Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_2018_001
  • Domínio: Práticas sociais, rituais e eventos festivos
  • Categoria: Rituais coletivos
  • Denominação: Festas do Povo de Campo Maior
  • Outras denominações: "Festas das Flores"; "Festas dos Artistas"; "Festas em honra de São João Baptista"; "Festas dos Contrabandistas"
  • Contexto tipológico: As Festas do Povo de Campo Maior são uma manifestação de arte popular pública, sem periodicidade definida, que consiste na mobilização geral da comunidade com vista à decoração das ruas da vila com flores de papel, que resulta na transfiguração da vila de Campo Maior durante os dias das Festas.
  • Contexto social:
    Comunidade(s): Cabeças de rua
    Grupo(s): Associação das Festas do Povo
    Indivíduo(s): Campomaiorenses
  • Contexto territorial:
    Local: Campo Maior
    Concelho: Campo Maior
    Distrito: Portalegre
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente \ Alentejo \ Alto Alentejo
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: Sem periodicidade definida, acontecendo "quando o Povo quer"
    Data(s): 1893; 1894; 1895; 1896; 1897; 1898; 1902; 1904; 1909; 1921; 1922; 1923; 1927; 1928; 1934; 1936; 1937; 1938; 1939; 1941; 1953; 1957; 1964; 1965; 1972; 1982; 1985; 1989; 1995; 1998; 2000; 2004;2011;2015
  • Caracterização síntese:
    As Festas do Povo constituem uma manifestação popular de ampla participação da comunidade de Campo Maior, que se traduz num conjunto de atributos únicos, em si e na sua conjugação: da soberania da decisão da sua realização, porque as festas ”acontecem quando o povo quer”; à sua organização baseada numa complexa simplicidade a partir de cada rua, unidade socio-espacial que imagina, organiza e prepara a festa e de cuja adesão as Festas dependem; ao tempo longo de serões de trabalho em que as mulheres têm uma mobilização preponderante na organização e na manufatura; e, finalmente, à transfiguração completa da vila, da noite para o dia, com base na decoração das ruas do centro histórico e áreas adjacentes com milhões de flores de papel com formas, cores e elaborações muito diversas, criando um espaço cénico que arquiteta e edifica uma rua dentro da rua que projeta a cidade ideal, colorida, em festa, de portas abertas e sem distinções sociais.
  • Caracterização desenvolvida:
    As Festas do Povo de Campo Maior são uma manifestação de arte popular pública, em que a comunidade se celebra demonstrando capacidade empreendedora e fulgor criativo liberto de rituais celebrativos, transfigurando o espaço público que se prolonga para os espaços privados, e almeja estabelecer uma troca de benefício mútuo: bem acolher os visitantes, proporcionando-lhe uma experiência única, de autenticidade e beleza plástica, e receber deles os elogios que fortalecem a autoestima e o sentido de pertença à comunidade, bem como os rendimentos obtidos com os serviços disponibilizados. - Comunidades, grupos e indivíduos envolvidos na sua produção e reprodução As Festas do Povo são levantadas pela comunidade de Campo Maior, que participa ativamente no seu planeamento e realização, envolvendo, em particular, os habitantes das ruas que integram o núcleo urbano histórico e áreas urbanas adjacentes, mas também aqueles que não habitando esse espaço a ele estão ligados por laços familiares e afetivos. - Contexto territorial em que a manifestação ocorre A área de implantação natural das Festas é o centro histórico de Campo Maior. Aliás é aí que a densidade de ruas inscritas para participar nas Festas é tradicionalmente maior, sendo em todas as edições objetivo das comissões organizadoras atingir aí o pleno da ocupação de ruas e praças. Com a expansão da vila para os novos bairros e a deslocalização para aí de famílias mais jovens que antes habitavam a zona histórica, desde logo se estendeu a prática da decoração e enramação a estes novos territórios urbanos, pesem embora as dificuldades acrescidas devidas à diferença de escala e de perfil dos novos arruamentos. Apesar de esta expansão natural ser um processo já consolidado, ainda suscita dúvidas a alguns campomaiorenses e as opiniões divergem consoante se valoriza mais o direito à participação plena nas Festas ou o efeito cénico que provoca no visitante que fica prejudicado pelos ocos na decoração