Domínio: Expressões artísticas e manifestações de carácter performativo
Categoria: Manifestações teatrais e performativas
Denominação: Teatro Dom Roberto
Outras denominações: “Teatro de Dom Roberto”, “Teatro de robertos”, “robertos” ou “bonecos da porrada”.
Contexto tipológico: O Teatro Dom Roberto é um tipo de teatro itinerante de marionetas que pode ser feito em qualquer local e em qualquer data, mas que tradicionalmente se realiza na Primavera, Verão e inícios do Outono nas praias, jardins, praças e em associação com as feiras.
Contexto social:
Indivíduo(s): Francisco Mota; João Costa; Jorge Soares; José Gil; Manuel Dias; Nuno Correia Pinto; Raul Constante Pereira; Rui Sousa; Sara Henriques; Sérgio Rolo; Vitor Costa; Filipa Mesquita; Fernando Cunha; Ricardo Ávila; José Quevedo
Contexto territorial:
Local: Portugal Continental. País: Portugal
Contexto temporal:
Periodicidade: Sem periodicidade fixa mas, tradicionalmente, os espetáculos são mais realizados na Primavera, Verão e início do Outono.
Caracterização síntese:
O Teatro Dom Roberto é um tipo de teatro itinerante de marionetas que pode ser feito em qualquer local e em qualquer data, mas que tradicionalmente se realiza na Primavera, Verão e inícios do Outono nas praias, jardins, praças e em associação com as feiras. Os espetáculos são feitos numa guarita ou barraca, estrutura de pano onde, no interior, o bonecreiro manipula e dá voz às marionetas de luva. O som característico destes espetáculos é dado pela palheta, instrumento que o marionetista coloca na boca com o propósito de amplificar a voz. O reportório tem um carácter satírico e a manipulação é feita num ritmo veloz.
Usualmente é feito na rua onde o público se junta à volta da guarita assim que ouve o som da palheta que, amplificando a voz do bonecreiro, dá o primeiro mote para o espetáculo começar. A partir desse momento, as marionetas de luva vão aparecendo na zona superior da estrutura, interagindo ora entre si, ora com o público. A manipulação é feita de forma rápida o que dá bastante ritmo ao espetáculo, com constantes entradas e saídas de personagens. A interação com a assistência, feita através de perguntas diretas ao público ou incentivando a gargalhada, é um dos elementos que mais reconhecimento traz ao teatro de robertos. Muitas vezes o bonecreiro conjuga numa mesma sessão várias peças, uma vez que, por norma, cada uma delas não dura mais do que 10 minutos. No intervalo pode haver interação com a audiência, o que também é comum ser feito no fim das sessões, quando o bonecreiro sai da barraca para agradecer os aplausos do público.
Caracterização desenvolvida:
O Teatro Dom Roberto é uma manifestação de carácter teatral que se realiza sem data específica e em diversos locais do território nacional. O Teatro de Dom Roberto caracteriza-se pela sua itinerância e espontaneidade, pelo seu carácter satírico e por ser efetuado no interior de uma estrutura de pano – guarita - no cimo da qual aparecem as marionetas de luva.
Por norma, os espetáculos realizam-se em locais abertos, ao ar livre e, por essa razão, são mais frequentes na Primavera, Verão ou Outono. São privilegiados os sítios onde exista público para assistir ao espetáculo como em jardins, praças ou zonas de passagem. No entanto, esporadicamente podem ser feitos no interior como em escolas, museus ou mesmo casas particulares. No início do século XX, os pavilhões de feira tiveram uma importância fundamental no desenvolvimento e continuidade desta manifestação e as peças eram feitas no seu interior.
Os espetáculos podem acontecer por iniciativa do próprio bonecreiro, que escolhe um local e recebe “à moeda” (isto é, o que o público que está a assistir lhe dá), mas atualmente é mais comum os espetáculos serem solicitados por alguma entidade exterior: uma câmara municipal, junta de freguesia, museu, centro cultural ou mesmo por alguma companhia teatral que esteja a organizar um festival de marionetas ou de teatro. Em qualquer dos casos, o desenvolvimento da performance dá-se de maneira igual, sendo normalmente seguida por todos os marionetistas a mesma forma de fazer.
A montagem do espetáculo começa antes da atuação, mas constitui ela própria um chamariz. Mesmo quando se trata de espetáculos que já estão programados (por exemplo, inseridos num festival, ou contratados por alguma entidade) há sempre uma margem para a escolha do local, dentro dos limites espaciais previamente estabelecidos (que aparecem na divulgação e, eventualmente, para o qual a entidade organizadora detém licença). A escolha do melhor sítio tem de ter em conta diversas características, que podem incluir fatores meteorológicos, de nível de ruído e de visibilidade para o público.
Escolhido, então, o local dá-se início à montagem da guarita. Começa-se pelo esqueleto, estrutura de madeira ou de metal, constituída por cerca de 19 varas que encaixam em ângulos, construindo o formato de um paralelepípedo quadrangular e que servirão de suporte ao pano de cobertura e às próprias marionetas. Coloca-se, então, o pano de cobertura que pode ser de algodão liso ou uma chita de Alcobaça. O tecido de cobertura pode ser só um, com forro no interior ou não, ou ser composto por várias partes, tendo sempre uma abertura na parte de trás da guarita que permite a saída do bonecreiro e a abertura da parte superior para as marionetas. No interior, ganchos presos a meio da estrutura ajudam a suportar as marionetas a uma altura a que o bonecreiro consiga aceder facilmente.
