o espaço lagunar da Ria, alicerça e reforça laços entre duas comunidades piscatórias e, simultaneamente, revela e exalta a dimensão simbólica e sagrada desta manifestação numa mobilização comunitária que é única entre as expressões culturais das populações ribeirinhas desta região.
Contexto social:
Comunidade(s): Comunidade do Núcleo Habitacional da Ilha da Culatra Grupo(s): Clube União Culatrense (CUC); Associação dos Moradores da Ilha da Culatra (AMIC); Associação da Nossa Senhora dos Navegantes (A.N.S.N); Associação ProDiJo (Associação de Jovens da Culatra) Indivíduo(s): Outros grupos informais; Padre Armando Vilarinho ; Sílvia Padinha ; Daniel Santos; Rui Conceição ; Madalena Conceição; Vítor Silvestre; Outros indivíduos da comunidade
Contexto territorial:
Local: Lugar da Culatra, Ilha da Culatra Freguesia: Faro (Sé) Concelho: Faro Distrito: Faro País: Portugal NUTS: Portugal \ Continente \ Algarve \ Algarve
Contexto temporal:
Periodicidade: A festa realiza-se com regularidade anual, no primeiro fim-de-semana de agosto. Data(s): No ano de 2018, a Festa realizou-se nos dias 4 e 5 de agosto e em 2019 realizou-se nos dias 3 e 4 de agosto.
Caracterização síntese:
Anualmente, no primeiro fim de semana do mês de agosto a comunidade da Culatra organiza a Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes, padroeira da Ilha e protetora dos homens do mar. A sua maior singularidade manifesta-se na realização de uma procissão fluvial que tem lugar na Ria Formosa, entre a cidade de Olhão e a Ilha da Culatra que proporciona o encontro de duas imagens marianas que cruzam o espaço lagunar da Ria para depois efetuarem, em conjunto, uma procissão terrestre numa mobilização comunitária que é única entre as expressões culturais das populações ribeirinhas desta região.
Embora se revele secular na história da devoção popular, a invocação mariana associada ao mar e à proteção das comunidades piscatórias, é de tradição recente na Ilha, desde logo, por ser também recente o próprio povoamento do Lugar da Culatra.
A Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes, ou Festa da Ilha, apresenta características de um tipo de religiosidade popular que reclama para si uma forma muito própria de aproximação ao divino que a distancia da prática católica formal e tradicional. É um momento efémero, de encontro pessoal e comunitário com o Divino, “à maneira da Culatra”, por isso é igualmente um tempo alegre, de grande fervor e exaltação, de total rutura com o quotidiano laborioso tantas vezes inquieto e angustiado.
Caracterização desenvolvida:
(…) na devoção popular (…) há sempre um cordão umbilical de fé e cultura que, no caso, constitui um legado mariano riquíssimo a perpetuar-se incontido e espontâneo na alma das nossas gentes, de norte a sul (DIAS, Geraldo J.A. Coelho, 1987).
Festa de Nossa Senhora dos Navegantes – Ilha da Culatra
Não é por acaso que iniciamos o capítulo dedicado à caracterização da Festa de Nossa Senhora dos Navegantes na Ilha da Culatra com a citação de Coelho Dias (1987) e a referência ao conceito de devoção popular que se manifesta inequivocamente adequado a este contexto - social, cultural e religioso. Segundo o autor, toda a devoção popular, incluindo a mariana, assenta fundamentalmente em três coordenadas: Fé, Confiança e Alegria: a Fé que aproxima os homens – incluindo os homens do mar - da religião católica, dos seus dogmas e das suas práticas convencionais; a Confiança em Nossa Senhora que sendo mãe de Jesus, é mãe de todos os homens – incluindo os do mar – e os faz acreditar na sua proteção e na sua interseção de um modo que por vezes se aproxima muito da superstição; e a Alegria que leva os homens – incluindo os do mar – a festejar, com gáudio, Nossa Senhora e a organizar uma festa em sua homenagem. São festas que à partida poderiam ser coincidentes com datas litúrgicas, mas cuja religiosidade popular preferiu puxá-las para o período de Verão, os meses do bom tempo, da bonança e que ao mesmo tempo dão oportunidade aos que estão fora de puderem assistir e participar gozando eventualmente da sua condição de férias (DIAS, Geraldo J.A. Coelho, 1987). São momentos muito aguardados pela comunidade e vividos com enorme fervor e entusiasmo. Assim é a Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes, na Ilha da Culatra.
Preparativos da festa
A preparação da festa inicia-se, sem data fixa, algumas semanas antes. Convém salientar que atualmente não existe uma comissão de festas ou qualquer irmandade religiosa que se encarregue da sua organização, embora anteriormente tenha havido.
Chegou a haver uma comissão de festas, da qual eu participei mas, entretanto, o pessoal começou a ficar cansado e envelhecido e a Festa foi sendo assumida pelo Clube e, claro, por um conjunto de voluntários (Vítor “Cartucho”, entrevista realizada a 16.10.2018).
A comunidade mobiliza-se e vai gerando uma força propulsora que desencadeia os preparativos. As relações familiares e de vizinhança, que definem e estruturam as relações sociais entre os habitantes da Culatra, bem como a pertença dos indivíduos a diferentes grupos locais, constituem esse veículo propulsor dos acontecimentos. No contexto da comunidade, cada grupo conhece o papel que lhe está atribuído e dentro de cada grupo, cada indivíduo sabe, ou tende a saber, as tarefas lhe competem:
(…) chegando aquela altura os homens [do andor] já sabem, eu só preciso de lhes dar uma palavrinha (Rui Conceição “Batchuca” entrevista realizada a 11.07.2018).
De ano para ano a Festa reinventa-se, reproduzindo-se a partir de uma matriz “original” que convive com uma sentida e assumida liberdade, individual e coletiva, que deixa espaço à transformação.
Em relação aos detalhes da programação da festa para 2018, ele [Márcio] diz que vai acontecer mais ou menos a mesma coisa que nos outros anos, e vai em busca de um rascunho do programa da festa rabiscado no cartaz de anos passados. Nesse momento, entendemos bem que a festa é a uma coisa que se faz e refaz a cada ano, na medida das necessidades e vontades que aparecem, e só participando da festividade poderemos entender a sua dinâmica (caderno de campo, equipa de investigadores, julho 2018).