devido à natural dificuldade de obter uma adesão semelhante à que tradicionalmente se verifica no centro histórico. - Diferentes fases em que se estrutura a sua produção e reprodução No início do ano, a Associação das Festas do Povo de Campo Maior (desde 1994) anuncia a intenção da realização das Festas, solicitando à comunidade, na figura dos elementos que assumiram em anteriores edições a função de cabeça de rua, que inscreva as suas ruas nas Festas. Quando a adesão de ruas é entendida suficiente, a Associação anuncia que as Festas vão ser realizadas nesse ano. É então que uma organização, a um tempo complexa e singela, põe em marcha o trabalho de montagem de uma encenação onde cada um sabe o seu papel: As comissões de rua, sob a liderança do(a) cabeça de rua reconhecido(a) pelos seus membros, começam a trabalhar para dar início ao processo de feitura das decorações. Apesar de se tentar manter segredo sobre o tema decorativo a ser trabalhado por cada uma das ruas, como o processo de fornecimento dos materiais se encontra hoje centralizado na Associação de Festas, é mais difícil manter essa prática. Os cabeças de rua que têm a seu cargo o abastecimento de matéria-prima para o fabrico das flores quando vão reservar papel e outros materiais na Associação de Festas, já conseguem ter uma ideia do que os seus colegas/vizinhos vão fazer nas suas ruas, tendo em conta os pedidos que fizeram e a paleta de cores de papel que escolheram. Na noite que antecede o início das Festas, a comunidade de vizinhança de cada uma das ruas procede à enramação, processo que consiste no levantar de paus ao nível do piso térreo, de um e do outro lado das ruas, denominados “colunas”, sobre os quais se constroem arcos rudimentares, também em madeira. Estes sustentam as chamadas “cordas de teto”, extensões de fios às quais se prendem flores e/ou folhagens em papel, criando os “tetos”, e, na maior parte dos casos, as cordas de lado que garantem tensão à estrutura. Nas ruas mais antigas, e também mais estreitas, para os tetos, utilizam-se as “franjas”, papel recortado suspenso em fios seguros às fachadas das casas. Nesta noite, que pode ser considerada a primeira das Festas, a população está toda na rua: ou a ajudar os vizinhos, ou a ver, em primeira mão, como serão as Festas nesse ano. A partir do final da tarde, elementos das comissões de rua começam o trabalho de elevação das estruturas – arcos, postes, candeeiros, cordas, etc. - que servirão de suporte para o manto de flores que, de seguida, serão dispostos na rua. Depois de se construir, este manto é transportado para a rua e deitado sobre as estruturas anteriormente colocadas. Nesta noite é que se revela o espírito artístico e criativo do Povo de Campo Maior, com a exposição do tema da rua – desde a representação dos Descobrimentos, à interpretação da Liberdade de Expressão, exemplos de temas apresentados na última edição. Apesar de os tetos de flores serem a base decorativa que maior presença têm nas Festas, é aos elementos diferenciadores, que se encontram em canteiros e candeeiros espalhados pelas ruas, que é dedicado um grande investimento criativo porque são eles que vão causar maior impacto e admiração pelo seu grau de dificuldade e esmero na execução. Para esta noite de grande trabalho, muitas vezes vêm pessoas "de fora" ajudar: amigos, familiares, forasteiros, todos com muita curiosidade e vontade de participar no trabalho, porque a noite é de grande animação, confirmando o início dos festejos do Povo. No fim das festas, na última noite, o espaço comum é destruído, desmontando-se as estrutruras e queimando-se as flores e demais elementos decorativos. No dia seguinte a vida volta à normalidade. - Práticas, representações, conhecimentos, competências técnicas Tendo uma perícia única para os "trabalhos manuais", as mulheres campomaiorenses, depois de um dia de trabalho, disponibilizam-se para as Festas, desenhando, cortando e montando flores em papel de seda, mas também noutros materais, durante horas a fio. Por vezes, principalmente quando o tempo começa a melhorar, e a estação do ano a mudar, as mulheres juntam-se (em casa umas das outras, ou em garagens) e trabalham em grupo. Apesar das queixas do desinteresse dos mais jovens ou de indisponibilidades dos mais velhos, estas Festas mantêm uma