Acabando este trabalho de montagem dá-se início à arrumação das marionetas no interior da guarita, tendo em conta os espetáculos que irão ser feitos e também de que lado da cena a marioneta vai entrar (em que mão vai ser usada). Se o bonecreiro pretender fazer duas funções de seguida terá de arrumar primeiro as marionetas do segundo espetáculo, de modo a que fiquem já penduradas nos ganchos, por baixo das que serão utilizadas inicialmente pois, no intervalo das funções, o bonecreiro não terá tempo de arrumar novas marionetas. Durante este processo é comum que o público se vá aglomerando à volta da guarita: algumas pessoas, normalmente mais idosas, porque já sabem o que vai acontecer, outras, porque ficam a aguardar, com curiosidade, o desenvolvimento da cena. No exterior da guarita é comum pendurar-se uma pequena placa de ardósia com o nome dos espetáculos e, por vezes, com a hora a que irão ter lugar.
Dependendo das circunstâncias, o marionetista pode fazer uma breve apresentação do espetáculo e do que é o Teatro de Dom Roberto, seguindo depois para o interior da guarita onde o som da palheta serve para começar a função, ao mesmo tempo que chama a atenção de mais público.
A partir desse momento, as marionetas de luva vão aparecendo, interagindo ora entre si, ora com o público. A manipulação é feita de forma rápida, o que dá bastante ritmo ao espetáculo, com constantes entradas e saídas de personagens, ora pelas laterais da cena, ora pelo plano inferior. Muitas vezes o bonecreiro conjuga numa mesma sessão várias peças, uma vez que por norma estas não duram mais de 10 minutos. No fim das sessões, o bonecreiro sai da barraca para agradecer os aplausos do público e, eventualmente, para falar um pouco com quem estava a assistir.
A itinerância é uma das componentes mais características do Teatro de Dom Roberto, tendo permitido a sua disseminação e sobrevivência e sendo determinante na construção dos objetos que são necessários à sua execução. As marionetas de luva são leves, apenas com a cabeça em madeira e o resto do corpo em tecido, os adereços também são pequenos e apenas os estritamente necessários ao desenvolvimento da história, tudo sendo minuciosamente arrumado no fim dos espetáculos em malas de viagem. A guarita também é construída em materiais leves, com a estrutura de arestas em madeira ou metal onde assenta o tecido de algodão ou de chita tradicional que dá a forma final à barraca e que é escolhido por cada um dos marionetistas de forma a ser diferente da que é utilizada pelos outros.
No Teatro de Dom Roberto as personagens falam com a voz distorcida e amplificada, o que se deve ao uso da palheta por parte do marionetista. Construída com duas pequenas placas de alumínio, prata ou até mesmo plástico, atadas com fita de nastro e colocadas junto à garganta na altura da atuação. A palheta era um dos segredos mais bem guardados pelos antigos bonecreiros, que o revelavam apenas a alguns dos seguidores. Trata-se de um instrumento de uso pessoal, que tem de ser feito à medida de cada um e, tal como as palhetas utilizadas nos instrumentos de sopro, a afinação tem de ser feita pelo próprio marionetista.
A palheta torna pouco percetível o texto da peça, nem todas as palavras são entendidas e nem todos os sons são facilmente articuláveis, sendo por isso constante o recurso a sons onde os “rs” se repetem: “RRRRRRRRRRoberrrto”, “RRRRRosa”, “porrrrrrra”, “Rapaz”, “a morte é parva”, “É um, é dois, é três” “Raios ta’parta”… É também comum a recorrência a onomatopeias como “brrrr”, “turrrruturrrru”… Os sons e as frases são repetidos diversas vezes, fazendo com que a interação com o público seja levada ao extremo quando o bonecreiro faz a mesma pergunta diversas vezes, levando a audiência a responder cada vez de forma mais elevada.
Os espetáculos são de carácter satírico e cómico, com texto curto, existindo até à data poucos textos que passaram à escrita, excetuando alguns casos como a peça transcrita por Azinhal Abelho, “Rosa e os Três Namorados” (ABELHO: 1973) ou, mais recentemente, “O Saloio de Alcobaça”, por José Gil (GIL: 2013). Do que chegou até nós, o reportório mais comum condensa-se em quatro peças: “O Barbeiro Diabólico”, “A Tourada”, “O Castelo dos Fantasmas” e “Rosa e os três Namorados”. Os textos evidenciam o carácter popular e heroico da personagem principal, que assume o seu ponto culminante na peça “O Barbeiro” quando, no fim e já depois de ter morto o Polícia, o Diabo e o próprio Barbeiro, D. Roberto acaba mesmo por matar a própria Morte. A maioria dos bonecreiros utiliza estas histórias tradicionais, embora atualmente muitos deles já criem também reportório próprio, reinventando esta arte, mas mantendo as suas características identificadoras.
Embora o reportório tenha uma base comum na forma como é apresentado por todos os marionetistas, isto não significa que ele seja exatamente igual, ainda que pareça aos olhos dos menos atentos. Por exemplo numa das peças mais comuns, “O Barbeiro”, os papéis atribuídos à personagem do próprio Barbeiro ou do cliente podem inverter-se: ora é o cliente que mata o barbeiro e os restantes personagens, tornando-se o primeiro o herói da história, ora é o próprio barbeiro que o faz (versão ainda hoje presente nas histórias de Francisco Mota e de Vitor Costa). Num caso ou noutro, o nome de Roberto é atribuído ao herói final e último sobrevivente da intriga.
Há reportório comum a praticamente todos os bonecreiros, havendo outros que, por razões artísticas ou por investigação, criaram novas peças ou reencenaram peças antigas. O que caracteriza o reportório do teatro de Dom Roberto é a sua vertente satírica e subversiva, claramente anti-poder. Assim, cada um dos bonecreiros em atividade faz as seguintes peças:
João Costa: “O Barbeiro”, “A Tourada” e “O Caçador”.
José Gil: “O Barbeiro Diabólico”, “A Tourada”, “O Castelo dos Fantasmas”, “Rosa e os três Namorados” e “O Saloio de Alcobaça”.
Jorge Soares: “Roberto e a Namorada” e “O Burro Teimoso”.
Francisco Mota: “O Barbeiro Diabólico” e “A Tourada”.