A questão manifesta-se na forma como determinadas dinâmicas sociais têm influência, por exemplo, na participação das pessoas. Isto é, não raro esta semiestruturada organização gera antagonismos e disputas quando determinados elementos se recusam a assumir determinadas tarefas. São frequentemente apontadas como causas a não rotatividade entre os diversos elementos, porque, como se diz, “são sempre os mesmos que fazem tudo”, do mesmo modo que se chega a assistir à contestação das lideranças. Por outro lado, e para além das dinâmicas sociais, a reinvenção da Festa manifesta-se também na forma como a comunidade vai ajustando o Programa e introduzindo alterações que provocam transformação. Sucedeu, por exemplo, em 2017 com a alteração do horário da missa que era celebrada na tarde do domingo, antes da procissão religiosa, logo que chegavam à Culatra as imagens de Nossa Senhora dos Navegantes e Nossa Senhora do Rosário. Por decisão conjunta do Padre e de alguns elementos da comunidade, a missa foi realizada nesse ano logo pela manhã (10h30). A principal razão apontada para esta alteração do horário foi a celebração, nesse ano, de dois batismos. O que seria um caso pontual acabaria por desencadear um debate na comunidade em torno da ideia de se manter a realização da missa de manhã aliviando o programa da tarde e ajudando a que as celebrações religiosas terminassem um pouco mais cedo. A decisão não foi consensual, mas o facto é que daí por diante a situação não mais se reverteu e o Programa da Festa acabou por absorver esta alteração.
Eu concordo e o Rui também, que seja de manhã (…) mas havia pessoas que não estavam de acordo, há as atividades com os miúdos, têm-se de parar a música. (…) Bom mas isto são coisas que têm que se falar com as pessoas do Clube (Madalena Conceição, entrevista realizada a 21.06.2018).
A transformação é, de facto, implícita porque a Festa acontece “à maneira da Culatra” e dos culatrenses. As combinações revelam-se determinantes no seio de cada grupo, sobretudo no que diz respeito à organização das cerimónias religiosas que é articulada com o Pároco de Olhão. Todavia, o caráter segmentário da organização da Festa baseia-se muitas vezes na aptidão inata de certos indivíduos face a algumas tarefas, rituais ou funções. É também evidente a repartição de funções entre homens e mulheres: eles são em grande parte responsáveis pela organização recreativa da Festa – incluindo os trabalhos mais “pesados” - e elas responsabilizam-se pela componente religiosa chamando a si a tarefa de cuidar e zelar por tudo o que lhe está associado. Embora se manifeste esta dicotomização, homens e mulheres entreajudam-se e o trabalho revela-se mais comunitário do que separatista.
Apesar da estreita ligação com a cidade de Olhão, onde tem lugar uma parte importante das celebrações religiosas, todos os preparativos se concentram no Núcleo Habitacional da Ilha da Culatra onde efetivamente a Festa decorre. Tais preparativos passam pela preparação e ornamentação da Capela e seus espaços envolventes, dos andores - em especial o da Nossa Senhora dos Navegantes, no qual se capricha - bem como a decoração do cais e das artérias por onde circula a procissão. Por estas tarefas está responsável o Grupo da Igreja, sobretudo as mulheres que se ocupam cuidadosamente dos detalhes. As decorações reciclam-se de ano para ano, e só por motivos de deterioração se preparam outras novas. A memória recente dá conta da tarefa laboriosa de que se ocupava um grupo de mulheres e crianças que se juntavam no "salão" (designação atribuída ao recinto polidesportivo na Ilha, onde não apenas se joga futebol de salão, como também se organizam bailes e outros eventos), recortando bandeiras em papel, que colavam ao longo de cordas enormes esticadas por toda a sua largura, tornando o espaço num labirinto de cordas e papéis coloridos.
Embandeirávamos a Ilha com as bandeiras que nós próprias [as moças da Ilha] fazíamos. Comprávamos papel colorido nas papelarias de Olhão, cortávamos em triângulos e depois colávamos com farinha de trigo e água, não havia cola. Assim enfeitávamos a Ilha para a procissão passar (Cecília Mendonça, entrevista realizada a 11.07.2018).
Atualmente, os elementos do Clube União Culatrense são responsáveis pela montagem das infraestruturas de apoio ao recinto, incluindo as decorações, e pela organização das atividades paralelas que completam o programa da Festa. Desempenham estas tarefas com o apoio das restantes estruturas associativas existentes na Ilha.
O Clube organiza tudo (…) como a animação da noite, as atividades, as comidas e bebidas e enfeitamos a ilha. Tudo isso é connosco. A parte religiosa é que é com elas, a Madalena, a Regina e com as outras senhoras desse grupo. O resto é connosco (…). A Associação da Nossa Senhora dos Navegantes também dá apoio e as entidades oficiais (como a Câmara) também. Mas nós é que fazemos tudo (Márcio Lopes Buchinho, entrevista realizada a 10.07.2018).
Pela quermesse, ou bazar, como lhe chamam, responsabilizam-se também as senhoras do Grupo da Igreja com o apoio dos jovens da ProDiJo que vão de casa em casa recolhendo objetos que os culatrenses doam para rifar. Em dia combinado um grupo de mulheres e jovens reúne-se num café ou num espaço comunitário para enrolar os papéis. É um momento de convívio que as pessoas envolvidas apreciam.
Por outro lado, uns dias antes da Festa, os homens do andor organizam-se, sob a liderança de um deles (atualmente o Rui Conceição) que se encarrega de reunir o grupo, distribuir as tarefas e definir com o Pároco todos pormenores que envolvem a organização da romaria - fluvial e terrestre - e do conjunto das celebrações religiosas que a acompanham. O grupo das mulheres da Igreja é também envolvido para que, entre si, todos se possam articular.
Os preparativos implicam também os proprietários das traineiras e o respetivo sorteio atempado daquela que conduzirá a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, a de Nossa Senhora do Rosário e a Banda Filarmónica, bem como as respetivas comitivas. A tendência, que já em 2018 se manifestava, é que este sorteio se transforme num sistema de rotatividade:
(…) agora só temos três barcos e assim já não faz tanto sentido o sorteio, faz-se uma rotatividade. Temos o “Vila do Mar” que vai este ano com a Nossa Senhora dos Navegantes, o “Rio Odiel” leva a Banda e a “Selma” leva a Nossa Senhora do Rosário (Márcio Lopes Buchinho, entrevista realizada a 10.07.2018).
Por fim, e no que se refere aos preparativos, procede-se com antecedência à decoração dos barcos, não só das referidas traineiras, como também das embarcações de pesca e recreio que acompanham a romaria. Quanto à decoração das traineiras estas ficam a cargo dos mestres e das suas famílias e diferem consoante a imagem que se transporta a cada ano sendo que, naturalmente, a que transporta a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes é mais engalanada.
Sexta-feira, dia da preparação
Na Capela, e sob a coordenação da Madalena Conceição, as senhoras atarefam-se nos preparativos. É necessário efetuar a limpeza de todo o espaço e dos diversos elementos fundamentais na celebração da missa: o sacrário, o cálice e a cruz os quais se querem por demais reluzentes.