forte presença do sentido de comunidade, sendo uma celebração "do Povo e para o Povo". As crianças também participam nas tarefas manuais mais acessíveis. Nestes serões de trabalho, é muito comum ouvir-se cantar as saias e aparecerem também alguns licores caseiros de produção das participantes que tentam surpreender as companheiras com o ingrediente inesperado que foi utilizado na confeção do seu licor que acompanha alguns "bolinhos para ajudar no trabalho". Em conjunto com as mulheres, nos serões em comunidade, os homens trabalham na construção das estruturas que irão elevar e suportar as flores. Existe uma clara distinção entre os trabalhos que exigem mais robustez física que são normalmente assumidos pelos homens e os que revelam necessidade de maior destreza manual em regra desempenhados por mulheres. Embora o tempo sempre escasseie para que tudo fique pronto a horas, ainda se fazem flores de reserva, de maneira a estar preparado para qualquer eventualidade – como as Festas se realizam no final do Verão, já ocorreram períodos de mau tempo que danificaram as decorações que se torna necessário substituir. Como ritual de abertura das Festas, procede-se a uma coreografia coletiva a que se dá o nome de ‘enramação’, ato de erguer a cenografia urbana que constitui o elemento central das Festas, transfigurando a vila que a partir do dia seguinte vai receber muitos milhares de visitantes. Até tudo estar concluído, permanece o segredo apenas revelado na manhã do primeiro dia das Festas. Durante os cerca de nove dias das Festas, a rua, que é habitualmente espaço de circulação, passa a ser espaço de convívio e de partilha: longas mesas são montadas no espaço da rua, sendo os passantes convidados a tomar parte da refeição ou simplesmente a petiscar e a beber um copo, a participar no cantar e bailar das saias, que se dançam em danças de roda ou se desfrutam a ver as arruadas dos vários grupos que percorrem as ruas engalanadas a cantar de improviso e a tocar. - Modos de organização da comunidade ou grupo A comunidade organiza-se em “comissões de rua”, cada qual composta pelos seus habitantes, os festeiros, que são coordenadas pelos chamados “cabeças de rua”, maioritariamente mulheres, responsáveis pela conceção e concretização do projeto de enramação da respetiva rua. O fabrico das flores de papel é um trabalho maioritariamente feminino, embora se identifiquem e sejam disputados alguns homens artistas a quem é cometido o fabrico das decorações mais elaboradas. Sob a liderança de um ou mais cabeças de rua, é definido quem participará na decoração da rua. Os residentes (e não residentes) na rua manifestam a sua disponibilidade para participar nos trabalhos. Faz-se o projeto, que implica a conceção dos elementos que integram a decoração e do tema cromático, de iniciativa ou com a participação do(s) cabeça(s) de rua. Acertam-se questões logísticas, e definem-se características e quantidades de materiais necessários, local para realização dos trabalhos e armazenamento dos materiais. É a Associação das Festas do Povo de Campo Maior que, desde as últimas edições, fornece, a cada comissão de rua, o papel com as características pedidas, nomeadamente, tipo de papel, quantidade, cor e corte específico conforme o molde escolhido (hoje o trabalho de corte, é realizado por uma máquina criada para o efeito, disponibilizada por um mecenas). A cada comissão de rua cabe depois a arte de construir todos os elementos decorativos. A confeção das flores, folhagens e demais elementos decorativos em papel e a construção das armações que hão de suportar todos estes elementos desenrolam-se ao longo de vários meses de trabalho (à volta de nove), normalmente à noite, na casa ou armazém de algum elemento, onde o chamado cabeça de rua dirige os trabalhos. - Outras denominações atribuídas à manifestação quanto aos contextos (sociais, históricos, ou outros) da sua produção Festas em honra de São João Baptista, Festas das Flores, Festas dos Artistas, Festas dos Contrabandistas, Festas do Povo, muitos nomes dados à mesma Festa, ao longo dos anos, que assinalaram os tempos históricos que as Festas já conheceram, que traduzem mitos das origens com referências lendárias a intervenções do Santo, ou que elegem os protagonistas que foram associados à realização das Festas.