Manuel Costa Dias: “O Baile de Máscaras”, “O Namoro”, “Maria Liberdade” e “A Tourada”.
Nuno Correia Pinto: “O Barbeiro”, “A Tourada”, “O Castelo da Princesa Encantada” e “O Bolo Refolhado”.
Raul Constante Pereira: “O Barbeiro Diabólico” e “A Tourada”.
Rui Sousa: “O Barbeiro Diabólico” e “A Tourada”.
Sara Henriques: “O Barbeiro” e “A Tourada”.
Sérgio Rolo: “O Barbeiro”.
Vítor Costa: “O Barbeiro”, “A Tourada” e “O Cemitério Assombrado”.
Fernando Cunha: “O Barbeiro Diabólico”, “A Tourada”, “Rosa e os Três Namorados”, “O Castelo dos
fantasmas”, “O Pescador”, “O Moleiro e o Burro”.
Filipa Mesquita: “O Barbeiro Diabólico”, “O Castelo dos Fantasmas”.
José Quevedo: “O Barbeiro Diabólico” e “A Tourada".
Há um reportório comum de matriz tradicional que a maioria dos bonecreiros faz: “A Tourada” e “O Barbeiro Diabólico” executados por Francisco Mota, João Costa, José Gil, Manuel Dias, Raul Constante Pereira, Rui Sousa, Sara Henriques, Sérgio Rolo e Vítor Costa. Para além destas peças, existem duas outras, também tradicionais e que foram transmitidas pelo bonecreiro António Dias a João Paulo Seara Cardoso: “Rosa e os Três Namorados” e “O Castelo dos Fantasmas”. Embora todos os bonecreiros imprimam um cunho pessoal às suas peças, visível em pormenores, as histórias utilizadas são as mesmas.
Geralmente, no início do espetáculo há algo que chama a atenção, o som do tambor, de uma buzina, ou da própria palheta vindo do interior da guarita. Os bonecos são atirados ao ar para o público ver e logo se inicia o espetáculo.
Na história de “O Barbeiro”, a personagem principal, Roberto, vai casar e por isso vai ao barbeiro arranjar-se. Depois de por a bata ao Roberto, o Barbeiro inicia o trabalho com um pincel e uma navalha demasiado grandes tendo em conta o tamanho dos bonecos – o que provoca uma grande gargalhada na audiência. No fim, Roberto pergunta o preço e, achando demasiado caro, resmunga: “Não pago!” e logo começam um jogo de esconde, esconde e luta com os bastões. Quando Roberto mata o Barbeiro, ainda tenta acordá-lo dizendo: “Acorda! Eu pago!”. Nessa altura aparece o Padre para fazer o enterro ao Barbeiro mas, como este não cabe no caixão, Dom Roberto vai buscar a navalha para o cortar ao meio. Saem depois com o caixão ao som da marcha fúnebre. A seguir entra em cena o Polícia, querendo apurar quem cometeu o crime, Roberto acusa alguém da audiência e, entrando os dois em conflito, acabam por lutar e o Polícia sucumbe às pauladas de Roberto. Ouve-se um barulho fantasmagórico e, nalguns casos, uma bola de fogo sai do interior da barraca, ao que Roberto começa a tremer e a perguntar: “O que é isto?" Aparece então o Diabo que ameaça Roberto, dizendo: “Vais para o inferno!” Recomeça o jogo em que os bonecos se vão escondendo um do outro para tudo acabar com a esperada morte do Diabo. Nisto aparece a própria Morte que também acaba por sucumbir às mãos de Roberto, ao que este, entusiasmado, grita repetidamente: “Matei a Morte! Matei a Morte!”. Sobre esta peça há uma outra versão, utilizada por Vítor Costa e também defendida por Francisco Mota, em que é o Barbeiro o herói da história, matando o cliente e os personagens que se seguem, aparecendo no fim a viúva do cliente desgostosa.
Ao espetáculo “O Barbeiro” segue-se, muitas vezes, “A Tourada” que se inicia com o som dos chocalhos do touro vindos do interior da guarita. Sendo um espetáculo essencialmente visual, cada versão difere um pouco da outra, dependendo do bonecreiro que a faz. Regra geral, aparece primeiro o Toureiro que começa a chamar pelo Touro ou a perguntar ao público se o viu. Ambos combinam fazer uma tourada, mas o touro começa a fazer partidas como a tourear com a cauda, ou a ficar quieto como se fosse um cão. A ação prossegue com diversos episódios cómicos que entretêm o público enquanto a tourada não começa. Assim que começa a tourada, aparecem os forcados a dançar fandango ao som da palheta, mas o touro volta a esconder-se e um dos forcados vai buscá-lo. Por fim, o espetáculo acaba quando um dos forcados agarra o touro pela cauda e começa a dar-lhe corda fazendo o Touro girar sobre si próprio. Esta é uma das peças que tem mais variações entre os marionetistas, uma vez que dá mais relevância ao movimento e à improvisação do que à estrutura narrativa fixa. Alguns dos marionetistas têm para “A Tourada” bonecos próprios, como é o caso de Manuel Dias com o seu Toureiro a cavalo ou de João Costa que apresenta três forcados numa única marioneta.
O espetáculo “O Castelo dos Fantasmas” começa quando uma princesa, aprisionada na torre de um castelo, aparece a gritar por socorro. Nesse momento surge Roberto, a quem ela explica a situação prometendo casar com ele, caso a consiga salvar. Dom Roberto tenta salvá-la, mas logo aparece o Fantasma e ambos começam à paulada, acabando este último por ser derrotado. De seguida aparece o Crocodilo, que tenta comer Dom Roberto mas este luta com ele com um pau e acaba por matá-lo. O Diabo aparece também no castelo querendo levar Dom Roberto para o Inferno, mas este acaba também por matá-lo. A última personagem a surgir é o Gigante, com quem Dom Roberto luta com o pau, que o Gigante consegue roubar. Por fim, a esperteza de Dom Roberto triunfa, conseguindo matar o dragão com a ajuda de um pau ainda maior. Aparece então a Princesa para cumprir a sua promessa e ambos saem de cena ao som da marcha nupcial.