As imagens que farão parte da procissão são colocadas à entrada da Igreja com a ajuda dos homens que transportam os andores. Os paramentos são substituídos, as opas dos homens do andor estão preparadas bem como as almofadas que colocam ao ombro para suportar o peso do andor. O ritmo a que decorrem estas preparações é marcado pela entrada e saída de diversas senhoras, que conjugam estas tarefas com a ida à ameijoa e os seus afazeres domésticos.
Manifesta-se uma especial preocupação com a decoração dos andores das imagens de Nossa Senhora dos Navegantes e o Senhor do Sagrado Coração de Jesus, as únicas que sairão na procissão. As flores são trazidas por uma florista de Olhão, fornecedora habitual. Na Culatra, as senhoras do Grupo da Igreja recebem as flores no cais e transportam-nos até à Capela:
(…) essa situação veio facilitar-nos, dantes íamos nós a Olhão buscá-las, tínhamos de trazê-las desde a floricultura até cá. Às vezes trazíamos no barco da carreira, outras vezes os homens ajudavam-nos. Assim facilita-nos, o trabalho na Capela fica menos dependente dos homens, que vão ao mar (Madalena Conceição, entrevista realizada a 21.06.2018).
As flores são selecionadas pela cor, já que devem corresponder à cor do manto das imagens ou com elas deve condizer. Para a imagem do Sagrado Coração de Jesus são escolhidos os gladíolos cor de laranja e palmas verdes que combinam com a cor do manto. Em 2018 a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes foi decorada com rosas cor-de-rosa e antúrios. Usam-se também as gerberas. No contorno do andor ou do barco são colocadas margaridas.
As responsáveis pela decoração floral têm consciência de que a sua tarefa é fundamental. A protagonista é Nossa Senhora dos Navegantes e todos os olhares estarão postos no seu andor. O trabalho inicia-se com a cobertura do fundo do andor com esponjas humedecidas que se dispõem de acordo com o formato que as recebe. Posteriormente, cada ramo e cada flor são cuidadosamente aparados e ordenados na estrutura, de acordo com o efeito desejado, criando combinações harmoniosas. É uma tarefa coletiva que se arrasta por toda a tarde. Neste dia, o Grupo da Igreja ocupa-se cuidadosamente das imagens, da Capela e dos espaços contíguos. É frequente que pela tarde fora, alguns curiosos entrem, para observar ou mesmo para rezar pelo que, quando pronta, a Capela ficará aberta até final do dia para poder ser visitada.
No exterior procede-se a outro tipo de arranjos. Monta-se e ornamenta-se o espaço, por detrás da Capela onde no domingo é feito o sermão. Limpam-se as árvores, removem-se os galhos partidos e varre-se o espaço em redor. Redes de pesca são colocadas sob as árvores e arbustos circundantes. O cartaz com o Programa da Festa é colocado nos mastros de bandeiras existentes frente à Capela. É já pela entrada da noite que os preparativos terminam.
Não muito distante, outro grupo ultima os preparativos do recinto da festa. A meio da tarde os homens do Clube reúnem-se, sob a liderança do Presidente, para erguer um enorme toldo que cobrirá todo o recinto, formado por um oleado estendido sobre a areia. É montada toda uma infraestrutura destinada ao espaço de restauração que inclui uma esplanada, na qual são servidas refeições durante a festa. A disposição das mesas e cadeiras tomarão lugar distintos nos dias seguintes, consoante os acontecimentos que forem decorrendo naquele recinto.
A montagem de toda a estrutura faz-se pela tarde e demora várias horas. Em seu redor surge a barraca da quermesse e de mais alguns vendedores que aí estabelecem o seu espaço de venda.
Sábado, dia da festa profana
O dia começa bem cedo quando os foguetes rasgam o céu anunciando o início da Festa. Logo a Ilha ganha vida. Este será o dia mais descontraído e o menos solene. Os culatrenses manifestam-se entusiasmados, muitos aguardavam ansiosamente pelo fim de semana da Festa.
Ultimam-se ainda alguns preparativos para as atividades religiosas e procede-se ao embandeiramento das ruas por onde passará a procissão. Esta é uma tarefa masculina, que está a cargo dos elementos do CUC. Estendem-se as cordas que, sustentadas pelos postes de eletricidade, abarcam todo o percurso.
Este é, por excelência o dia da festa popular, aquele em que decorrem as principais atividades de recreio e lazer. De manhã, inicia-se a venda de rifas da quermesse a favor da Igreja. Os artigos sorteados resultam, como referido, de ofertas dos moradores que são recolhidas pelos mais jovens, alguns dos quais montam as suas próprias bancas de venda. Entre as bancas de doces, artesanato e roupas, destaca-se a da Associação da Nossa Senhora dos Navegantes que assim procura angariar fundos para as suas atividades. Entretanto o espaço de restauração do recinto vai enchendo. Há alguns anos atrás o serviço de refeições estava exclusivamente a cargo da Associação da Nossa Senhora dos Navegantes, mas a crescente procura e a afluência, durante todo o período da festa, levou os organizadores a concessionar parte desse serviço a terceiros.
Em 2018 e durante a manhã, realizou-se o “tradicional” torneio de cartas e dominó, entre os homens da comunidade. Teve lugar ainda uma atividade desportiva - o torneio de futebol de 5 - que se realizou no campo de futebol do CUC. O futebol é jogado por equipas mistas e conta sempre com a assistência dos familiares pelo que é sempre um evento esfusiante e amplamente participado.
Ao almoço, as mesas estão repletas de culatrenses e visitantes que se demoram em conversas e encontros. Pela tarde, por volta das 15h, começam os diversos espetáculos que decorrem no recinto. Em 2018, as mulheres que frequentam aulas de ginástica organizaram uma demonstração de zumba, sob a orientação da sua professora. As crianças participaram em demonstrações de jogos tradicionais que consistiam, sobretudo, em mergulhar a cabeça em alguidares repletos de água e farinha com o objetivo de apanhar, com a boca, as moedas colocadas no fundo do recipiente. Convém dar conta que estes acontecimentos foram sendo animados, como habitualmente, por Vitor “Cartucho” que, de microfone em punho, incita os participantes, com relatos e piadas que são acompanhadas pela assistência com risos e aplausos. É, por isso, considerado o “mestre de cerimónias” porque funciona de certa forma, como voz off que narra e comenta jocosamente os acontecimentos.
O CUC termina a sua participação, pela noite, com a realização de um baile muito concorrido. Independentemente das idades e do género, o baile enche-se e as casas ficam desertas. Bebe-se cerveja e dança-se ao som de um conjunto contratado. Dança-se em grupo e aos pares – de homens e mulheres, de mulheres, de jovens e de seniores. A temporada de bailes na Culatra decorre aos sábados durante o verão, mas nenhum será tão concorrido como este, havendo até necessidade de limitar as entradas por questões de segurança.
