Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_2020_002
  • Domínio: Expressões artísticas e manifestações de carácter performativo
  • Categoria: Manifestações teatrais e performativas
  • Denominação: Danças, Bailinhos e Comédias do Carnaval da Ilha Terceira
  • Outras denominações: Danças de Entrudo, Danças de Carnaval, "Bailhinhos"
  • Contexto tipológico: Conjunto de exibições de teatro e teatro musicado, de natureza cómica ou trágica, exibidas de forma itinerante na Ilha Terceira anualmente nos quatro dias gordos de Carnaval.
  • Contexto social:
    Comunidade(s): Habitantes da Ilha Terceira
  • Contexto territorial:
    Local: Ilha Terceira
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Região Autónoma dos Açores \ Região Autónoma dos Açores
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: O circuito de Danças, Bailinhos e Comédias realiza-se anualmente, por altura do Carnaval.
    Data(s): Quatro dias gordos de Carnaval, que antecedem a quarta-feira de cinzas.
  • Caracterização síntese:
    As Danças, Bailinhos e Comédias do Carnaval da Terceira são uma manifestação singular, específica da Ilha Terceira, nos Açores, que se caracteriza pela organização de vários grupos de pessoas para encenar espetáculos – compreendendo dimensões de teatro, de música e de dança – que depois exibirão de forma itinerante pelas salas de espetáculos da ilha que virão a acolher as apresentações, durante os chamados quatro dias gordos de Carnaval, que antecedem a quarta-feira de cinzas. Envolve a participação direta de mais de 1.250 pessoas, contabilizando apenas as que integram o espetáculo em palco, que durante o circuito fazem mais de 1.000 atuações, correspondentes a 2.200 minutos de espetáculo, nos quatro dias em que este decorre.
  • Caracterização desenvolvida:
    Podemos distinguir nas festividades de Carnaval da Ilha Terceira o mesmo conjunto de modelos que encontramos em praticamente todo o território português: as festas, bailes e folguedos; os desfiles escolares de crianças fantasiadas, expressão da cultura urbana e pasticho dos desfiles televisados, de outros lugares; e, até há pouco tempo, também os assaltos carnavalescos, tradição esta entretanto desaparecida. Um modelo, porém, se impõe sobremaneira aos demais, pela expressividade dos recursos humanos e materiais envolvidos, pela dimensão e alcance da celebração, e pela singularidade do seu caráter: o circuito de Danças, Bailinhos e Comédias do Carnaval da Ilha Terceira. Constitui uma expressão de natureza distinta das demais tradições carnavalescas, não se inserindo na tradição ancestral ibérica e europeia de celebração da transição da estação para o ciclo produtivo da primavera através da personificação – pela máscara e pelo traje – de espíritos relacionados com a fertilidade; nem nos modelos de matriz mais urbana, baseados nos cortejos. Antes se insere numa tradição dramática complexa e adaptada às circunstâncias e ao momento do Carnaval.

    NATUREZA E FORMAS DA MANIFESTAÇÃO

    As Danças, Bailinhos e Comédias de Carnaval consistem numa representação teatral, usualmente versificada em redondilha maior rimada. Nas Danças e Bailinhos a representação é sempre complementada por música instrumental, por música vocal – a solo e em coro – e por uma coreografia simples, de inspiração marcial, dimensão que está quase completamente ausente nas Comédias. As Danças e Bailinhos seguem frequentemente uma estrutura formal tida como tradicional: marcha de entrada instrumental; saudação ao público, cantada; apresentação do assunto; cenas da representação, intercaladas por música instrumental e vocal; despedida, também cantada; e marcha final instrumental.

    Dependendo da temática, da estrutura e dos participantes, o espetáculo pode assumir diversas formas: Dança de Espada, Dança de Pandeiro, Bailinho ou Comédia.

    À Dança de Espada corresponde um texto dramático, que incide sobre episódios históricos ou hagiográficos, temas da atualidade e da vida quotidiana, sempre num tom trágico, e com uma forte componente moral. É o mais formal dos espetáculos seguindo quase sempre, de forma rígida, a estrutura tradicional. Há também uma maior separação formal nas funções dos elementos: existe o conjunto de atores, o de dançarinos, o dos músicos de instrumentos de sopro, que tocam a marcha no início e no fim do espetáculo, e os restantes músicos que tocam os momentos intercalares da atuação, cada um deles desempenhando as suas funções em exclusividade. O conjunto é liderado pela figura do “puxador”, que conduz a exibição empunhando uma espada, com a qual executa complexas habilidades em alguns dos seus momentos. É um espetáculo mais elaborado e formal, pelo que se torna dispendioso levá-lo à cena, o que se reflete no número de grupos que optam por este formato, que é sempre o menos representado no circuito do Carnaval. No passado, eram representações de longa duração, que podia facilmente superar uma hora. Hoje em dia terão uma duração semelhante à dos Bailinhos e Danças de Pandeiro.

    As Danças de Pandeiro e os Bailinhos usam textos cómicos, abordando temas do quotidiano das comunidades e proporcionando uma forma de fazer crítica política ou social: neles são retratados em tom satírico os vícios e pecadilhos dos membros da comunidade, dos políticos e das instituições e os assuntos da atualidade. É também recorrente o uso de estereótipos e de personagens-tipo: o bêbedo, o tolo, o agente policial, o político, o padre e o sacristão, as beatas, as mexeriqueiras, o casal de idosos desavindos, o homossexual exuberante e muitos outros. O travestismo é habitual, não apenas por herança dos tempos em que as mulheres não participavam das representações, mas também como dispositivo cómico. Integra a Dança de Pandeiro obrigatoriamente um “puxador”, que manuseia com mestria e agilidade uma pandeireta. Os Bailinhos podem ter ou não “puxador” mas, a tê-lo, o seu artefacto de condução será uma varinha com fitas, semelhante a uma batuta decorada. A duração dos Bailinhos e das Danças de Pandeiro situa-se por norma entre os 35 e os 45 minutos.