O cenário da peça é um castelo de duas entradas e uma torre com uma janela, pelo que o jogo de entrada e saída das personagens exige um pouco mais de destreza do bonecreiro, mas favorece os jogos de perseguição e de escondidas. Este cenário estava já presente no filme Dom Roberto, de Ernesto de Sousa, onde o espetáculo “O Castelo dos Fantasmas” aparece no genérico inicial.
Em “Rosa e os três namorados”, Rosa, a personagem principal, é empregada numa casa. A trama começa com a Patroa a dar ordens à Rosa, porque vai sair para ir às compras. Mas assim que se vê sozinha, Rosa prepara-se para dormir, sendo surpreendida pelo Patrão que quer beijá-la, mas Rosa escapa-se. Quando finalmente fica a sozinha, batem à porta e aparece o sapateiro, que lhe promete 50 pares de sapatos se ela casar com ele, logo começam o namoro e, depois de uns beijos, dirigem-se à cama, ouvindo-se “truca-truca, truca-truca”, com a voz da palheta, enquanto o par se movimenta debaixo dos lençóis, o que provoca grandes risadas na audiência.
Quando de novo alguém bate à porta, Rosa diz que é o Patrão e aproveita para esconder o Sapateiro dentro de um baú. Nisto entra em cena o Ourives, que lhe promete muito ouro em troca de casamento. Segue-se de novo a cena dos beijos e do “truca-truca”. Batem outra vez à porta e a Rosa esconde o namorado no roupeiro. O terceiro namorado que aparece é o Brasileiro que lhe promete 50 casas em troca de casamento, seguindo a cena de namoro. Enquanto Rosa namora com o Brasileiro, os outros dois namorados tentam sair dos armários e Rosa interrompe várias vezes a cena para os voltar a esconder.
Pela quarta vez, quando batem à porta é novamente o Patrão e Rosa, desesperada, acaba por esconder o Brasileiro no roupeiro junto do Sapateiro. O Patrão ao ver tamanha confusão acaba por chamar o Polícia que leva todos os namorados presos, ficando Rosa muito chorosa. No entanto, quando Rosa se encontra a sós com o Polícia logo o seduz, acabando também por namorar com ele.
Também esta peça tem acessórios que, como já se viu, são imprescindíveis ao desenrolar da cena: a cama, o roupeiro e o baú, também exigentes do ponto de vista da manipulação das marionetas.
Para além destas peças, alguns bonecreiros têm reportório próprio ou adaptado das histórias tradicionais, que segue as mesmas matrizes, repetindo inclusive alguns dos personagens: Roberto, o Polícia, o Padre, a namorada de Roberto. Sendo a trama idêntica em muitos deles, com perseguições, pancadaria, namoros e o ritmo típico do teatro Dom Roberto, assim como o carácter subversivo de constante desafio da autoridade.
João Costa apresentou, no ano de 2015, a peça “O Caçador”. Tal como no “Castelo dos Fantasmas”, também aqui Dom Roberto quer casar, desta vez com Rute que lhe exige, em troca, que lhe traga um jantar. No desenvolvimento da história, Dom Roberto vai tentar caçar um coelho, entrando por isso em várias peripécias com diversos personagens como um Caçador, um Mágico e até o próprio Coelho. Não conseguindo o desejado jantar de Rute, Dom Roberto acaba por encontrar um belo chapéu que irá oferecer à sua futura noiva.
Dentro da mesma temática aparece-nos a peça de Jorge Soares, “Dom Roberto e a Namorada”. Aqui, uma personagem masculina, de nome Rapaz, que quer roubar a namorada a Roberto. Ambos se envolvem em lutas e Roberto acaba por matar Rapaz. Aparece então o “Diabo”, a quem Dom Roberto dá uma cabeçada, correndo com ele. A Morte faz também a sua aparição no espetáculo, mas acaba igualmente por morrer após a luta com Roberto que se regozija cantando: “O Roberto matou a Morte! O Roberto matou a Morte!” Por fim, aparece de novo a namorada, de nome Rosa e ambos entram em luta com uma colher de pau, até ao momento em que Roberto vai buscar uma flor e tudo acaba bem.
Outra das peças de Jorge Soares é “O Burro Teimoso” que, como o nome indica, trata-se de um burro que teima em não obedecer ao dono, causando várias trapalhadas. Um Dragão aparece levando o Burro na boca e a história continua com as sucessivas aparições de um extraterrestre chamado Biribiri. Sobre este espetáculo, Jorge Soares conta que se inspirou na recriação do “Castelo dos Fantasmas” que aparece no genérico do filme Dom Roberto, de Ernesto de Sousa.
“O Saloio de Alcobaça” é um espetáculo de José Gil que foi recriado a partir de relatos que falavam de uma peça com este título. A história gira em torno de um vendedor de fruta que, sendo de Alcobertas, apregoa como sendo de Alcobaça e assim consegue vender mais. Também nesta intriga surge uma personagem feminina, Maria Varina, com quem o Saloio pretende casar. Por essa razão, o Saloio vai andar à porrada com outros pretendentes de Maria Varina, assim como outros personagens que o tentam assaltar. Mas é a própria Maria Varina que vai ajudar o Saloio a vencer os assaltantes. Para este espetáculo, José Gil criou um bastão especial, muito maior que o habitual, e que gira de forma muito rápida em torno dos personagens.
Manuel Dias criou o espetáculo “Maria Liberdade” em que uma marioneta enorme, intitulada “Poder”, simbolizando o período antes do 25 de Abril de 1974, aprisiona entre as mãos uma personagem feminina. Enquanto este conjunto fica no fundo da guarita, Roberto, na parte da frente, vai lutando contra vários adversários: o Polícia, o Padre e o Capitalista, saindo sempre vencedor. Entretanto, o “Poder” e “Maria Liberdade” mantêm-se ao longo de todo o espetáculo em cena e é neste momento final que Roberto faz descer o Poder, libertando Maria Liberdade.