Domingo, dia da festa religiosa
Domingo é o dia da festa religiosa em honra de Nossa Senhora dos Navegantes. Embora decorram atividades recreativas pela manhã, o dia é efetivamente marcado pelas cerimónias religiosas. Começa com a celebração da missa presidida pelo Pároco ou pelo Bispo, como sucedeu em 2018. Nesse ano as celebrações religiosas foram conduzidas por D. Manuel Quintas, Bispo do Algarve. Nem sempre o Bispo participa pelo que habitualmente é o Pároco da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, em Olhão - à qual pertence a comunidade da Culatra - que preside e conduz as celebrações. O sacerdote, acompanhado dos acólitos, chega à Culatra um pouco antes sendo transportados numa embarcação reservada para o efeito. A missa tem lugar dentro da Capela e é fortemente participada por uma numerosa assistência. À falta de lugar no interior por vezes a comunidade ocupa o espaço exterior da Capela.
Após a missa, os sacerdotes e acompanhantes retornam a Olhão de onde tornam a sair em procissão, na parte da tarde, primeiramente acompanhando a imagem de Nossa Senhora do Rosário, padroeira da cidade, e depois participando na romaria fluvial e terrestre que lhe sucede.
Ainda antes do almoço decorre a competição da regata a remos, nas modalidades infantil e sénior feminino. O evento é acompanhado entusiasticamente pelos moradores da Culatra (em 2019 os únicos que puderam participar nas competições em qualquer modalidade) e por muitos dos que se encontram na Ilha, usufruindo da época balnear ou que ali se deslocaram propositadamente para a Festa. Diversas embarcações da Ilha acompanham e circundam os remadores. O seu desfecho é sempre acompanhado de aplausos e ovações aos vencedores.
Segue-se então o almoço, no recinto da festa que é, sobretudo, marcado pela presença dos representantes das entidades oficiais que visitam a Culatra neste dia. Os dirigentes locais recebem-nos com formalidade e acompanham-nos ao longo do dia durante toda a sua permanência na Ilha.
Qual é o meu “trabalho”? Preparar vários indivíduos da Culatra, vários pescadores e combinar com eles [o transporte dos andores]. No dia da Festa, no domingo, às duas horas vou para Olhão com o barco que vai buscar a Santa e levo então esse grupo de homens, 7 ou 8 homens ou 9 ou 10. Chegamos a Olhão, vamos à Igreja Matriz e preparamos as coisas. Já lá está o Padre e está tudo organizado. Logo se começa a procissão que saí da Igreja às três horas. Fazemos o percurso em procissão até ao cais T. Agora já há um grupo de homens de Olhão que levam o andor e dão-nos um grande apoio, já há um intercâmbio. Até há uns anos não havia. Era os homens que eu levava da Culatra que levavam o andor. (…) Chegamos ao cais T e, entretanto, chega a Nossa Senhora dos Navegantes a Olhão na altura certa porque os contactos telefónicos ajudam. Embarcamos Nossa Senhora do Rosário e vamos em procissão pelo mar até Culatra (Rui Conceição “Batchuca” entrevista realizada a 11.07.2018)
Com efeito, logo após o almoço retomam-se as cerimónias religiosas. Por volta das 14h prepara-se a saída da Capela da imagem de Nossa Senhora dos Navegantes. Entretanto uma parte do grupo dos homens do andor já abalou para Olhão e na Ilha o movimento adensa-se. Juntam-se os elementos da comunidade para presenciar, tal como muitos forasteiros. A festa agora é um momento de fé. Os homens do mar rendem-se à imagem de Nossa Senhora e acompanham o andor que a transporta até ao cais. Aqui a imagem é embarcada com perícia e um cuidado extremo, no “Vila do Mar”, no “Rio Odiel” ou no “Selma” consoante previamente sorteado ou acordado. Em seguida ruma a Olhão, cruzando a Ria ao encontro da Nossa Senhora do Rosário.
Ao mesmo tempo, em Olhão, e já sob orientação dos homens da Culatra, a imagem de Nossa Senhora do Rosário deixa a Igreja Matriz. Os elementos da Paróquia de Olhão, incluindo o sacerdote, estão coordenados com os culatrenses para que seja bem sucedida a organização, e fundamentalmente para que o encontro das duas imagens no cais seja consentâneo: de um lado a imagem de Nossa Senhora do Rosário que sai da Igreja acompanhada pela Banda Filarmónica e por um grupo de fiéis e, do outro, a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes que atravessa a Ria ao seu encontro. A acompanhá-la segue uma enorme mancha de barcos, de pesca e recreio, na sua maioria de pequeno porte, que compõem o cortejo preenchendo a Ria e dando, às suas águas calmas, um colorido e uma agitação nunca vistos em qualquer outra ocasião. Os mais crentes efetuam o percurso entoando cânticos religiosos e rezando.
O encontro das procissões, marítima e terrestre, deve dar-se com a chegada, quase em simultâneo, de ambas. É um momento apoteótico, de forte emoção. Os barcos buzinam, as pessoas, emocionadas, gritam vivas às santas. Madalena Conceição, a bordo do “Vila do Mar”, dá o mote com o megafone: “Viva a Nossa Senhora dos Navegantes!” Viva! “Viva a Nossa Senhora do Rosário!” Viva! Estas palavras soam repetidamente, tanto no trajeto fluvial como no momento do reencontro das duas imagens. A voz por vez sai-lhe embargada de tão fervorosa se revela a sua devoção. “É assim a fé dos homens do mar”, explica mais tarde Madalena. Nesta ocasião as emoções estão ao rubro.
No centro do cortejo, seguem as três traineiras ao serviço da Nossa Senhora dos Navegantes. Na traineira em que segue a padroeira da Culatra, seguem igualmente os mais altos dignitários: o Bispo do Algarve, o Presidente da Câmara Municipal de Faro e o Comandante do Porto de Olhão. No barco que transporta a Nossa Senhora do Rosário seguem os sacerdotes e os acólitos. Os homens do andor e os elementos do grupo da Igreja distribuem-se por ambos os barcos. No terceiro acomodam-se os elementos da Banda, habitualmente a Filarmónica 1.º de Dezembro, de Moncarapacho. Durante todo o trajeto tocam músicas litúrgicas, como por exemplo, Salve, Nobre Padroeira. No barco, Madalena Conceição, com o megafone, continua cantando e rezando durante todo o percurso e dando as vivas: Viva a Nossa Senhora dos Navegantes! Viva a Nossa Senhora da Conceição! Viva a Banda!
A Polícia Marítima faz a escolta dos barcos que transportam as imagens. Curiosamente a participação da autoridade marítima é entendida ela própria como um ato de fé, que se observa na postura dos agentes, mas também como forma de afastar os mais entusiasmados marinheiros que, por vezes, tentam aproximar-se demasiado das traineiras principais.