    As Comédias são representações teatrais do género cómico, sem apoio de músicos ou dançarinos, apesar de poder ocorrer que os atores executem músicas e danças simples como parte do enredo. São normalmente grupos mais pequenos que os dos outros formatos de espetáculo, e é comum que exista uma maior relação de proximidade entre os seus elementos, que tendem a ser os mesmos de ano para ano. De todos os formatos, excetuando as Danças de Espada, será aquele em que há menor número de grupos a percorrer o circuito do Carnaval. É o tipo de espetáculo com menor duração, que normalmente se situa entre os 15 e os 20 minutos.

    O texto dramático é conhecido como “enredo” ou “assunto”. Os autores destes são usualmente exteriores ao grupo, podendo mesmo escrever textos para vários grupos. Alguns autores têm uma produção que se espraia durante vários anos e décadas e que abrange centenas de enredos, sendo especialmente reputados pelos participantes no Carnaval e pelo público, mas há novos autores a surgir todos os anos. Uma das formas de enredo, minoritária, é a utilização de pequenos episódios anedóticos isolados e não sequenciais. Trata-se de uma inovação em relação ao formato tradicional da narrativa, e muitas vezes é apontada de forma depreciativa.

    As letras das canções, conhecidas como “cantigas”, podem ou não ser escritas pelo autor do enredo. As cantigas são usadas no momento da saudação ao público e apresentação do assunto, como transição entre as cenas do enredo e no final, para a despedida.

    A música – das cantigas e das marchas – tende a não ser original, recorrendo-se sobretudo a arranjos de êxitos musicais, adaptados à necessidade do espetáculo. Além das músicas que integram as cantigas, existem também as marchas de abertura e final do espetáculo.

    As coreografias do Carnaval terceirense são essencialmente de inspiração marcial, denunciando uma das origens do atual modelo de espetáculo: as danças e marchas militares. Este é um elemento que tem perdido importância relativa: as danças do passado (até ao séc. XIX) eram essencialmente coreográficas, mas à medida que começam a ser introduzidos enredos, que virão a tornar-se a parte central da dança, a coreografia passou a ser um elemento acessório e descurado das danças e bailinhos. Esta subalternização da coreografia agravou-se nos últimos anos com a complexificação da execução musical, sobretudo nos casos, cada vez mais dominantes, em que os dançarinos são simultaneamente músicos. Atualmente é referido pela larga maioria dos grupos como o elemento menos trabalhado, e preparado com menos antecedência. Se o esquema tradicional exigia duas alas de dançarinos, paralelas entre si e perpendiculares ao público, é já comum que as alas possam ser duplas ou triplas, e que exista mesmo um conjunto de músicos e dançarinos dispostos ao fundo do palco, paralelos à assistência. Independentemente do número e disposição dos dançarinos, um costume permanece: quando decorre a representação teatral, as alas ficam sempre viradas para dentro, fitando a ação.

    O guarda-roupa e os acessórios usados pelos elementos do grupo são uma das matérias a que os participantes do Carnaval consagram maior atenção e aquela em que é feito um maior investimento monetário. O traje tido como tradicional é composto de fatos de inspiração militar, com calças debruadas de lado, uma camisa folgada de tecidos coloridos e brilhantes e com um chapéu de abas orlado com arminhos. As mulheres ostentam normalmente uma indumentária que segue o mesmo desenho e esquema cromático dos elementos masculinos, adaptados a uma saia e blusa ou a um vestido. Nos últimos anos tem-se verificado uma crescente preocupação de que a indumentária contenha elementos alusivos ao assunto. Por vezes tem sido mesmo preterido o traje convencional, substituído por fantasias relacionadas com o assunto.

    Os cenários e adereços da representação teatral estão normalmente reduzidos a uma expressão mínima, procurando-se que seja possível transportá-los com facilidade de salão em salão. São usados como apoio visual da narrativa, com a qual estão diretamente relacionados, e muitas vezes estão concebidos de maneira a que, por si só, introduzam um elemento de ridículo e comédia nos espetáculos dessa natureza.

    ELEMENTOS

    Nos casos em que existe uma divisão funcional dos intervenientes no espetáculo – correspondente ao esquema mais tradicional da apresentação – o conjunto é conduzido por uma figura designada “puxador”. Cabe ao “puxador”, também conhecido por “mestre”, marcar o ritmo do espetáculo. É, normalmente, o único elemento do grupo com momentos de interpretação vocal a solo e a sua indumentária é por norma mais garrida e rica que a dos restantes. É também o único elemento que se movimenta livremente pelo palco, entre as alas de dançarinos. Os “puxadores” podem empreender movimentos bastante elaborados e complexos, demonstrando grande agilidade, mestria e virtuosismo utilizando a espada ou o pandeiro, o mesmo não sucedendo com os “puxadores” de varinha.

    Os dançarinos são os elementos que executam as coreografias marciais simples e, por norma, tocam simultaneamente os instrumentos musicais. Normalmente dispõem-se em duas alas, cada uma com um número variável de elementos, mas que a tradição situa nos oito.

    Os músicos normalmente coincidem com os dançarinos do espetáculo, mas em alguns casos situam-se fora de cena – caso de todas as danças de espada e de alguns bailinhos – sem traje alusivo ou com um traje extremamente simples e discreto. Uma das preocupações principais dos grupos é conseguir reunir o conjunto de instrumentistas que lhes permita atingir uma sonoridade equilibrada. São mais comuns os instrumentos de corda simples, como o violão, o violino, o bandolim e o cavaquinho; os instrumentos de sopro que normalmente encontramos nas bandas filarmónicas, como o clarinete, o trompete, o saxofone e a flauta; os instrumentos de percussão mais comuns, como castanholas, ferrinhos e reco-reco; e os acordeões. Porém, nos últimos anos têm sido introduzidos instrumentos menos comuns, como banjo, contrabaixo, tuba, trombone, bombardino, melódica, tarola e prato ou cajón, dotando o espetáculo das sonoridades contemporâneas que os meios de comunicação de massas divulgam. Existe uma ligação próxima entre o universo das bandas filarmónicas e o Carnaval terceirense: são originários das bandas um número significativo dos músicos que participam nos grupos de Carnaval, que por sua vez serve de motivação para que muitos indivíduos se inscrevam nas escolas de música das bandas, procurando aprender um instrumento que depois lhes possibilite integrar um grupo no Carnaval.