Em “Baile de Máscaras”, também de Manuel Dias, Roberto vai fazendo truques e magias e colocando máscaras nas personagens. Primeiro aparece uma personagem de cabelos roxos e o Palhaço pergunta: “O que é que tu estás a fazer? Tu não és deste espetáculo!” - e desmascara a personagem que tem uma cara dupla.
Em “O Namoro”, Roberto zanga-se com a namorada e, pretendendo agarrar-se à primeira que aparecer, acaba por escolher um homem, o que acaba em grande pancadaria. De seguida aparece um Crocodilo, com quem Dom Roberto também luta. Entra então em cena o Polícia e, depois, o Carrasco, mas também aqui Dom Roberto escapa ileso e, no fim, dança com a sua namorada. Manuel Dias é o único bonecreiro português que faz este episódio da forca, mais comum em Inglaterra, nos espetáculos de Punch and Judy.
“O Castelo Encantado”, de Nuno Correia Pinto, é uma peça que tem por base tanto “O Castelo dos Fantasmas” como “O Barbeiro Diabólico”. Dom Roberto quer salvar a Princesa aprisionada numa torre, mas para isso terá de enfrentar, para além de um Fantasma e do Diabo, um Dragão vermelho, que acaba com uma flor a impedi-lo de fechar a boca. Por último surge o Guarda, que quer multar Roberto, iniciando-se uma luta entre ambos que, obviamente, vai ser ganha por Roberto. No fim, a Princesa é salva e acaba por beijar o Roberto.
Também de Nuno Correia Pinto é a peça “O Bolo Refolhado” que foi criada especificamente para ser feita em sala e que se baseia num conto tradicional português com o mesmo título. Aqui, Roberto é casado com uma mulher que não sabe cozinhar e acaba por ser a sogra – uma mulher de burka – que faz o bolo preferido do genro: bolo refolhado. No fim, acaba por descobrir-se que a sogra só andava de burka porque tinha um buço muito grande. Esta peça foi criada na altura em que os Estados Unidos da América invadiram o Afeganistão, daí o uso de burkas pelas personagens femininas da peça, exceto a mulher de Roberto.
O Cemitério Assombrado”, de Vítor Costa, surgiu porque, na peça “O Barbeiro”, o Cliente acaba por ser morto pelo Roberto, ficando por contar a história da sua Viúva. Foi esse o ponto de partida que Vitor Santa-Bárbara usou para este espetáculo. Embora o tenha assumido como uma criação individual, é ele o próprio que afirma ter tido posterior conhecimento, através da sua avó, que o pai fazia também uma peça semelhante. A peça, mais do que narrativa, vive de momentos em que, no cemitério, acabam por aparecer à Viúva estranhos personagens: o Diabo, a Morte e um Monstro Verde.
Em “O Pescador”, de Fernando Cunha, o pescador vai à pesca, pois pediu a Varina em casamento, mas
esta só casa se ele lhe levar um robalo. O pescador tem várias peripécias no rio onde é proibido pescar.
Um polícia, um crocodilo, e um robalo teimoso vão dificultar-lhe a vida. Será que o pescador consegue
levar o robalo à Varina?
Em “O Moleiro e o Burro”, de Fernando Cunha, o moleiro quer levar a sua farinha para vender na
aldeia. Começa a carregar o burro, mas cada saca que coloca, esta desaparece misteriosamente.
Descobre o ladrão e depois de muita luta consegue vencê-lo. Com o burro carregado, o moleiro está
pronto para ir à aldeia? Ou não?
Em “RIP Covid”, de Ricardo Ávila, empunhando uma seringa de tamanho improvável, a covid mata o
padre que o ia confessar (o que a natureza deu, nem Deus pode tirar), Mata também a Rita, no dia do
casamento. Mas não mata quem a própria morte teme. Não mata Dom Roberto. E Rita, voltará à vida
como nas histórias de encantar? Como?
“Os Piratas” de Ricardo Ávila: Na senda do tesouro perdido na ilha de tal, Capitão e Lacaio divergem
constantemente. O que é afinal um pirata? A criatura reles e traiçoeira de algum tempo ou o “peluche”
de hoje? Quem sobreviverá e… que ouros terá dentro o baú?
No fim dos espetáculos, o bonecreiro sai da guarita para uma conversa com o público e pode mesmo mostrar algumas marionetas. Por vezes, adultos e crianças precipitam-se para a parte posterior da guarita na ânsia de verem como todo o espetáculo se processa desde aí.
Embora o reportório seja ele próprio um elemento caracterizador do Teatro de Dom Roberto, a forma de manipular as marionetas e determinados ritmos constantes em todas as apresentações tornam os espetáculos imediatamente reconhecíveis, provocando um sentimento de identificação na audiência. A esta especificidade do Teatro de Dom Roberto, que não existe noutros espetáculos de marionetas de luva chama-se “rotinas”, “nome dado pelos marionetistas a sequências de movimentos que todos os executantes conhecem” (GIL:2013). Na realidade, tratam-se também de técnicas de manipulação que fazem com que as marionetas se movimentem de determinada forma, respondam ao movimento dos outros bonecos que com elas contracenam e interajam com o público assistente. Por exemplo, é comum que uma marioneta se esconda por baixo, apareça de repente por trás de outra ou surja do lado oposto ao que saiu de cena, provocando um efeito de surpresa, de forma a surpreender vítima e público. Muitas destas rotinas podem também ser vistas nos congéneres europeus do Dom Roberto.
Também característica do Teatro de Dom Roberto é a presença de um bastão utilizado pela personagem principal para agredir todas as outras. A violência, com recorrência específica à constante paulada, dá ritmo à representação e cria jogos de perseguição e de luta que estão presentes em praticamente todos os espetáculos.