Entretanto da Culatra avista-se a enorme mancha de barcos. À chegada, e enquanto se procede ao desembarque acentuam-se os vivas às santas.
Já em terra, dá-se início à procissão. As artérias da Ilha transformam-se num palco espiritual onde os homens do andor fazem progredir as imagens que são seguidas pelas duas figuras do clero, o Bispo do Algarve e o Pároco bem como pelos acólitos. No final segue a Banda e depois a população. O percurso que liga os extremos longitudinais da Capela, junto à Ria, a norte, segue pela “avenida” e contínua sobre as passadeiras situadas no limite sul, na direção do oceano. Regressa pela “nascente”, rua dos Heróis do Ultramar, retornando à Capela.
Durante o percurso, o andor da Nossa Senhora dos Navegantes é disputado e acaba sendo transportado por diferentes fiéis. Homens e, sobretudo, mulheres tomam à vez o lugar dos homens do andor. “É uma questão de fé”, diz-se. Na chegada da procissão à Capela, as pessoas distribuem-se e as imagens tomam um lugar central que lhes está reservado no espaço exterior. Aqui decorre uma cerimónia na qual o Bispo efetua uma preleção final no local onde foi previamente montado um pequeno palco. Sobressai o tapete vermelho e algumas ornamentações que remetem para o contexto marítimo. Durante esta homilia, o Bispo procede ainda à bênção dos barcos e do mar sendo que nesta ocasião se desloca para junto da Ria. Nesta ocasião solene os fiéis entoam um cântico religioso:
Senhora dos Navegantes
A nossa prece escutai
Da Culatra os habitantes
Virgem Mãe abençoai!
Aqui vimos, Mãe querida
Consagrar-Te o nosso Amor.
É o fim das celebrações religiosas em honra de Nossa Senhora dos Navegantes. A imagem da Nossa Senhora do Rosário é conduzida de novo à embarcação que a transportou, sendo acompanhada pelos sacerdotes e pela Banda Filarmónica que toma também o seu transporte. No cais, a comunidade da Culatra acena, com lenços brancos, em sinal de despedida. A Nossa Senhora dos Navegantes e a imagem do Sagrado Coração de Jesus despedem-se, entre emocionados vivas, sendo de seguida reconduzidas à Capela pelo mesmo trajeto.
No regresso vamos todos [os de Olhão e da Culatra] a Olhão levar a Santa. Aí já não vamos em procissão. Desde que veio o Padre Armando temos lá uma carrinha à espera e pomos lá o andor. Antigamente éramos nós que levávamos às costas o andor, como já não era em procissão era a despachar (Rui Conceição “Batchuca” entrevista realizada a 11.07.2018)
Os homens do andor, sob o comando do líder, acompanham a imagem até ao seu destino final, a Igreja Matriz, assegurando que ali ela é novamente depositada. Por sua vez na Culatra são os fiéis que acompanham o regresso das duas imagens à Capela. Neste caso já são apenas os homens do andor que as transportam e já são menos os que acompanham. Durante algum tempo a Capela permanece aberta à disposição daqueles que ainda a pretendam visitar. Por fim, quando a Capela se encerra, a festa (religiosa) termina. Neste momento, a pertença à comunidade valida-se na distinção entre os que vão e os que ficam: os que vão, são passageiros, os que ficam são residentes. A festa agora é desses e o espaço, ainda agora sagrado, retorna ao profano. Nos culatrenses manifesta-se a sensação do dever cumprido. Para o ano há mais, assim ou de outra forma.
Manifestações associadas:
Não se identificam diretamente manifestações associadas à Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes senão apenas aquela que decorre a sua existência: a pesca tradicional ou artesanal a que se dedica a quase totalidade dos moradores da Culatra. A pesca tradicional ou artesanal caracteriza-se pela existência de meios tradicionais, onde as formas e técnicas de captura do pescado são, por norma, passadas de geração em geração. Os barcos utilizados neste tipo de pesca são de dimensões pequenas e de fraca tonelagem, atualmente a grande maioria motorizados. A tripulação é muito reduzida e confinada, amiúde, ao núcleo familiar (nuclear ou alargado). Como não dispõem de meios de conservação não podem passar muitas horas no mar, predominando assim a pesca local e a pesca costeira. Geralmente o destino do pescado é para autoconsumo ou venda em mercados locais (Duarte, 2004).
Segundo dados da Associação de Moradores da Ilha da Culatra vivem cerca de 400 famílias neste Núcleo Habitacional onde a quase totalidade dos homens em idade ativa dedica à pesca artesanal, bem como a reparar e safar as artes e a tratar dos viveiros enquanto as mulheres se dedicam à apanha do marisco regulando toda a sua vida diária em função da subida e descida das marés.
Os conhecimentos, fundamentalmente empíricos e passados de geração em geração, as artes de pesca e a sua utilização e todo o universo dos saberes e das práticas que se encontram cristalizados na Culatra por intermédio desta comunidade que, de forma resiliente subsiste, constituem, em si, um riquíssimo património imaterial associado. Note-se que até meados do século XIX, as ilhas barreira da Ria Formosa, incluindo a Culatra, estiveram basicamente abandonadas. Foi apenas no final do século que se iniciou a sua ocupação de forma permanente. O seu povoamento esteve diretamente ligado ao incremento da indústria pesqueira, nomeadamente à instalação de armações de atum e sardinha. Associada a cada uma destas armações nascia um “arraial”, isto é, instalações provisórias construídas pelos pescadores para residirem com suas famílias durante os meses da pesca (entre março a setembro). As cabanas foram-se transformando em habitações permanentes à medida que os pescadores foram diversificando as suas artes de pesca que lhes permitiam sustentar as famílias durante todo o ano. O elevado potencial da Ria rapidamente provocou a diversidade da atividade da pesca com outro tipo de artes. Atualmente predominam na Ilha as redes de tresmalho e de emalhar para apanha de espécies diversificadas. As embarcações tradicionais em madeira, a remo ou à vela - designadas por botes, dóris, lanchas, chatas e saveiros - também evoluíram para barcos a motor em fibra. Na Ilha ainda existem algumas dessas embarcações tradicionais. Recorde-se que em 2018, no âmbito de um projeto aprovado no orçamento participativo, foram construídos e postos a navegar seis saveiros tradicionais muito utilizados outrora na Ria Formosa pela comunidade piscatória, mas que foram caindo em desuso, sendo gradualmente substituídos por embarcações mais modernas e mais bem adaptadas à prática da pesca e do marisqueio.