    GRUPOS

    Os grupos, também conhecidos pelos designativos coletivos genéricos “Danças”, “Bailinhos” ou “Comédias” consoante a sua natureza, têm propensão para ser conjuntos informais e independentes que se reúnem anualmente para organizar uma atuação no circuito do Carnaval. Só muito raramente os encontramos formalmente associados a agremiações ou coletividades, muito embora possam ter o apoio das instituições da sua freguesia de origem.

    A maior fonte de financiamento dos grupos são os seus membros, que pagam uma percentagem significativa dos custos da produção, nomeadamente o próprio traje e acessórios, e todas as despesas inerentes à deslocação para participação nos ensaios. Os financiamentos institucionais são também expressivos, e mais de metade dos grupos recebe apoios financeiros do Governo Regional, da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia. Alguns dos grupos recorrem ainda a fontes alternativas de financiamento, como a organização de vendas de rifas ou de comida, e a organização de eventos – sobretudo gastronómicos.

    Não obstante a sua informalidade, podem ter uma organização interna hierarquizada e bem definida, existindo normalmente um ou mais responsáveis pela organização e gestão do grupo, que por sua vez podem delegar noutros elementos atribuições específicas.

    A maioria dos cerca de 60 grupos que participam anualmente no circuito fê-lo já em mais de 10 edições, com poucas interrupções pelo meio, ainda que com alterações no elenco. Existem mesmo grupos com participação quase contínua desde o final da década de 70 ou início da década de 80 do século XX.

    A renovação geracional opera-se anualmente: os elementos que saem por diversos motivos – a emigração ou a deslocação para continuação de estudos serão dos mais comuns – são substituídos por novos elementos, que os responsáveis procuram que tenham, preferencialmente, as mesmas valências que os outros, ou então que tragam uma aptidão – instrumental ou dramática – anteriormente inexistente.

    Se no passado eram raros os casos em que os elementos fossem provenientes de freguesias distantes, e os grupos se limitavam a recrutar os seus integrantes na própria freguesia ou, na melhor das hipóteses, nas freguesias contíguas, a melhoria das acessibilidades e a transformação profunda nos hábitos de mobilidade vieram operar uma transformação importante neste aspeto: a origem geográfica de um indivíduo já não é condicionante da sua participação em determinado grupo. Na realidade, alguns dos grupos participantes do circuito do Carnaval podem mesmo ser originários das comunidades na diáspora, onde decorre um outro circuito de Danças, Bailinhos e Comédias de Carnaval, aparentado e descendente do circuito terceirense.

    PREPARAÇÃO

    Os primeiros preparativos para as Danças, Bailinhos e Comédias de Carnaval começam logo a seguir ao Verão do ano anterior, com a constituição dos grupos de executantes, a discussão dos temas, textos e músicas e a escolha dos autores. Neste período, que decorre até ao Natal, são normalmente apenas tratados aspetos preparatórios e organizativos.

    Segue-se o período entre a época natalícia e o Carnaval, no qual são conduzidos os ensaios de todas as componentes do espetáculo e os últimos acertos, que é descrito pelos participantes como aquele em que a boa disposição e o convívio entre os elementos é mais intenso. Por norma, os grupos começam por ensaiar separadamente as componentes da apresentação – música e enredo – e só em altura mais próxima do Carnaval é que integram as duas partes, mais a coreografia. Esta dinâmica obriga a repartir os ensaios entre as salas de espetáculo disponíveis e outros espaços nem sempre especialmente vocacionados para espetáculos, como garagens e casas particulares. Os cenários e adereços são utilizados a partir dos últimos ensaios antes do Carnaval. O guarda-roupa e os acessórios só são usados no dia de estreia.

    As Danças, Bailinhos e Comédias de Carnaval motivam uma dinâmica no círculo das costureiras da ilha – profissionais ou de ocasião, profissionais individuais ou empresas com mais de um colaborador – e no comércio retalhista de tecidos, sapatos e adereços. Durante o tempo que antecede o Carnaval o trabalho multiplica-se para as costureiras, que por vezes trabalham sem parar para conseguirem produzir a tempo os fatos para os grupos, havendo algumas que chegam a trabalhar para mais do que um grupo. Da mesma forma, não é certo que todos os elementos de um mesmo grupo venham a recorrer à mesma costureira para confecionar os seus fatos, antes dividindo o trabalho por mais que uma pessoa. A costureira assume um papel de grande relevância na dinâmica do Carnaval, sendo a indumentária uma das componentes mais apreciadas, chegando mesmo a colaborar na escolha e conceção dos trajes, em colaboração com os elementos do grupo.

    Alguns dos grupos optam por abrir ao público o último ensaio antes do Carnaval, o que permite testar as reações ao espetáculo e fazer ajustes. Nos últimos anos uma empresa local começou a organizar nas suas instalações, nas últimas duas semanas antes do Carnaval, sessões de ensaio de vários grupos abertas ao público.

    Durante a época de ensaios sucede que os representantes dos salões se deslocam aos locais de ensaio dos grupos e os convidam para que, durante o circuito de Carnaval, esse grupo apresente o seu espetáculo naquele salão. O convite é feito por escrito num cartão, acompanhado de ofertas que normalmente consistem numa garrafa de bebida, mas que podem também incluir alimentos e petiscos. Este é um gesto sobretudo cerimonial e uma oportunidade adicional de convívio, uma vez que o ter ou não recebido convite de determinado salão só muito raramente é critério para a escolha dos salões em que cada grupo opta por atuar.

    Os salões são as salas de espetáculos das autarquias ou das coletividades locais: sociedades recreativas e musicais, Casas do Povo, centros sociais e culturais. São locais de dimensão normalmente modesta – só excecionalmente excedem a capacidade de 400 lugares, sendo o normal entre 300 e 350 lugares – e sem condições técnicas sofisticadas, excetuando os auditórios municipais do Ramo Grande, na cidade da Praia da Vitória e o Teatro Angrense, em Angra do Heroísmo. Os grupos referem normalmente que os grandes auditórios têm a vantagem da sofisticação técnica e da capacidade, mas que as pequenas salas das sociedades permitem uma maior proximidade com o público, o que proporciona um espetáculo mais caloroso. No total, integrarão o circuito cerca de 35 salões, espalhados por quase todas as 30 freguesias da ilha – apenas duas das freguesias citadinas de Angra do Heroísmo não têm salões no circuito. Cinco das freguesias da ilha integram mesmo o circuito com mais de um salão. Os salões disponibilizam-se entusiasticamente para acolher o circuito do Carnaval. Este será um dos eventos mais significativos que ali decorrerão durante o ano, proporcionando um aumento significativo nas receitas das coletividades locais sobretudo pelas vendas acrescidas nos respetivos bares, uma vez que as entradas para assistir aos espetáculos são gratuitas, exceto nos auditórios municipais.