Para que as apresentações se realizem é necessário todo um trabalho anterior que está relacionado com a construção dos objetos necessários à execução da peça. Normalmente, o marionetista, ainda na fase da aprendizagem, tem não só de construir as marionetas e a guarita, mas também de aprender a manipular as primeiras. Para esta fase, é comum os marionetistas envolverem amigos próximos ou pessoas de família, por exemplo para a costura dos fatos ou do pano da guarita. Já a construção das cabeças é, maioritariamente, construída pelos próprios, ora recorrendo a um torno de madeira, no caso em que as marionetas são torneadas, ou esculpindo a madeira diretamente, nos outros casos. Existem, no entanto, exceções: por exemplo, João Costa recorreu à ajuda de um marceneiro e as marionetas de Sara Henriques foram construídas por Rui Rodrigues. Já para a construção das roupas das marionetas, o caso é diferente, uma vez que a maioria dos bonecreiros pede ajuda a terceiros, muitas vezes mantendo a produção no círculo familiar ou de amigos mais próximos.
A palheta, como é um instrumento muito próprio que tem de se adequar ao palato dos marionetistas, é construída e afinada pelos próprios. Por vezes, acontece um bonecreiro ter palhetas afinadas em diversos tons, alterando o seu uso conforme o que considera adequado.
A guarita é normalmente construída pelo próprio marionetista, embora possa pedir ajuda para os panos da cobertura. Para além da já referida distinção em relação aos padrões utilizados, existe uma outra diferença nas guaritas que está relacionada com a atura dos marionetistas, uma vez que esta condiciona o tamanho da própria guarita.
Os elementos constantes no Teatro Dom Roberto são os seguintes:
A) Guarita
A guarita é uma estrutura normalmente quadrangular, um pouco mais alta do que o marionetista e que se constitui de dois elementos principais: o esqueleto, que pode ser em metal ou madeira, e a cobertura em pano de algodão (muitas vezes a tradicional chita de Alcobaça), que pode ser pintado ou decorado ao gosto do marionetista. O pano utilizado nas guaritas é uma das características visuais mais distintivas dos próprios marionetistas, uma vez que permite também o imediato reconhecimento por parte do público, mesmo quando o espetáculo ainda não está a acontecer. A guarita pode funcionar também como um painel publicitário informal, chamando público para assistir ao espetáculo. Por exemplo, António Dias teve desenhado na sua guarita um Pateta, que na altura chamava crianças; Vitor Costa tem escrito o nome com que se apresenta, “Robertos Santa-Bárbara”, e indicação da página de facebook, enquanto praticamente todos os outros marionetistas utilizam uma placa de ardósia para puderem escrever as peças e horários das mesmas. A guarita foi-se adaptando e modificando conforme os tempos e as vontades: anteriormente feita de materiais mais pesados – como a madeira – agora são utilizados metais mais leves e até estruturas que permitem nivelar a guarita em terrenos mais inclinados (o que acontece no caso de Nuno Correia Pinto e Sara Henriques).
As guaritas são diferentes de bonecreiro para bonecreiro, cada um deles opta por escolher um tecido com um padrão diferente dos outros, precisamente para se diferenciar dos colegas. Para além disso, podem existir outros pormenores diferenciadores, como o caso de Manuel Dias, que a guarita tem dois orifícios à altura dos olhos para poder ver a reação do público, ou de Sérgio Rolo, que tem um fecho na frente da barraca, que abre no fim dos espetáculos. Nalguns casos existem acessórios adjacentes à guarita como sendo uma placa de ardósia que fica pendurada na parte superior ou a lata do migalho que serve para recolher as moedas que o público dá.
No interior da guarita arrumam-se as marionetas de forma a serem usadas durante o espetáculo. Nas barras colocadas a meio da estrutura colocam-se uns ganchos que servem para pendurar as marionetas de cabeça para baixo, à esquerda e à direita do manipulador, conforme o lado da cena em que vão entrar. Na parte frontal há também um suporte de pano a meia altura em que se colocam adereços de cena e também marionetas. Opcionalmente, dependendo dos marionetistas e das peças, pode haver uma prateleira no cimo da guarita, mas escondida do público em que se podem colocar alguns dos acessórios necessários à cena.
Houve bonecreiros que tiveram guaritas ligeiramente diferentes destas, por exemplo António Dias usou uma guarita toda de madeira em forma de biombo e Augusto Sérgio, de Tavira, tinha uma barraca triangular (DELGADO: 1969)
B) Marionetas
As marionetas são, obviamente outro dos materiais essenciais no teatro de Dom Roberto. Todas elas têm características em comum, sendo difícil para um observador mais desatento encontrar o que as diferencia. Todas são marionetas de luva, constituídas por uma cabeça de madeira e um pano em forma de “T” para caber a mão, no fim dos braços têm mãos vermelhas ou pretas (à exceção dos bonecos de Francisco Mota que não têm mãos, tal como os do antigo bonecreiro Domingos Moura ou as marionetas de António Dias que aparecem no genérico do filme “Dom Roberto”). Na maior parte dos casos as cabeças são torneadas e pintadas de cor-de-rosa, com grandes olhos e um sorriso rasgado. No entanto, existem algumas exceções, como é o caso das marionetas de Manuel Dias, que são esculpidas, de Francisco Mota, Sérgio Rolo ou de Vitor Costa. A maioria das marionetas seguiam o exemplo de António Dias, passado aos outros marionetistas através de João Paulo Seara Cardoso, o que levou à uniformização em torno de um único aspeto de robertos, embora não houvesse propriamente um padrão estabelecido para este tipo de marionetas, tal como é visível no próprio espólio pertencente ao Museu da Marioneta, onde existem robertos cujas cabeças foram adaptadas de bonecos de borracha.