  • Manifestações associadas:
    Jardim de Papel Nos anos em que não há Festa, a Associação das Festas do Povo e a Câmara Municipal organizam uma pequena réplica das suas típicas Festas no Jardim Municipal. A ideia que preside a esta manifestação é manter e mostrar o espírito da Festa a quem visita a vila. Apesar do esforço de produção de flores e outros elementos decorativos não ter a mesma expressão das Festas por se tratar de uma escala bem mais reduzida, existem opiniões divergentes quanto à oportunidade da realização deste Jardim de Papel. Há quem defenda que o ritmo anual desta manifestação não é viável e que é preciso dar tempo para voltar ao trabalho de pôr as festas de pé. Invoca-se a saudade como o barómetro da vontade de voltar a realizar as Festas que está associada a um processo de ‘esquecimento coletivo’ das marcas do esforço e contrariedades que a edição anterior das Festas deixou nas vidas individuais e da comunidade. Saias Às vezes designadas como danças, outras vezes como quadras populares, dança cantada, canção dançada, a poesia popular e a coreografia são no entanto expressões indissociáveis refletidas na designação composta associada ao nome ‘cantar e bailar’ as saias. “As saias já foram uma forma de manifestação de cultura popular em grande parte das povoações do Alto Alentejo, principalmente no distrito de Portalegre e que, nos nossos dias, só são cantadas e dançadas com alguma regularidade no concelho de Campo Maior, têm aqui subsistido devido ao grande impulso das Festas do Povo. Se estas desaparecessem, desapareceria também o ‘cantar e bailar das saias’?” (Galego, 2006) A origem documentada da tradição de cantar e bailar as saias situa-se no séc. XVIII, com acompanhamento rítmico de instrumentos de percussão, adufes, tambores e pandeiros. Já no início do séc. XX estes instrumentos foram progressivamente substituídos pelas pandeiretas e castanholas. Há quem veja nesta evolução uma influência marcadamente espanhola. O cantar e bailar das saias em Campo Maior acompanham as Festas do Povo, desde a sua preparação aos dias de festa, não só permanece viva na tradição festiva desta comunidade como é um dos seus traços mais representativos. Os momentos principais das saias são o baile em que a dança vai seguindo o ritmo da cantiga alternando dança de roda e dança com par: o cantador ou cantadeira lança a quadra cantando e repetindo os dois primeiros versos. O coro canta e repete o terceiro e quarto versos. Depois faz-se o percurso inverso também chamado descante ou remate: terceiro e quarto verso e repete, primeiro e segundo sem repetir. Quando se decide que o baile acaba, o rancho de cantores, tocadores e bailadores sai em arruada a percorrer as ruas da vila com o acompanhamento sonoro das percussões. Devoção a S. João Baptista Segundo a lenda, S. João Baptista salvou o povo campomaiorense de muitas desgraças. O primeiro "registo" da obra de São João foi em 1521, quando a região raiana – que hoje em dia se conhece como Campo Maior – foi atacada pela peste, o que fez com que a sua população fugisse para uma região afastada. Conta-se que um lavrador tinha uma pequena horta perto da vila vazia e que lá ia regularmente. Reza a lenda, então, que numa das suas visitas, recebeu uma aparição do S. João dizendo-lhe que a vila estava fora de perigo e que a população podia voltar. Depois do regresso dos campomaiorenses à sua terra, foi construída uma igreja, em homenagem ao Santo que se tornou padroeiro da vila. Dois séculos passados, a vila de Campo Maior viu-se de novo ameaçada, quando em 1712 o Castelo da vila raiana foi cercado pelas tropas espanholas. Resultado de um conflito entre os dois reinos ibéricos, o exército castelhano sitiou a população campomaiorense durante um mês, cortando os acessos a mantimentos. Nesse mesmo mês houve muito mau tempo, do que resultou a inundação das trincheiras castelhanas e, consequentemente, na sua retirada. Apesar disso, a população campomaiorense atribuiu o acontecimento a mais uma obra milagrosa de S. João Baptista, o que fortaleceu o culto ao Santo. Vinte anos mais tarde, nova tragédia assolou a vila. Numa noite de trovoada, um raio certeiro atingiu o paiol que se localizava no castelo, que fez com que este explodisse, e que os seus destroços fossem projetados destruindo grande parte da vila. Desta vez foi o Rei D. João V que acudiu à reedificação da vila e do seu castelo. Mais uma vez, reza a lenda que, além da necessidade de recuperar aquele bastião defensivo importante num troço vulnerável de raia seca bastante permeável ao avanço dos exércitos inimigos, teve importância decisiva o facto de a vila ter como santo padroeiro o seu homónimo S. João. Com o apoio do Rei, a vila foi reconstruída e repovoada em 10 anos. D. João V foi também um dos grandes impulsionadores da criação de uma celebração em nome do Santo padroeiro. Até ao século XVIII o brasão de Campo Maior representava S. João Baptista em criança, e era por isso referenciado pelo seu diminutivo, São Joãozinho. As Festas do Povo de Campo Maior começaram por ser uma celebração religiosa, em homenagem a São João Baptista, intituladas “Festas em Honra de São João Baptista”. Apesar de já não ter esse nome desde 1921, a presença do santo padroeiro persiste nas Festas, com a sua imagem a ser levada numa pequena procissão que percorre as ruas da vila.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: Aos serões, a população campomaiorense começa a preparação das Festas, nas próprias casas, ou em garagens, onde trabalham em conjunto. No último caso, há uma visível distinção das tarefas: as mulheres, com as crianças, trabalham na feitura das flores, enquanto os homens se dedicam à construção das estruturas para a enramação das ruas. O trabalho de elaboração de flores de papel é feito maioritariamente por mulheres que o ensinam às (suas) crianças. É, portanto, uma transmissão de conhecimentos intergeracional, num ambiente informal e comunitário. Num contexto de maior formalização, o Agrupamento de Escolas tem desenvolvido, nos últimos anos, ações de sensibilização dos alunos, no âmbito das AEC - Actividade de Enriquecimento Curricular.