    CIRCUITO

    Tanto como a natureza e formato dos espetáculos, a itinerância é uma das marcas distintivas do Carnaval terceirense. A dinâmica do Carnaval passa por cada grupo fazer a apresentação do seu espetáculo numa digressão pela ilha: os grupos começam o seu périplo pelas salas de espetáculos no Sábado Gordo procurando uma sequência de salas geograficamente consecutivas ou próximas, maximizando assim o tempo e número de atuações face às deslocações.

    Os grupos iniciam as suas atuações normalmente ao fim da tarde, mais cedo no Domingo e na Terça-Feira de Entrudo. A chegada do grupo a um salão é assinalada com o lançamento de um foguete, que anuncia ao público a iminência de uma nova atuação, incentivando-o a dirigir-se à sala ou a nela se manterem.

    Todos os dias é decidido por cada grupo um circuito de salões, com mais ou menos precisão, que poderá ser alterado em função das condições que encontram à chegada a cada salão: havendo mais do que um grupo à espera para atuar, normalmente seguem para outro nas imediações. A responsabilidade da decisão de onde começar cada dia de atuações, do itinerário a percorrer e de esperar ou não em cada salão, consoante o número de outros grupos que estejam já à espera de atuar, é extremamente variável e depende do modo de organização do grupo, que pode ter um pendor mais coletivo ou baseado numa liderança. Para além da freguesia de origem do grupo e das freguesias de onde são provenientes os seus membros, os grupos fazem questão de atuar nas salas que têm uma reputação de acolhimento caloroso por parte do público, mais do que nas salas com melhores condições técnicas. Cada Bailinho ou Dança atuará, em média, 22 vezes durante os quatro dias de Carnaval, perfazendo 4 a 5 atuações por dia. As Comédias, até pela menor duração do espetáculo, tendem a ser mais profícuas no número de atuações, chegando a atingir mais de 35 nos quatro dias de Carnaval, uma média de 8 a 9 atuações por dia.

    É normal que os grupos se socorram de meios auxiliares para saber de antemão como está a situação das atuações nos salões que se seguem. Nesses dias, os radioamadores da ilha organizam-se e mantêm os salões e os grupos em contacto. Além disso, a Associação Regional de Turismo disponibilizou a partir de 2015 uma aplicação para smartphone na qual os salões podem registar a posição dos grupos e atuações que decorrem e aguardam para atuar, permitindo deste modo aos outros grupos e ao público saber a situação de cada salão e o movimento dos grupos, em tempo real. Também não é raro que os elementos dos grupos entrem em contacto com os salões telefonicamente, complementando assim a informação obtida pelas outras vias.

    Vários grupos optam por fazer exibições adicionais, antes de começar cada dia do circuito, em instituições de caráter social, nas quais seja mais difícil aos seus utentes deslocarem-se aos salões, caso dos lares de idosos, casas de saúde ou o hospital; ou em instituições de caráter exclusivo que não têm tradição de acolhimento de danças e bailinhos, mas que pretendem proporcionar aos seus membros uma amostra das atuações, caso do clube de oficiais da Base Aérea ou o Lawn Tennis Club.

    O ponto de encontro dos grupos no início de cada jornada de atuações é, usualmente, um local central da freguesia de onde o grupo é originário, apesar de alguns grupos optarem por se encontrar junto do salão onde decidiram iniciar as atuações desse dia.

    Os meios de transporte utilizados no circuito podem ser de três tipos: cedidos por instituições, alugados pelo grupo ou viaturas particulares, sendo que muitas vezes é uma combinação dos três. Embora ainda seja mais comum o recurso a pequenas viaturas de passageiros ou comerciais e a automóveis particulares, alguns grupos têm vindo a utilizar autocarros de maiores dimensões, o que facilita e simplifica a logística das deslocações.

    No seu périplo pelos salões é comum que os grupos tenham o apoio logístico – como motoristas ou no transporte de cenário e adereços – de um pequeno conjunto de pessoas que, apesar de não fazerem parte do grupo, são familiares ou amigos dos seus elementos.

    É usual que, finda a atuação, um representante do salão vá ao palco dirigir algumas palavras de agradecimento ao grupo oferecendo, nessa altura, uma pequena lembrança simbólica da passagem do grupo por aquela sala, normalmente uma placa alusiva ao Carnaval daquele ano. Acontece alguns dos grupos, especialmente os oriundos das comunidades na diáspora, deixarem também eles uma recordação da sua passagem pelo Carnaval desse ano, normalmente uma fotografia do grupo trajado.

    Os salões de acolhimento organizam, num espaço à parte e de acesso restrito, uma mesa de cortesia com comes e bebes para os membros dos grupos. As comidas e as bebidas são oferecidas pela própria direção da entidade ou por pessoas da freguesia sem uma ligação institucional àquele salão, mas que contribuem com algo para a mesa da sociedade naqueles dias. Os elementos dos grupos são encaminhados para a sala logo após a sua atuação, e antes de seguirem para o salão seguinte.

    ESPECTADORES

    O aumento da mobilidade contribuiu para uma transformação dos procedimentos dos grupos, que passaram de atuações apenas na própria freguesia e eventualmente freguesias circundantes para atuações por toda a ilha, mas trouxe também uma alteração nos hábitos dos espetadores. Se bem que ainda seja mais comum acompanhar as atuações numa única sala de espetáculos, ou num número reduzido de salas, de localização geográfica próxima, também se criou o hábito designado como “correr danças”, que consiste em fazer um circuito pelos salões da ilha, eventualmente até procurando as atuações de determinados grupos.