Presentemente a ilha da Culatra é composta por três núcleos populacionais: Culatra, os Hangares e o Farol. A Culatra e Hangares apresentam uma ocupação permanente que permanece dependente, economicamente, da pesca tradicional e/ou marisqueio, contrariamente ao que acontece no Farol, cuja ocupação é sazonal e está intimamente dependente do turismo balnear. A fé dos culatrenses pela sua (Nossa) Senhora dos Navegantes, que não é, de todo, exclusiva da Culatra, advém precisamente da condição do marítimo e da herança que carrega há séculos, o ter que enfrentar, com coragem, as tormentas e os perigos do mar. É aqui que procura e encontra a proteção de Maria como tábua de auxílio e salvação, para si e para a sua família, nas horas e nos momentos amargos que essa sua condição acarreta.
Contexto transmissão:
Estado de transmissão activo Descrição: A transmissão de saberes, conhecimentos e práticas entre os pescadores da Ilha da Culatra está ativa e é indissociável da sua condição que em termos históricos é adversa e que assenta prodigiosamente no paradigma da sobrevivência. A sua resiliência e capacidade de adaptação, legitimada através de várias gerações, tem mantido os pescadores na Culatra preservando um modo de vida muito característico das comunidades tradicionais. A estes grupos culturalmente diferenciados se reconhecem formas próprias de organização social que decorrem de uma condição periférica, de isolamento. Ocupam e usam o território e os recursos naturais como condição indispensável à sua reprodução económica, social e cultural. Utilizam conhecimentos e práticas gerados e transmitidos pela tradição, que passam de geração em geração. Esta tendência, que é comum a outras comunidades piscatórias, é na Culatra favorecida pela situação de enclave que acentua a sua marginalidade considerando que é uma Ilha onde não existem sequer meios de transporte terrestres e a comunicação com o continente é feita exclusivamente de barco.
Sendo de tradição recente a Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes está ativa e goza deste contexto onde as relações familiares e vicinais, as quais amiúde se confundem, impactam e determinam o comportamento dos indivíduos. Efetivamente a Festa reproduz-se nestes círculos, tal como nestes círculos se reproduzem todos os modos de vida na Culatra incluindo a pesca que é o garante da subsistência desta pequena comunidade piscatória.
Habituados a viver com elevados índices de autossuficiência, é também de uma forma muito autossuficiente que a Festa se reproduz. Os indivíduos geram essa dinâmica e fazem-na depender o menos possível do exterior. Naturalmente contam com alguns apoios, como da Paróquia de Olhão ou da Câmara Municipal de Faro tal como dependem de agentes externos como a Banda Filarmónica ou os artistas convidados que animam os bailes. Contam também com os visitantes que ajudam a estimular a economia. Porém, e embora se manifeste esta abertura ao exterior, a Festa é organizada pela comunidade para ser vivida pela comunidade reafirmando, a cada ano, sentimentos de pertença e identidade. Aqueles que hoje são responsáveis pela reprodução da Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes são os que carregam dos pais e dos avós essa herança que é ser da Culatra, ser pescador, ser crente e ser capaz de o perpetuar. Por esse motivo não se pode considerar que a Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes seja apenas uma festa religiosa quando na realidade é toda uma manifestação cultural em si o que está também implícito no modo mais abrangente como a consideram - a “Festa da Ilha”.
Data: 2018/08/05 Modo de transmissão oral Idioma(s): Português Agente(s) de transmissão: Todo e qualquer indivíduo da comunidade
Origem / Historial:
A Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes é indissociável da própria história da Ilha da Culatra e por esse motivo, para compreender uma é preciso conhecer a outra.
Começamos por sublinhar que a origem do povoamento da Culatra levanta dúvidas aos investigadores. Crê-se que a permanência no litoral algarvio ou, neste caso, nas ilhas-barreira da Ria Formosa tenha sido insustentável, durante séculos, devido aos ataques de pirataria e corsários dos quais dá conta Romero de Magalhães nos estudos que dedicou às terras algarvias (1970). A instabilidade territorial que sujeitava as ilhas a ventos e correntes marítimas terá igualmente inviabilizado, por muito tempo, a ocupação deste território. Porém, existem relatos (Coutinho, 2008; Leonardo, 2020) que mostram que durante o século XVI terão sido enviados para a então designada “Ilha dos Cães” um grupo de pessoas vindas de Arzila, Marrocos, que aqui foram colocadas em quarentena em consequência de uma «peste geral» que atingia o Norte de África. Estas fontes documentais levam a crer que tenha sido esta epidemia a causa do primeiro registo da presença humana no que se presume que seria a Ilha da Culatra.
No século XVIII o grande terramoto de 1755, que teve consequências devastadoras em Portugal e também no litoral algarvio o qual foi atingido pelo maior tsunami (maremoto) de que há memória em Portugal. Ao contrário do que sucedeu no barlavento algarvio, onde o tsunami contribuiu para uma intensa destruição e avultado número de vítimas, na região do sotavento (Faro, Olhão e Tavira), o impacto foi bem menor, graças ao efeito protetor das ilhas barreira elas sim, expostas à brutalidade do fenómeno. Daqui resultaram grandes alterações na extensão e configuração das ilhas-barreira que terão destruído quaisquer vestígios que pudesse existir na Culatra que fossem anteriores a essa data (Leonardo, 2020).
Embora surjam referências díspares efetivamente foi só nos finais do século XIX que as ilhas-barreira, designadamente Armona e Culatra, começaram a apresentar povoamento permanente (Bernardo; Dias, 2003). Tal ocupação está intimamente relacionada com as atividades da pesca nomeadamente ligada às armações de atum que foram atraindo pescadores de todo o Algarve e de outras zonas do litoral português, em estadias sazonais. Assim surgiram os primitivos arraiais, isto é, barracos provisórios onde se acomodavam sazonalmente – entre março e setembro - os pescadores e as suas famílias. Alguns autores (Cabreira, 1918; Cavaco, 1977; Rodrigues, 1997; Seruca, 2000) referem ainda as armações de sardinha e a pesca de “cerco americano” que os pescadores locais vieram a adotar, mais tarde, pela necessidade de maiores capturas de peixe, em especial da sardinha. Se no início não havia alternativa senão usar as tradicionais embarcações a remos, rapidamente tal se tornou insustentável pelo que surgem os galeões de cerco - barcos de madeira ou ferro, movidos por máquinas a vapor, com cerca de 30 metros de comprido, de borda baixa e popa redonda – e mais tarde as traineiras, embarcações a motor que sucederam aos galeões e, por isso, também usadas na arte do cerco para a pesca da sardinha, cavala e carapau. De facto, a ocupação da Ilha é associada, na memória local, às armações e cercos de sardinha e atestada por vestígios encontrados no local (carcaça de galeão, âncoras e outros objetos).