    Data: 2017/03/08
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Cabeças de rua; participantes na montagem e na construçao das Festas; Agrupamento de Escolas de Campo Maior; Santa Casa da Misericordia; Casa do Povo de Campo Maior
  • Origem / Historial:
    Existem características das Festas que desde o início se afirmaram e que se vieram a confirmar com a passagem dos anos. Uma delas é a sua irregularidade que a distancia de uma dimensão celebrativa de uma efeméride ou da marcação do ciclo agrário, o que implicaria a sua realização anual. Outra é a constatação do facto de a decisão de realização ou não das festas depender muito mais das condições sócio-económicas que se viviam localmente em cada momento, fortemente influenciadas pela qualidade do ano agrícola e das colheitas, do que de acontecimentos político-económicos com impacto a nível nacional. Para isso muito contribuía o isolamento do interior do país, com maus acessos, dificuldade nas comunicações, e a consciência de que poucos benefícios as alterações políticas trariam aos habitantes de Campo Maior. Outra é a sua dimensão de grupo social que lhe está associado: Festas dos Artistas chegou a chamar-se (nome que ainda hoje se utiliza) e até Festa dos Contrabandistas, embora este último nome aplicado às Festas não seja consensual. É uma festa de cariz eminentemente urbano não só na sua expressão plástica mas nos seus protagonistas, os habitantes da vila e os que aí desenvolviam as suas atividades oficinais e comerciais. Estas invariâncias ao longo de um período de mais de um século não contradizem as muitas alterações que as Festas foram registando ao longo das várias edições cuja cronologia se apresenta a seguir: 1893 Festas em honra de São João Baptista 1894 Festas em honra de São João Baptista 1895 Festas em honra de São João Baptista 1896 Festas em honra de São João Baptista 1897 Festas em honra de São João Baptista 1898 Festas em honra de São João Baptista 1902 Festas em honra de São João Baptista 1904 Festas em honra de São João Baptista 1909 Festas em honra de São João Baptista 1921 Festas em honra de São João Baptista 1922 Festas do Povo 1923 Festas do Povo 1927 Festas do Povo 1928 Festas do Povo 1934 Festas do Povo 1936 Festas do Povo 1937 Festas do Povo 1938 Festas do Povo 1941 Festas do Povo 1944 Festas do Povo 1952 Festas do Povo 1953 Festas do Povo 1957 Festas do Povo 1964 Festas do Povo 1965 Festas do Povo 1972 Festas do Povo 1982 Festas do Povo 1985 Festas do Povo 1989 Festas do Povo 1995 Festas do Povo 1998 Festas do Povo 2000 Festas do Povo 2004 Festas do Povo 2011 Festas do Povo 2015 Festas do Povo A justificação para a primeira designação das Festas ‘em honra de São João Baptista’ tem origem em algumas efabulações associadas a factos históricos que ajudam a construir um ‘mito das origens’ das Festas: - O culto de S. João Baptista, como padroeiro de Campo Maior remonta, provavelmente, ao início do séc. XVI. No reinado de D. João III ocorreu uma peste que teve efeitos particularmente nefastos e que muito afetou Campo Maior, o que obrigou os seus habitantes a abandonarem a vila e a instalarem-se nos arrabaldes. Estava-se em plena expansão da Contra-Reforma, o Rei Piedoso como ficou conhecido, autorizou a instalação da Inquisição em Portugal. O fim da peste foi atribuído à intervenção do Santo em honra de quem se construiu uma igreja. A atual é do séc. XVIII mas existem vestígios de uma anterior. S. João Baptista tornou-se o padroeiro da vila. - As festas que se faziam pelo menos desde o início do séc. XVIII até meados do séc. XIX, tinham um caráter acentuadamente religioso e comemorativo. As festas em honra de S. João Baptista, que integravam missa solene e procissão, coincidiam com o dia do feriado municipal a 28 de Outubro, dia de S. Simão e data do levantamento do cerco a que Campo Maior foi sujeita pelo exército castelhano em 1712 no contexto da Guerra da Sucessão de Espanha. O levantamento do cerco é mais uma vez atribuído à intervenção do Santo, cuja igreja ficou então gravemente danificada. O Prof. Francisco Pereira Galego defende que, segundo todos os documentos conhecidos, 1893 foi o ano do nascimento das Festas em Honra de São João Baptista, promovidas em Campo Maior pelo grupo social dos “artistas”, mas levadas a efeito com a colaboração e apoio de toda a população. Cita o jornal Diário de Elvas de 3 de Outubro de 1893: “ Um grupo de artistas briosos e incansáveis em engrandecer a terra da sua naturalidade, promove nos dias 7,8,9,e 10 do corrente, grandes festejos na vila de Campo Maior”. Este é o entendimento