    Um dos fenómenos mais recentes é o da transmissão televisiva – em direto ou diferido – das danças e bailinhos, tanto por canais oficiais, de sinal aberto, como é o caso da RTP Açores, como por pequenos canais locais e particulares com transmissão nas grelhas dos operadores de televisão por cabo e na internet. A captação de imagem e som das danças tornou-se, aliás, regra, ainda que não para difusão em circuito aberto: empresas de imagem e fotografia gravam as atuações dos grupos para compilações em formato DVD, e algumas das Sociedades que gerem os salões da ilha fazem também os seus registos. Se a adesão do público a estes novos formatos de visionamento é inquestionável (permitindo que alguns membros da comunidade antes sem possibilidade de se deslocar aos salões – acamados, comunidades da diáspora – possam agora assistir ao espetáculo) já as opiniões dos grupos participantes divergem, havendo aqueles que consideram que a transmissão televisiva em direto afasta o público dos salões, prejudicando as receitas dos bares das Sociedades nestes dias, e que o investimento e empenho que cada grupo coloca nas suas atuações só se justificam perante o público ao vivo. Antes do início das transmissões televisivas havia já transmissão radiofónica, que se mantém, mas que não é considerada uma particular ameaça à presença do público nos salões.

    DEPOIS DO CARNAVAL

    A dinâmica do circuito de Carnaval não se esgota no final da Terça-feira de Entrudo. É normal que os grupos se reúnam posteriormente em convívios, não apenas para comemorar o trabalho do Carnaval desse ano, mas também para começar a planear o Carnaval do ano seguinte.

    Embora não seja um fenómeno frequente, alguns grupos poderão ser convidados a exibir o seu espetáculo numa altura após o Carnaval, tanto na ilha como fora dela. Há coletividades da ilha que organizam exibições após a época, como forma de angariar mais algumas receitas, o que nem sempre é bem visto pela população. Quase todos os anos há mesmo grupos que se deslocam ao continente e às comunidades da diáspora, no Canadá ou nos Estados Unidos da América, participando de festivais e exibições teatrais ou musicais.

    JARGÃO E IDIOMATISMOS

    Por envolver a participação de milhares de pessoas ao longo de décadas, e constituindo uma expressão peculiar da cultura popular, as Danças, Bailinhos e Comédias da Ilha Terceira acabaram por desenvolver um conjunto semântico próprio, composto tanto por vocábulos isolados como por expressões idiomáticas. Desde logo, as próprias palavras “Dança” e “Bailinho” possuem mais de uma aceção. Se a sua origem está na parte coreografada e propriamente dançada, designam também o espetáculo em si: quando alguém menciona as “danças da Terceira” ou fala sobre os “bailinhos deste ano”, refere-se ao conjunto de espetáculos, e estas palavras assumem um valor designativo de toda a manifestação; mas podem também designar o grupo que executa o espetáculo, assumindo a função de nome coletivo, referindo-se assim a Dança dos Rapazes das Lajes ou o Bailinho do Porto Judeu.

    O líder da dança é conhecido por “puxador”, uma vez que lhe cabe “puxar” pelos outros elementos, incitá-los às suas funções, e conduzir a atuação, razão pela qual também é conhecido por “mestre”.

    Ao texto dramático do espetáculo chama-se “enredo” ou “assunto”. Porém, “assunto” pode tomar o valor de nome coletivo, uma vez que designa também o conjunto dos atores que integram a componente teatral da exibição, dizendo-se que determinada pessoa “saiu no assunto” quando tomou parte no circuito do carnaval enquanto ator de um determinado grupo.

    Da mesma forma, a expressão “sair no bailinho” ou “sair na dança” indica que alguém integrou um dos grupos dessa natureza no circuito de Carnaval, seja como puxador, músico, dançarino ou ator.

    As “cantigas” são as letras, quase sempre versificadas, das canções, e as salas de espetáculo que recebem o circuito das Danças, Bailinhos e Comédias são conhecidas como “salões”.

    Uma das expressões idiomáticas que mais se ouvem nos dias de Carnaval na Terceira é “correr danças”. Quando alguém indica a sua intenção de correr danças, quer com isso dizer que pretende fazer um périplo pela ilha, normalmente em grupo, a assistir às exibições.