Atrás da sazonalidade veio a fixação definitiva na Ilha quando os pescadores começaram a perceber as potencialidades da exploração dos recursos locais (pesca artesanal na Ria, coleta de bivalves, criação de animais de capoeira e gado miúdo) que se praticava a par de outros benefícios retirados do contacto com embarcações que acostavam para abastecimento ou transbordo de produtos entre os centros urbanos no litoral (Faro e Olhão) e o exterior. Foi a pluralidade de atividades, conjugando a exploração dos recursos naturais, para consumo próprio e o mercado, que permitiu a permanência de famílias que chegavam ou se formavam na Ilha. Na sua maioria, tiveram origem noutros centros piscatórios próximos - Faro, Fuseta, Olhão, Tavira e Monte Gordo, entre outros - e mais distantes, essencialmente Setúbal.
Tal como outras comunidades no país e na região, este aglomerado começa por ter perfil de um acampamento, feito de cabanas de canas e barrão, tal como as identificou Veiga de Oliveira (1988). A partir de meados do século XX, o material de construção das cabanas é gradualmente substituído por revestimento de madeira e telhados de zinco, passando a conferir uma aparência mais permanente ao povoado. O casamento é precedido da construção de uma nova cabana e assim se multiplicam as famílias. O aglomerado passa, gradualmente, a estender-se para o interior da ilha, a partir da Ria “mãe” e os pescadores locais passam a viver da pesca artesanal na Ria ou da pesca costeira, auxiliados por pequenos barcos à vela e a remos. Em complementaridade, embarcam, por vezes, em navios de pesca em portos próximos rumo à pesca em mares distantes: costa portuguesa, costa espanhola e marroquina. Outros partem, inclusive, para a emigração. Mas o primado da autonomia - um barco, um homem - que a pequena pesca costeira proporciona, instala-se. Foi assim que os homens da Culatra encontraram a “liberdade”, preterindo a pesca assalariada no caso dos homens, ou o emprego industrial nas fábricas de conservas, no caso das mulheres. Em ambas as atividades, o trabalho sazonal gera situações de precariedade e miséria.
De acordo com o Recenseamento Geral da População, em 1911, contabilizavam-se 342 habitantes e 75 fogos na Ilha da Culatra e em 1960, 456 habitantes e 107 fogos. Contudo, a população decresce em 1940 (233 habitantes) e em 1970 (212 habitantes). Estes valores mostram como a população da Ilha da Culatra decresceu em consonância com fenómenos nacionais: período entre as guerras e emigração. Em contrapartida, a partir do final do século XX até ao presente, cresceu 76% (1991, 574 residentes e 2011, 759 residentes). Este aumento da população residente relaciona-se com as melhores condições de vida local: posto telefónico (1982), centro de apoio social (1991), fornecimento de eletricidade (1992), construção do porto de abrigo (2008), água canalizada e saneamento básico (2009), criação de rede de transportes entre a Culatra e Faro e Delegação da Cruz Vermelha (2011). Note-se que em vários jornais locais consultados entre 1898 e 2016 (vd. tabela constante do n.º 16 do presente Anexo I) as notícias sobre a Culatra são praticamente inexistentes. Surgem curiosamente, apenas nos anos 30, descrevendo casas de férias de famílias de Faro e Olhão que ali se deslocavam no período estival e que teriam mais tarde abandonado a Culatra - nuns casos refere-se a presença de casos de lepra, outros dão conta de um acidente que teria morto uma família de regresso a Faro e que teria sido motivo para esse abandono. De qualquer modo, o período de encantamento turístico, foi breve.
Relativamente à Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes esta surge pela primeira vez retratada num curto documentário produzido pela RTP, mudo e a preto e branco, que data de 1967. Nesse registo documental é possível ver embarcações engalanadas que se dirigem para a Ilha e que circundam aquela em que é transportado D. Júlio Tavares Rebimbas, Bispo do Algarve. Este desembarca na Culatra, por entre alas de remos formadas pelos pescadores, e celebra missa na Capela de Nossa Senhora dos Navegantes.
A construção da Capela constitui efetivamente um marco fundamental na religiosidade dos culatrenses abrindo caminho à formalização do culto de Nossa Senhora dos Navegantes, na Ilha da Culatra.
Quando eu nasci [1939] não havia festa nem nada disto (…) Primeiro começaram com as missas. Era missa campal. Eu teria aí uns 9 anos, lembro-me que a missa foi dada atrás de uma casa, a casa do senhor Bento e da sua mulher que era Celeste. (…) Depois as missas passaram para o antigo salva vidas (onde hoje é o infantário) e passaram a trazer uma santa de Faro. Foi aí que saíram as primeiras procissões (Antonieta Arraes, entrevista realizada a 22.06.2018).
O modo de vida na Culatra centrava-se, em meados do século XX, na pesca e na capacidade de sobrevivência de uma comunidade que vivia em total condição de marginalidade. Deste modo não admira que os culatrenses tenham sido sensíveis à atuação das professoras primárias bem como das catequistas que pelos anos 60 já circulavam na Culatra e cujo papel é apenas possível de contextualizar através da história oral e da memória que alguns culatrenses ainda preservam dessa época. É-nos referido que uma destas senhoras era esposa do Engenheiro Rosário Pereira, que se deslocava para o Farol, com frequência. Este casal e o casal Resende foram responsáveis pela construção da Capela, efetuando as diligências necessárias para a sua construção para a qual colaboraram os culaterenses. A ideia de que a igreja foi construída pela comunidade é recorrente no discurso local.
Entretanto a Igreja começou a ser construída. Todos aqui da Culatra fomos ajudar. Eu já tinha os meus 12, 13 anos, já podia com pedregulhos como se fosse uma mulher. A Igreja foi feita assim, vinham os batelões de Faro e descarregavam as pedras e nós acartávamos. Não houve tratores, não houve nada. Foi assim que aquela igreja foi feita. Os primeiros santos que aquela Capela recebeu foi o Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora dos Navegantes. Esses foram oferecidos pelas pessoas que estiveram à frente da construção das Capela. Os outros é que já foram oferecidos por pessoas aqui da Culatra. Depois é que a procissão começou a sair dali da Igreja (Idem).
A construção da Capela inaugura, de facto, um novo ciclo na religiosidade da comunidade da Culatra. Até à sua construção, a Festa da Nossa Senhora dos Navegantes consumava-se com a vinda do Pároco ou do Bispo de Faro que era trazido até à Ilha num batelão. Os culatrenses iam ao encontro do cortejo, como referem iam “buscá-lo” ao Farol, nos seus barcos, a remos ou à vela. Uma vez chegado à Culatra celebrava uma missa campal, junto à antiga escola, a que se seguia a procissão terrestre e a bênção das embarcações no regresso. Os preparativos assumidos pela população centravam-se apenas na limpeza da entrada das casas, abrindo uma cova, ou uma “estrumeira” como designavam, onde depositavam o lixo.