hoje consensual relativo às origens da festa. Viviam-se tempos de um nacionalismo exacerbado que decorria da realização em 1885 da Conferência de Berlim convocada para regular a ocupação do continente africano pelas potências coloniais, em que Portugal apresentou o mapa cor de rosa e a Inglaterra respondeu com o Ultimatum de 1890. Campo Maior vivia um período de algum desafogo económico devido a bons anos agrícolas, que se refletiam na prosperidade de outras atividades económicas, em contraciclo com a grave crise económica e financeira que o país vivia. “O tempo continua favorável para a agricultura, como não há memória” (Correio Elvense, 16 de Março de 1893). Não é certamente indiferente a isso terem-se realizado as festas todos os anos durante um período de seis anos (1893-1898). Campo Maior tinha algumas características que a distinguiam do resto do Alto Alentejo: um pequeno campesinato que se devia a uma terra ainda muito dividida e sem grandes senhorios, uma grande extensão de raia seca (sem grandes linhas de água) favorável à prosperidade da atividade do contrabando: os contrabandistas eram então socialmente muito considerados, pelo muito que contribuíam para a prosperidade da vila, que leva em particular à criação de um núcleo próspero de comerciantes que passaram a ser grandes terratenentes no séc. XX. E em abono desta interpretação distingue os eventos festivos pelo envolvimento das diferentes classes sócio-profissionais: - os trabalhadores rurais tinham o seu evento anual que era a Feira anual de 15 a 17 de Agosto, onde se faziam as contratações para os trabalhos do campo no ano agrícola que se avizinhava. - os contrabandistas: promoviam as celebrações ao S. Joãozinho a 23 e 24 de Junho. - os artistas (artífices que desenvolviam artes manuais e mecânicas): começaram a organizar nos finais do séc. XIX a Festa de S. João Baptista. A atração de forasteiros está presente desde as primeiras edições como se refere num anúncio no mesmo ano de 1893 publicado pela empresa de transporte Mendes e Cª: “No intuito de auxiliarmos tão louvável empreendimento estabeleceremos para lá (Campo Maior) nesses dias carreiras de ‘char-à-bancs’, ao preço de 500 réis ida e volta, partindo de Elvas às 8 e meia da manhã com regresso às 11 horas da noite.” Nesse ano, o programa de festas incluía: iluminações à veneziana (com recurso a balões, harmónios, e outras luminárias com velas no interior), alvoradas, concertos, arruadas pelas filarmónicas, missa solene e procissão com imagem de S. João Baptista, arraiais com danças populares e descantes, corrida de touros à vara larga. Na viragem do século XIX para o séc. XX a progressiva concentração da propriedade numa minoria terratenente contribuiu para a formação de uma grande massa de assalariados rurais, As crises de desemprego, provocadas por maus anos agrícolas, pragas e fomes impossibilitaram que se organizassem as festas anualmente, já que elas eram levadas a cabo a expensas da população e por isso só aconteciam quando havia disposição e capacidade para tal, o que levou a que ou não se realizassem em períodos mais ou menos dilatados ou que mesmo quando ocorressem tivessem uma expressão bem mais modesta. O republicanismo encontrou adesão nas classes médias, pequenos e médios proprietários agrícolas, comerciantes, artistas, que eram as classes que faziam as Festas. As Festas não se realizariam por um período de 11 anos (1910 a 1920), o que constituiu a maior interrupção registada das Festas. Os anos 20 trouxeram algumas condições favoráveis i)ao renascimento de eventos e tradições (as festas realizam se por cinco vezes na década de 20); a uma certa reanimação social e económica com criação de emprego e dinamização de algumas atividades económicas; à dinamização a nível cultural e recreativo, com base na emergência de uma geração de jovens formada no sistema de ensino reformado pela 1ª República, com capacidade de intervenção na vida local o que se traduziu por exemplo na criação de 2 jornais locais. É nesta década que as festas são rebatizadas. A referência religiosa às Festas (em honra de S. João Baptista) havia sido abandonada nos programas das edições depois da implantação da 1ª República. É natural pensar que o anticlericalismo dominante na altura tenha tido a sua influência. Outros nomes foram sendo dados à Festas, embora nenhum tenha sido o seu nome oficial: ‘Festas dos Artistas’ expressão ainda hoje utilizada e que distingue os seus protagonistas, ‘Festas dos Contrabandistas’ - para esta última Francisco Galego (Galego, 2004) encontra justificação numa leitura