    Se um dos grupos começou os ensaios do seu espetáculo mas, por algum motivo, não chegou a apresenta-lo nos dias de Carnaval, diz-se que “a porca comeu a Dança”. É possível que este idiomatismo esteja relacionado com o facto de, em décadas passadas, os ensaios decorrerem no piso térreo das casas, denominado “a loja”. Essas eram as divisões mais amplas, e eram normalmente destinadas ao armazenamento de apoio à atividade rural, ficando ao mesmo nível do espaço ocupado pelos animais, eventualmente porcos.
  • Manifestações associadas:
    O circuito das Danças, Bailinhos e Comédias do Carnaval da Ilha Terceira tem duas manifestações de património cultural imaterial que lhe estão associadas e do qual são simultaneamente devedoras: o Carnaval Sénior da Terceira e o circuito do Carnaval na Diáspora, nos Estados Unidos da América e no Canadá. O circuito do Carnaval Sénior tem características muito semelhantes ao circuito regular. Deste, porém, participam grupos que envolvem principalmente – mas não só – pessoas de idade mais avançada e estão ligados a instituições de apoio à terceira idade. Apresentam em salões também espalhados pela Ilha Terceira o espetáculo que prepararam durante semanas anteriores e que, na sua maior parte, toma a forma de Bailinho ou, mais raramente, de Dança de Pandeiro. São espetáculos tecnicamente menos complexos, esteticamente menos sofisticados e que consequentemente comportam um menor dispêndio que os espetáculos do circuito regular. Decorrem apenas durante os três fins-de-semana que antecedem o fim-de-semana de Carnaval e as atuações são previamente agendadas, e concentradas nos horários de fim da tarde e início da noite, garantindo que todos os grupos atuam em todos os salões disponíveis e simultaneamente poupando o esforço de deslocações adicionais e esperas prolongadas aos seus participantes. Os salões em que decorrem os espetáculos podem ser, em alguns casos, os mesmos do circuito regular, mas casos há em que são usadas salas mais pequenas e modestas, tendo em conta a menor afluência de público, e até mesmo salas que não seriam à partida vocacionadas exclusivamente para espetáculos. Ao contrário do evento principal, em que as responsabilidades de organização estão descentralizadas e resultam de uma coordenação informal entre diversas entidades, no Carnaval Sénior existe uma única instituição responsável pela organização, logística, e promoção do evento: a Câmara Municipal da Praia da Vitória. Pode acontecer que alguns dos participantes neste circuito participem depois também noutros grupos do circuito regular de Carnaval. Do Carnaval Sénior participam usualmente dez ou mais grupos, envolvendo um total de cerca de 300 elementos, que percorrem de forma itinerante os 17 salões. Para o público, o Carnaval Sénior constitui normalmente uma antecipação do tão aguardado circuito regular. O Carnaval da Diáspora corresponde a um conjunto de circuitos independentes mas com pontos de interação entre si, e podem ser distinguidos três grandes circuitos, correspondentes a outras tantas áreas geográficas: o circuito da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos da América; o circuito da Califórnia, no mesmo país; e o circuito de Toronto, no Canadá. As primeiras versões destes circuitos terão surgido na primeira metade da década de 70 do século XX. Destes circuitos participam grupos compostos maioritariamente por emigrantes portugueses, sobretudo açorianos e particularmente terceirenses, e descendentes de segunda ou terceira geração, embora também possam integrar elementos externos à diáspora. Pode mesmo haver participação de elementos terceirenses não-emigrantes nas atividades de alguns grupos da diáspora, ou de grupos provenientes da Terceira nesses circuitos. Os grupos podem ser privados ou estar associados ao associativismo da emigração, usando no último caso os recursos e instalações dos clubes e associações e simultaneamente contribuindo para o dinamismo e para as receitas destes, uma vez que o público normalmente paga uma entrada, que lhe permite assistir aos espetáculos e, por vezes, usufruir de uma refeição. Em qualquer dos circuitos da diáspora as distâncias entre os salões são bastante mais significativas do que ocorre no circuito da Terceira, o que implica que haja diferenças logísticas significativas entre estes e a manifestação original. Mas também as realidades geográficas e sociais dos espaços da diáspora onde ocorrem os circuitos são muito diferentes entre si, o que implica que a organização, logística e natureza de cada circuito sejam igualmente distintas.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: As Danças, Bailinhos e Comédias do Carnaval da Ilha Terceira são uma manifestação complexa do património cultural imaterial, englobando diversas expressões artísticas e dimensões logísticas e sociais, pelo que também terá, necessariamente, múltiplos processos de transmissão.

    A expressão musical das Danças e Bailinhos é bem um caso paradigmático desta multiplicidade de contextos de transmissão: se a vontade de participar do circuito de Carnaval leva a que muitos jovens se juntem às Bandas Filarmónicas para aprender música e um instrumento, o acesso cada vez mais facilitado a instrumentos simples, usualmente de corda, permite que alguma da aprendizagem musical seja feita por via informal.

    A representação é normalmente aprendida com recurso a diferentes meios: não apenas textuais elementos escritos, mas também em grande parte oralmente e pela exemplificação prática.

    As coreografias, de pouca complexidade, tendem a ser transmitidas através da oralidade e da exemplificação prática, embora se possa recorrer a esquemas desenhados de pouca sofisticação, para clarificar algum conjunto de movimentos menos intuitivo.

    Os grupos tendem a ser heterogéneos em termos etários, integrando desde crianças de tenra idade – usualmente com funções adaptadas à sua idade – até pessoas idosas, o que potencia a transmissão intergeracional e perpetua a manifestação.

    Para o processo de transmissão contribui a própria dinâmica de constituição e renovação dos grupos, ocorrendo frequentemente a substituição de parte dos elementos do grupo por novos elementos, todos os anos. Este sistema favorece, por um lado, a transmissão de conhecimentos de elementos mais antigos para os mais recentes; por outro, é também comum que os elementos saídos dos grupos integrem outros grupos distintos ou criem novos grupos, ajudando ao intercâmbio e disseminação dos conhecimentos.

    Contudo, o mais significativo meio de transmissão dos conhecimentos associados à tradição carnavalesca terceirense é a sua própria execução: assistindo aos espetáculos nos salões, através das emissões televisivas ou nos registos disponibilizados na internet, o público assimila a estrutura e formato dos espetáculos, bem como os seus recursos linguísticos e artísticos.
    Data: 2016/05/30
    Modo de transmissão oral e escrita
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Todos os participantes e organizadores dos grupos do Carnaval; público do Carnaval.
  • Origem / Historial:
    O fenómeno das danças de carnaval não foi ainda devidamente investigado e interpretado numa perspetiva da história cultural e das mentalidades e da antropologia cultural e inserido, por exemplo, numa história do teatro português. Existe alguma bibliografia sobre as danças e os bailinhos de carnaval mas, como refere Luís Fagundes Duarte (1956), numa perspetiva mais empírica, descritiva e menos científica. Em qualquer caso, a expressão das danças de Carnaval na cultura açoriana, com particular destaque para a Ilha Terceira, tem movido a atenção e o interesse de muitos estudiosos e interessados, que procuraram aprofundar as suas origens e as suas tipologia, influências e evolução. Apesar das incertezas, a análise dos relatos, testemunhos de participantes e crónicas demonstram que a disseminação das danças e bailados, praticamente por todas as Ilhas dos Açores, mas com particular destaque para a ilha Terceira, desde o período do povoamento do arquipélago, tem a sua origem nas formas do teatro português, com influências e ascendência afro-brasileira e, possivelmente, também oriental.

    José Orlando Bretão (1939-1998), colecionador, estudioso e interessado na recolha de textos e testemunhos sobre o Carnaval da Terceira, defende que este fenómeno constitui uma obra e uma das mais ricas expressões da cultura popular dos Açores, cujos autores são, em primeiro lugar, os poetas populares e corresponde, possivelmente, ao «maior festival de teatro popular do mundo». Refere ainda que a primeira menção às danças na Ilha Terceira consta da Relação Geral das Festas que fez a Religião da Companhia de Jesus na Província de Portugal, na canonização dos Gloriosos Santos Inácio de Loiola, seu fundador e S. Francisco Xavier, Apóstolo da Índia Oriental, no ano de 1622, atribuída ao Padre Jorge Cabral. Nesta Relação também se inclui a Ilha Terceira. Coube ao Colégio de Angra a iniciativa dos festejos, nos quais os estudantes (colegiais) tiveram um papel importante.