Tirávamos a areia branca do fundo que espalhávamos em frente às casas para que tudo ficasse limpo e para a procissão passar num sítio bonito (Cecília Mendonça, entrevista realizada a 22.06.2018).
Os culatrenses responsabilizavam-se também por embandeirar o percurso da procissão adquirindo, como vimos, papel colorido em Olhão que colavam com farinha e água na ausência de cola. Por essa ocasião pintavam-se as casas, não apenas por uma questão de embelezamento, mas também de purificação.
Esta era a única visita do Pároco durante o ano daí que aproveitava para realizar batizados coletivos tornando a ocasião ainda mais especial para as famílias. O Padre Henrique, que prestou serviço na Paróquia na década de 60, foi uma referência a nível local o que motivou inclusive, em 2011, uma atribuição toponímica. No seu tempo celebraram-se na Ilha 180 batismos, contando que em Faro se contabilizaram apenas 80. Este e outros aspetos de comunhão com a população – quer nas suas deslocações à Ilha quer no apoio prestado em Faro - criou uma proximidade que os paroquianos recordam. Note-se que a toponímia local apenas homenageia culatrenses, sendo, portanto, esta a única exceção.
É com a inauguração da Capela, presidida por D. Francisco Rendeiro, então Bispo do Algarve, que se inicia um novo ritual. Desde logo a presença das imagens de Nossa Senhora dos Navegantes e Sagrado Coração de Jesus oferecidas pelos construtores da Capela às quais se vieram a juntar, mais tarde, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, S. Francisco e Nossa Senhora de Fátima oferecidos por culatrenses. A procissão, que formalmente se institui após a construção da Capela, começa por integrar as cinco imagens nos primeiros anos embora mais tarde, por falta de carregadores, “homens do andor”, passe apenas a sair com a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes e Sagrado Coração de Jesus, tal como ainda hoje sucede.
Tal como já referido por Vítor “Cartucho”, apenas sublinhar que na Ilha se organizou nos anos 60 uma Comissão de Festas, encabeçada pela Cecília Mendonça e João Henrique Rocha que durante algum tempo foi responsável pela organização da Festa. Esta Comissão angariava fundos, sob a forma de dádivas, em Olhão e também na Ilha que permitiam fazer face às despesas de organização. A Comissão acabou por se desvanecer pelo facto de terem retirado sem deixar sucessão, aqueles que foram os seus impulsionadores pelo que, foi por essa ocasião que a organização da Festa foi sendo assumida pelo Clube União Culatrense (CUC) com o apoio de todos os grupos e indivíduos já mencionados.
Em 1983 dá-se uma nova mudança que viria a transformar a Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes e a ancorá-la à sua condição atual. A Ilha da Culatra passa a pertencer à Paróquia de Olhão e desde logo se inicia a renovação da Festa com a adoção da procissão marítima, pela Ria Formosa, ligando a Culatra a Olhão. Esta alteração da pertença religiosa veio refletir e acentuar a progressiva integração da comunidade, na cidade de Olhão, cidade eminentemente piscatória no que contrasta totalmente com a cidade Faro, capital administrativa e fundamentalmente centro de serviços. Com a passagem da jurisdição da Paróquia de Faro para Olhão, a Ilha da Culatra tornou-se um lugar de romaria naquele fim de semana do ano. Ali acorrem familiares, amigos, membros da comunicação social, turistas e veraneantes atraídos pelo “exotismo” do lugar e da Festa.
Documentação gráfica, bem como testemunhos locais, dão conta que a Festa em Honra da Nossa Senhora dos Navegantes era fortemente marcada, na década de 80 do século XX, pela realização de diversos eventos de cariz tradicional - o pau ensebado, jogos tradicionais, corridas de remos, natação - que foram, entretanto, perdendo expressão. Ou seja, a festa profana foi começando a perder parte da sua originalidade.
Entretanto já não se faz o “pau de sebo” (…) o jogo era feito nos mastros dos barcos mas que deixou de se fazer porque os sebo demorava muito tempo a libertar-se da madeira e no dia seguinte à Festa já era preciso ir ao mar (Vítor “Cartucho”, entrevista realizada a 16.10.2018).
Nos anos de 2018 e 2019 verificaram-se algumas tentativas de reabilitar ou retomar essas atividades tradicionais o que não se revelou tarefa bem-sucedida tal como o comentador ou “mestre de cerimónias” dá conta
Há falta de jovens a participar. Este ano se não fossem os miúdos de Faro e Olhão já não havia os jogos tradicionais. Por exemplo, no jogo das moedas apareceu apenas uma criança da Ilha. Assim vão morrendo as tradições. (…) mas a questão é interessante, é que antigamente eu quando via moedas dentro do alguidar eu atirava-me logo. Tinha falta de dinheiro... Hoje os meus filhos e os netos pedem-me 1€ e eu dou 2€, pede-me 5€ eu dou 10€. Não têm a necessidade que eu tinha (idem).
Ainda assim, mantém-se nesta geração que atualmente conduz os destinos da Festa, a tentativa de revitalizar estas tradições que, embora profanas, fazem parte integrante e fundamental da matriz da Festa em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes.
Uma vez apresentada uma sucinta abordagem histórica e social da Culatra destaca-se, em síntese, a seguinte cronologia relativa à Festa da Ilha que tal como é vivida hoje e tem como marco referencial contemporâneo o ano de 1983, porém na memória oral distingue três períodos:
a) Um primeiro, anterior à década de 1950 e à construção da Capela, em que o sacerdote se deslocava de Faro num rebocador através da Ria sendo acompanhado de outras embarcações. A celebração constava de um encontro com a população, uma prelação num local de encontro e a bênção dos barcos de pesca;
b) O segundo inaugura-se com a construção da Capela de Nossa Senhora dos Navegantes em 1955. Com a imagem da Nossa Senhora dos Navegantes, oferta que veio de Faro, inaugura-se a procissão na Ilha pelas principais artérias da Culatra, que é antecedida da celebração da missa e precedida pela bênção das embarcações de pesca;
c) O terceiro momento inaugura-se em 1983 com a passagem da Paróquia da Culatra para a jurisdição de Olhão e onde a romaria marítima se estabelece e a Festa adquire o modelo tal como hoje conhecemos.
Todos estes elementos e a sua dimensão social, espacial e histórica, testemunham a constante produção e reprodução da Festa, atribuindo-lhe uma significância totalmente viva e dinâmica.
Direitos associados :
Tipo
Circunstância
Detentor
De caráter privado no que respeita à devoção pessoal
Os crentes que individualmente praticam a sua devoção
De caráter canónico no que respeita ao culto religioso
De caráter consuetudinário
Responsável pela documentação :
Nome: Carla Almeida Função: Docente na ESGHT-UAlg, Investigadora no Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) Data: 2019/07/30