descuidada de um texto de Lourenço Cayolla, que data de 1929. Em 1927 passam a ser designadas por Festas do Povo. No texto de abertura do Programa das Festas desse ano, de autoria de Tello da Gama, Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal, escreve-se que “poucas festas se poderão apelidar com mais propriedade de ‘Festas do Povo’ do que as festividade levadas a efeito em Campo Maior (…) em honra de S. João Baptista, o padroeiro da vila.” E este acerto na denominação de ‘Festas do Povo’ confirma-se, como se escreve 45 anos mais tarde, em 1972, no jornal Linhas de Elvas que então publicava um artigo de João Falcato: “Não há festas que tenham um nome mais perfeito, de mais verdade e a propósito que as da vila de Campo Maior. São as Festas de Campo Maior. Exactamente chamadas Festas do Povo de Campo Maior. Em que consistem, pois e em que se diferenciam de todas as outras que se celebram pelo país fora? Não há orago para venerar, não há datas a honrar especialmente, nem sequer a obrigação de um ciclo para estas manifestações. Acontece apenas isto: o Povo de Campo Maior concorda democraticamente na oportunidade e desejo de ter uns dias de festejos.” 1927 foi efetivamente o ano das festas grandes: só 25 anos depois as festas voltariam a despertar semelhante entusiasmo. No início da década de 20 verificaram-se problemas económicos e sociais graves que originaram problemas de abastecimento, o que veio alterar a imagem positiva para a comunidade da atividade do contrabando, que deixou de aparecer associado às festas. Na década seguinte a comissão organizadora das festas integrava já elementos da Legião Portuguesa e a procissão volta a integrar o programa das Festas. Nas edições de 1941 e 1944 faz-se referência à procissão com os padroeiros das duas freguesias urbanas, de Nª Sª da Expectação e S. João Baptista. As edições da década de 50 foram de renovação das festas, com a introdução de novos materiais na decoração como resposta a carências dos tradicionais, como a utilização do papel de jornal para fabrico dos elementos decorativos; com o destaque que assumiu nas Festas o cantar e bailar das saias nos bailes populares e nas arruadas; com a adesão dos novos bairros de expansão da vila que começaram a aderir às Festas levando a que o número de ruas que aderia à participação nas Festas que antes dificilmente chegava aos 50, rapidamente passou para a centena. As Festas ganhavam nomeada e começaram a ser planeadas de forma a atrair cada vez mais forasteiros. O êxodo de população, à procura de trabalho e sustento, designadamente para a cintura industrial de Lisboa, o que também originou de regresso periódico destes naturais de Campo Maior que vinham à terra pelas Festas. Uma expressão dessa expansão da visibilidade das Festas é o facto de a publicidade que sempre integrava os Programas deixar de anunciar unicamente as empresas locais para passar a incluir empresas de dimensão nacional. A edição de 1957 é assinalada como de transformação importante das Festas no sentido de perder definitivamente o seu caráter eminentemente local para ser um evento de repercussão nacional e transfronteiriça. O financiamento das festas já não era suportado pela tradicional recolha de fundos em peditórios à população. A institucionalização da festa, o apoio do município e a adoção de estratégias de angariação de fundos marcam esta transformação. No que se refere ao programa de espetáculos, por exemplo, nesta edição deixaram de se fazer touradas à vara larga com participação popular para se tornarem espetáculos tauromáquicos profissionais com cavaleiros, toureiros e forcados. Enquanto se viviam tempos conturbados a nível nacional com eleições presidenciais de 1958 (em que Humberto Delgado foi candidato e o regime acusado de fraude eleitoral), em que tiveram início as lutas de libertação nas ex-colónias, internamente denominada guerra do ultramar, que levou à condenação de Portugal na ONU, mais uma vez em contraciclo, Campo Maior vivia algum alívio sobre a pressão do desemprego devido à construção da barragem do Caia, inaugurada em 1967, que trouxe procura de mão-de-obra local e alguma melhoria salarial. As Festas de 1964 foram as últimas a realizar-se com a duração de quatro dias. Fez-se então uma forte aposta na organização de grandes espetáculos com artistas nacionais e espanhóis para atrair uma maior procura do lado de lá da fronteira. Com o mesmo intuito foi dedicado a Espanha o domingo, dia maior das Festas, em que esteve presente uma comitiva de autoridades espanholas e meios de comunicação. Em 1965 o programa