    Para Frederico Lopes (1896-1979), mais conhecido pelo pseudónimo João Ilhéu, um Etnólogo que se dedicou ao estudo do folclore e das tradições da ilha Terceira, as danças que se exibiram durante as festas que os Jesuítas do Colégio promoveram, por ocasião da canonização de S. Inácio e S. Francisco Xavier foram meramente coreográficas. Frederico Lopes reconhece-lhes um carácter popular, acreditando que nada tinham a ver com as danças guerreiras ou pantomímicas, protagonizadas por elementos da aristocracia local. Segundo o mesmo autor este tipo de representação constitui um antepassado (remoto) da forma que as danças de entrudo do século XX vieram a adotar. Carlos Enes (1951), historiador da época contemporânea e estudioso do fenómeno do Carnaval da Ilha Terceira, faz também referência a esta Relação mas, segundo José Orlando Bretão não estabelece qualquer ligação, ainda que apenas formal, entre estas danças seiscentistas e as danças de Carnaval dos nossos dias.

    De acordo com José Joaquim Pinheiro (1833-1894), em finais do século XVIII voltam a surgir nos festejos terceirenses “danças e pantomimas, e outros actos do mais agradavel divertimento”. Concretamente, na então Vila da Praia (depois Praia da Vitória), as festas do Menino de Deus no Mosteiro de Jesus, realizadas nos dias 6, 7 e 8 de janeiro, eram muito concorridas e aí “cantava o povo ao som de instrumentos campestres muitas cantigas, versos e chacotas com alusão ao nascimento e veneração do Senhor Jesus”. Já na primeira metade do século XIX, comemora-se a expulsão dos franceses do Continente com festejos públicos na cidade de Angra, onde são apresentadas danças.

    Para Fagundes Duarte, o Carnaval ocupa um lugar central no calendário de festividades populares da Terceira e, segundo o seu ponto de vista, surge e desenvolve-se em resultado de uma feliz coincidência, que designa como histórica: as danças de Carnaval serão uma espécie cultural hibrida, que articula a dança com uma forma dramática, e que constituem uma evolução dos autos medievais de tradição ibérica. Sustenta ainda a opinião da existência de uma relação, não muito distante, entre as danças e o teatro que se representava a bordo das naus da carreira das Índias e de outros fenómenos semelhantes que, mercê de influências diversas, permitiram o surgimento do fenómeno específico das danças de Carnaval da Ilha Terceira.

    A fixação do atual modelo, segundo Avelino de Freitas de Meneses, (1958), historiador e professor catedrático, tem lugar em finais do século XIX e durante o primeiro terço do século XX, com particular destaque para as décadas de 1920 e 1930, na zona do Ramo Grande. Ocorre sobretudo graças aos trabalhos de dois autores, naturais da Vila Nova, respetivamente Joaquim Sales, conhecido pelo apelido de Farôpa; e de Francisco Luís Melo, conhecido por Chico Roico, ou Rouco. É a partir destes autores que a dança se desenvolve com um enredo, tratado entre os momentos da saudação e da despedida, relegando as marchas coreográficas para uma função acessória e complementar. É também neste período que se definem e individualizam os diversos tipos de dança, com particular realce para a “dança de dia”, ou de espada e a “dança de noite”, ou de pandeiro. É ainda nesta altura que as danças se convertem nos principais festejos de Carnaval da Ilha Terceira, sobretudo nas freguesias rurais.

    Como foi referido anteriormente, o modelo das atuais danças de Carnaval comporta a coexistência de diversos tipos ou formas de espetáculo. Entre eles destaca-se a dança de dia, ou de espada, cujo nome resulta da preparação para uma exibição durante o dia; sendo a direção da dança exercida por um mestre ou puxador munido de uma espada e de um apito.

    Já a dança de noite ou de pandeiro, cujo nome advém da circunstância da sua preparação se destinar a uma exibição noturna, tem a direção exercida por um mestre ou puxador munido de um apito e de um pandeiro. Mais recentemente, sobretudo após a década de 1960 surgem ainda os bailinhos, com uma estrutura coreográfica semelhante às danças. Trata-se de uma derivação mais ligeira da dança da noite.

    Paralelamente, ensaiam-se ainda as comédias que, segundo Augusto Gomes, (1921-2003), investigador, contista, jornalista, eram pequenos apontamentos teatrais, muito singelos e ingénuos, que abordavam em tom jocoso questões do quotidiano e temas brejeiros. Sustenta ainda este estudioso, que com o decorrer dos tempos esta modalidade foi-se desenvolvendo e aquilo que antes eram pequenos arremedos de teatro, é apresentado hoje com montagens e com efeitos cénicos muito diversificados. Com alguma regularidade o texto das comédias é apresentado em forma de rima, com melodias em voga e coreografias originais, ricas em criatividade e interpretação.

    Até há alguns anos atrás as danças incorporavam ainda a figura cómico-burlesca, ou satírico-crítica do “Ratão” ou “Velho”, cujo desempenho – supostamente de improviso – não obedecia à coreografia, nem ao enredo, nem ao “mestre”. Vestia normalmente um fraque e usava bengala e chapéu abeiro, ou outras vestes espalhafatosas e cómicas. No tempo em que as danças eram apresentadas nos terreiros e nas ruas servia para afastar o público e nesta função era também conhecido, segundo José Orlando Bretão, como o “Velho d’ Arreda”. No final da exibição tinha a função de fazer a coleta, para ajuda das despesas da dança. Segundo Fagundes Duarte, esta figura teria a função de comentar o enredo com ditos picantes e desbocados, que pronunciava abertamente, em bom vernáculo e à margem do texto. Ultrapassava, desta forma, os limites da censura prévia, nos tempos em que ela existiu, o que estava vedado ao mestre e aos atores. Já para José Orlando Bretão a figura do Ratão é o cómico por excelência, intérprete, através do qual se expande com toda a pujança a veia satírica do poeta. Joaquim Sales, da Vila Nova, conhecido por Farôpa, terá sido o primeiro autor de danças a colocar um Ratão como personagem interveniente nas falas do enredo. Entretanto, a partir dos anos de 1990 esta figura caiu em desuso e deixou de constar nas danças e bailinhos de Carnaval.