Para a construção dos fatos é muitas vezes solicitada ajuda de familiares ou de amigos, como é o caso de José Gil e Vitor Costa em que participam mãe e mulher respetivamente e de João Costa, que recorreu à ajuda de uma amiga para a confeção dos fatos.
C) Palheta
A palheta, instrumento utilizado junto às amígdalas para amplificar e distorcer a voz, é construída pelo próprio bonecreiro que tem de a afinar ajeitando o intervalo entre as duas placas ao som que pretende. É ela que permite amplificar a voz do marionetista, fazendo com que se ouça à distância, o que é essencial nos espetáculos de rua. Existem mesmo testemunhos de bonecreiros que engoliram a palheta, como é o caso de Manuel Rosado, considerado o “melhor palheta português” (DELGADO: 1967).
A palheta é construída do seguinte modo: duas pequenas placas de metal (ou plástico, no caso de Sara Henriques) com uma fita de nastro ao meio e à volta das placas; um fio de algodão mais fino enrolado várias vezes à volta serve para segurar tudo.
Como dito anteriormente, cada um dos marionetistas tem de encontrar o ponto certo para a afinação, havendo por vezes marionetistas que têm duas palhetas afinadas em diferentes tons.
A palheta guarda-se normalmente numa caixa de rolo fotográfico e alguns marionetistas guardam-na em rum ou whisky para retirar a goma da saliva.
D) Cenários e Adereços
A única peça que utiliza cenários é “O Castelo dos Fantasmas”, que inclui um castelo de madeira colocado no cimo da guarita, com duas portas e uma torre com uma janela, tal como pode ser visto no genérico do filme “Dom Roberto”, de Ernesto de Sousa. Este cenário é utilizado apenas por José Gil. “O Barbeiro” não tem cenários, à exceção do que é feito por Vítor Costa, em que existe um cenário de pano pintado onde está escrito por cima “Barbeiro”.
Já os adereços utilizados podem ser divididos em dois tipos: os que são usados em todos os espetáculos e os que dizem respeito apenas a uma história. No primeiro caso temos o exemplo do bastão, objeto feito de pau ou de cana rachada, utilizado pelas personagens para baterem umas nas outras. Para o espetáculo “O Barbeiro Diabólico” é utilizado um cachimbo de fogo na altura em que aparece a Morte, provocando uma explosão.
Para além destes, existem outros objetos usados nas seguintes peças:
“O Barbeiro”: caixão, frigideira, navalha de barba, pincel e toalha da barba;
“A Tourada”: capote de tourear, badalo e, nalguns casos, farpas;
“Rosa e os Três Namorados”: cama, roupeiro e baú.
E) Malas de transporte
Dada a característica de itinerância dos espetáculos, todo o material necessário para a sua realização deverá ser transportado da forma mais prática possível. Alguns dos bonecreiros utilizam malas de viagem antigas, por vezes com desenhos relativos à companhia ou aos robertos (no caso de José Gil e Rui Sousa) ou mochilas (caso de Manuel Dias). Normalmente são necessárias duas malas: uma para as marionetas e adereços, outra para a estrutura da guarita. Para ser mais fácil o transporte, as malas são colocadas num trolley.
Nalguns casos, a arrumação dentro da mala segue algum preceito, como relata José Gil:
“Primeiro coloca-se o Diabo ao canto para não chatear os outros, ao lado pomos o padre para o Diabo não se chatear com a Morte, nem a Morte com ele (a Igreja fica no meio). Depois pomos o Barbeiro separado, com o Polícia, do Roberto. Depois, do outro lado, pomos o forcado que é amigo do outro forcado e o toureiro que fica ao lado dos forcados mas também ao pé do touro. E, por último, pomos o caixão: se algum deles se chatear vai parar aqui” (GIL: 2014).
Por regra, os espetáculos dependem apenas de uma única pessoa: o bonecreiro. Atualmente existem onze bonecreiros no ativo que, com a sua guarita, pontuam o território nacional. A maioria deles tem ligação com o teatro, pertencendo a companhias teatrais mas, para outros, o Teatro Dom Roberto é a única coisa que os une ao mundo teatral. A sua atividade vai muitas vezes ao encontro de pedidos de instituições como câmaras municipais ou juntas de freguesia, associações culturais e companhias teatrais que lhes pedem espetáculos de Dom Roberto para animar determinadas zonas da cidade ou mesmo praias ou jardins, tal como acontecia com os antigos bonecreiros. De facto, o teatro Dom Roberto não se pode dissociar dessa paisagem, urbana ou não, que o marionetista escolhe para servir de fundo à ação dos seus bonecos. Apesar disso, existem ainda alguns bonecreiros que fazem espetáculos por conta própria, “à moeda”, como José Gil e Vitor Costa. Mas hoje em dia, os espetáculos de rua estão sujeitos a determinadas regras que exigem uma quantidade de licenças, quer da administração local quer da administração central, o que dificulta a espontaneidade com que os espetáculos se poderiam realizar.
Atualmente muitos dos marionetistas atuam também em festivais no estrangeiro, contribuindo não só para a divulgação do Teatro Dom Roberto, mas também para a troca de conhecimentos e experiências entre marionetistas de outros países que trabalhem com formas idênticas de marionetas.
Manifestações associadas:
Não existem outras manifestações associadas ao Teatro Dom Roberto.
Contexto transmissão:
Estado de transmissão activo Descrição: O Teatro de Dom Roberto é um evento de carácter público, acessível a todos. Muitas vezes acontece que algum espetador, por ficar fascinado com os bonecos, tenha também vontade de aprender, embora os bonecreiros mais antigos nem sempre estivessem disponíveis para permitir a aproximação de qualquer pessoa, pretendendo guardar alguns segredos, como por exemplo o uso da palheta. Havia também uma certa disputa entre quem tinha aprendido com determinados mestres.