das festas foi editado em três línguas (PT/FR/ENG), os anúncios publicitários eram ainda mais variados, o que diz bem do aumento de notoriedade das Festas. As touradas desapareceram do programa das Festas porque eram ruinosas para o orçamento. A TVE faz uma cobertura de filmagens das Festas. A CP cria um serviço especial de venda de bilhetes com tarifa reduzida para ida e volta às Festas de Campo Maior. Com as duas edições em anos seguidos, em 1964 e 1965, verificou-se uma grande projeção das Festas no exterior e uma grande dinamização interna, o que fez aumentar a consciência da necessidade de um maior envolvimento municipal no apoio à sua organização e financiamento. Nos seis anos seguintes não houve condições e vontade para a realização das Festas e uma explicação poderá ser a guerra colonial que deixou de luto muitas famílias. A organização das Festas era assumida por comissões ad hoc por vezes ligadas a instituições como a Casa do Povo ou a Santa Casa da Misericórdia local. As de 1964 e 65 foram organizadas pelo Colégio Diocesano de S. João, constituído em comissão, para angariar fundos para o Colégio. O relativo insucesso financeiro da operação no primeiro ano levou a que a duração das festas passasse de 4 para 8 dias, o que nunca mais se perdeu. Em 1972 verificou-se finalmente um alinhamento dos ciclos e ambientes sociais: a nível nacional já se sentia o fim do regime político e em Campo Maior as Festas foram fustigadas por um violento temporal, com chuva e vento forte que se não impediu que se recuperassem os estragos e se voltassem a erguer as ornamentações. A realização das Festas deste ano foi muito devedora do entusiasmo e apoio da Câmara Municipal, e da consciência do seu Presidente do valor simbólico das Festas no contexto político que se vivia. A seguir a 1972, durante nove anos não voltaram a acontecer as Festas. As Festas chegaram a ser marcadas para o ano de 1974, ano da Revolução de Abril, mas tensões sociais e político partidárias vividas no país e no seio da comunidade nos anos seguintes levaram a que as primeiras Festas realizadas após o 25 de Abril fossem só em 1982. Trouxeram algumas novidades no Programa: dias temáticos, procissão em honra dos Padroeiros, procissão em honra de Santa Beatriz da Silva, Encontro de Cantadores de Saias, presença do Presidente da República, à altura o general Ramalho Eanes. A explosão do fenómeno turístico e a procura de ofertas distintas e autênticas, associada à melhoria das acessibilidades físicas e de comunicação, bem como à qualificação dos serviços, estão na origem do grande aumento de fluxos turísticos para Campo Maior que se traduziram no desenvolvimento da economia local Em 1994 foi criada a Associação das Festas do Povo de Campo Maior como instituição centralizadora de recursos e de financiamentos que altera em definitivo a estrutura organizativa das Festas. E é no seu website que se pode ler: “Em apenas 15 anos, entre 1989 e 2004, o número de visitantes das Festas do Povo duplicou. O sucesso de todas as edições deve-se à surpreendente diversidade da decoração das ruas, de beleza inigualável. A arte das flores de papel e as Festas do Povo de Campo Maior são um Património cultural único no Mundo. As últimas Festas do Povo tiveram lugar em 2011 e trouxeram a Campo Maior cerca de 1 milhão de pessoas, vindas de todo o país, da vizinha Espanha, da comunidade emigrante e até mesmo de outros países europeus. Foram decoradas 104 ruas com flores de papel, o equivalente a uma distância de aproximadamente 20 km. No total, foram utilizadas perto de 30 toneladas materiais e o trabalho voluntário de cerca de 7500 pessoas, números que demonstram a vitalidade e importância que este evento tem para as gentes de Campo Maior.”
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direito de AutorA Associação das Festas do Povo de Campo Maior, para a celebração das Festas de 2011, criou a marca nacional registada "Festas do Povo de Campo Maior 2011", na categoria de EVENTOS E ACTIVIDADES CULTURAIS A REALIZAR PELA ASSOCIAÇÃO. Associação das Festas do Povo de Campo Maior
    Consuetudinário localA população campomaiorense é a única que produz as flores e organiza as Festas - que não têm periodicidade definida - por sua única vontade e de forma voluntária. População campomaiorense
  • Responsável pela documentação :
    Nome: José Portugal
    Função: Coordenação Técnica da Candidatura
    Data: 2017/03/17
    Curriculum Vitae
    Declaração de compromisso
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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