    Outra tradição em rápido declínio é a apresentação de danças, sobretudo Danças de Espada, no Domingo de Páscoa, algumas ensaiadas deliberadamente para a ocasião. Ocorriam após o período em que se viveu o luto quaresmal correspondendo, segundo Avelino de Meneses, a uma forma de exteriorizar a alegria da comunidade.

    Um costume entretanto caído em desuso, é designado pela expressão “Pôr palha na rua à dança”. Segundo José Orlando Bretão, era vulgar a sua ocorrência nas freguesias da zona do Ramo Grande e destinava-se a desfeitear ou a provocar os elementos de uma dança quando, terminadas as atuações, regressavam a pé à sua freguesia. Atapetar a estrada com palha era encarado como uma provocação, dando origem, por vezes, a ódios e a cenas de pancadaria.

    Inicialmente, a exibição das danças tinha lugar durante o dia, em terreiros ao ar livre, sobretudo em largos e em ruas de muitas casas rurais. Com o passar dos anos, a apresentação converte-se em espetáculo noturno, que tem lugar em lojas espaçosas de moradias particulares, ou em salões improvisados. Todavia, segundo sustenta Avelino de Meneses, a verdadeira transformação do Carnaval da Ilha Terceira em festa da noite, com exibição em palco, resulta da construção das sociedades recreativas e da progressiva distribuição da luz elétrica, entre as décadas de 1930 a 1960.

    A partir daí, as festas carnavalescas convergem para os novos recintos cheios de gente. Tornam-se, quase exclusivamente, nos locais de espera e de representação das danças. Como referido anteriormente o Carnaval, nos seus moldes atuais, tem início no Ramo Grande, no primeiro terço do século XX, com particular destaque para as freguesias da Vila Nova, Lajes, Agualva, Fontinhas, S. Brás e Cabo da Praia. Com o desenvolvimento dos transportes, muito rapidamente se transforma num festejo de toda a ilha.

    Com o fluxo da emigração, o Carnaval é convertido também numa manifestação das comunidades terceirenses residentes nos Estados Unidos da América e no Canadá. A união e as afinidades identitárias e familiares entre o meio local e os destinos migratórios está bem patente no processo de circulação de danças entre um e outro espaço, que se intensificou sobretudo a partir da década de 1980 e graças ao progresso das comunicações e em resultado da melhoria das condições de vida das populações.

    Também o público beneficia da melhoria das vias de comunicação: se antes a maioria das pessoas se limitaria a assistir às atuações na sua freguesia ou nas freguesias adjacentes, o desenvolvimento da rede viária resultaria na organização de passeios de autocarro à volta da ilha na altura da Páscoa, para acompanhar as exibições. Na atualidade são utilizados os automóveis particulares para o mesmo efeito, durante a época do Carnaval.

    Originalmente com uma expressão dominante no mundo rural, as Danças, Bailinhos e Comédias eram um fenómeno dominado pelos homens que, invariavelmente, se travestiam nos papéis femininos. Só mais tarde se alargou à participação das mulheres, o que lhe conferiu uma nova dinâmica, e contribuiu para a sua renovação. Atualmente a participação feminina é generalizada, sendo mesmo cada vez mais frequente o papel de mestre ser representado por uma mulher. Apesar de dominarem os elencos mistos, é cada vez mais habitual o aparecimento de danças ou bailinhos, exclusivamente constituídos por mulheres.

    Uma característica fundamental do Carnaval radica na desculpabilização dos excessos, o que não impede a existência de alguma vigilância e controlo por parte dos poderes públicos e autoridades eclesiásticas. No período do Estado Novo a censura oficial fazia o exame prévio dos textos de todas as danças e bailinhos, havendo casos de cortes e mesmo de proibições. Está documentado que no ano de 1941, o Governo central proibiu a exibição de quaisquer folias ou festejos carnavalescos, devido ao desenrolar da II Guerra Mundial. Em 14 de fevereiro de 1944, o Governador Civil do então Distrito de Angra do Heroísmo faz publicar um Edital, no qual são “expressamente proibidos nas casas, ruas, ou praças os divertimentos carnavalescos nas cidades e Vilas do Distrito” e num segundo parágrafo o mesmo documento afirma: “são permitidas na via pública, mas só nas freguesias rurais as danças regionais desde as sete às dezanove horas”.

    Um caso concreto ocorrido no ano de 1972 e apontado por Avelino de Meneses em relação à Vila das Lajes, dá conta da interdição da dança da Cimeira, por alegadamente atentar contra a dignidade do então Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, que em dezembro de 1971 acolhera na Terceira os presidentes dos Estados Unidos da América e da França. Após o 25 de abril de 1974, a dança da Cimeira é logo reposta no Carnaval do ano de 1975.

    A revolução do 25 de abril de 1974 consagra as liberdades e favorece o revigoramento das comemorações carnavalescas, ao admitir a crítica, possibilitando a multiplicação dos assuntos.

    As Danças, Bailinhos e Comédias de Carnaval são um testemunho vivo da diversidade cultural portuguesa, que resultou dos muitos contactos e intercâmbios com povos de todo o mundo. Uma das máximas expressões desse processo de miscigenação ocorreu precisamente na Terceira, local de passagem das rotas orientais e ocidentais do tráfico português e europeu. Descendentes de todas mas fiéis a nenhuma tradição, continuam hoje mesmo a renovar-se e adequar-se às realidades sociais de cada época que atravessam, recusando a cristalização, e é essa uma das principais razões para a manutenção do seu vigor ao longo das décadas.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direito Consuetudiário; Direitos de Autor e Direitos Conexos. Comunidade de habitantes da Ilha Terceira
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Andreia Falcão Mendes, coadjuvada por Rosa Mascarenhas Veloso e com a colaboração pontual de José O. Mendes Rocha e César Leandro da Costa Toste
    Função: Chefe da Divisão do Património Móvel, Imaterial e Arqueológico da Direção Regional da Cultura
    Data: 2016/05/31
    Curriculum Vitae
    Declaração de compromisso
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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