Quando os bonecreiros trabalhavam de feira em feira, em grandes estruturas que acolhiam público no seu interior – os pavilhões de feira - tinham necessidade de recorrer a um maior número de empregados, a quem ensinavam a arte. Mais tarde, muitos desses aprendizes saíam dos pavilhões para fazer espetáculos por conta própria mas, não tendo recursos para manter estruturas tão grandes como os pavilhões, acabavam por optar por formas que permitiam uma autonomia maior, o que acontece com a guarita.
Atualmente, os bonecreiros aprendem por ver, por imitação e também através do contacto uns com os outros. Seguem-se as relações de aprendizagem dos bonecreiros em atividade:
Francisco Mota: aprendeu com Domingos Moura, antigo mestre bonecreiro do Porto.
João Costa: aprendeu a utilização da palheta com o marionetista catalão Toni Rumbau e a encenação dos espetáculos com José Gil.
Jorge Soares: aprendeu com Manuel Dias, com quem iniciou o contacto numa ação de formação.
José Gil: aprendeu de forma autodidata através do convívio com António Dias.
Manuel Dias: Aprendeu por ver o Mestre António Dias e, mais tarde, pelo contacto com João Paulo Seara Cardoso.
Nuno Correia Pinto: Aprendeu com João Paulo Seara Cardoso e a utilizar a palheta com José Gil.
Raul Constante Pereira: Aprendeu com João Paulo Seara Cardoso.
Rui Sousa: Aprendeu com José Gil.
Sara Henriques: Autodidata a partir de João Paulo Seara Cardoso, com quem trabalhou no Teatro de Marionetas do Porto.
Sérgio Rolo: Aprendeu com José Gil.
Vítor Costa: Aprendeu com o pai, João Santa-Bárbara.
Filipa Mesquita: Aprendeu de forma autodidata a ver os outros bonecreiros durante os encontros.
Fernando Cunha: Aprendeu a palheta com José Gil e as marionetas de forma autodidata.
Ricardo Ávila: José Gil passou-lhe a palheta e as marionetas de forma autodidata e a ver os colegas nos encontros.
José Quevedo: aprendeu a manipulação com vários marionetistas e a palheta com Fernando Cunha.
Tendo em conta estes dados, a maioria dos bonecreiros existentes vem da mesma linhagem, cujo principal impulsionador foi João Paulo Seara Cardoso que, tendo sido o único que aprendeu diretamente com António Dias – no sentido em que Dias o ensinou deliberadamente (CARDOSO: 2012) – passou, por sua vez, o saber a outros marionetistas que continuaram a tradição. José Gil também tem ensinado uma geração de marionetistas mais novos que o procuram com vontade de aprender teatro Dom Roberto. Data: 2023/12/19 Modo de transmissão oral Idioma(s): Português Agente(s) de transmissão: Os próprios bonecreiros, sendo normalmente o bonecreiro aprendiz o agente mais ativo e de quem parte a vontade de aprender.
Origem / Historial:
O teatro itinerante de fantoches é comum em vários países da Europa, tendo raízes na Commedia d’ell Art, e na personagem Pulcinella, que influenciou a maioria dos fantoches tradicionais europeus. Partindo de Itália e percorrendo muitos dos países da Europa, no que Toni Rumbau apelidou de “rotas de Pulcinella” (RUMBAU: 2014), os espetáculos de marionetas de luva foram-se disseminando por vários países fazendo surgir personagens e reportórios com bases comuns, mas também características diferenciadoras em cada país: Pulcinella em Itália, Punch em Inglaterra, Don Cristóbal em Espanha, Kasparek na Aústria e Europa Central, Guignol em França.
No que diz respeito a Portugal, não se sabe ao certo quando se deu a introdução do teatro de marionetas ambulante e a própria história do Teatro Dom Roberto está ainda por escrever. A verdade é que os historiadores nunca se debruçaram sobre este tipo de teatro e, como não existe reportório escrito e os espetáculos eram feitos na rua, os registos são praticamente inexistentes, dificultando a investigação. A história desta arte perde-se no tempo e os registos que nos chegam são recentes e já tardios na medida em que não cobrem os seus tempos áureos. João Paulo Seara Cardoso tem a sua explicação para este facto:
“Heróis da marginalidade artística, [os bonecreiros] eram nesses tempos vistos como gente pobre sem eira nem beira, que tinham a única virtude de divertir o povo. Os historiadores teatrais não lhes registaram a memória.” (CARDOSO: s.d.)
No seu livro “Notas para a História dos Bonifrates, Presépios, Fantoches, Robertos e Marionetas em Portugal”, Pedro Branco fala-nos da presença frequente de “presépios”, (tratando-se precisamente de presépios animados com marionetas) e bonifrates (nome que era atribuído às marionetas) no Portugal dos Séculos XVI e XVII (BRANCO: 1983).
No século XVIII a presença do teatro de marionetas em Portugal, ganha uma outra dimensão com o surgimento do Teatro do Bairro Alto, onde António José da Silva, “o Judeu” fazia representar as suas óperas joco-sérias para marionetas. Data, também do período setecentista, uma “Provisão do Desembargo do Paço” de 1738, que regulamenta a apresentação com “figuras artificiais” no Hospital de Todos os Santos:
“Pedindo-me eu fizesse mercê mandasse declarar que o referido privilégio concedido ao hospital, e o uso dele, compreendesse também estas representações que se faziam com figuras artificiais e que por ele pudessem ser suplicantes proibir que se não fizessem sem licença do hospital e em lugar que por ele não fosse assinalado da mesma forma que as comédias e óperas. Visto que alegaram informação que se ouvira (?) pelo… Francisco Nunes Cardeal Luis que foi dos feitos de minha fazenda e coroa, digo de minha coroa e fazenda, ouvindo as partes, resposta do procurador da mesma coroa a que se deu vista e não teve duvida… por bem declarar que o privilégio ao hospital e de que os suplicantes… e uso dele, compreenda também as representações que fizeram com figuras artificiais e mando por que ele possam os suplicantes proibir que se façam sem licença do mesmo hospital e em lugar que por ele não seja assinalado da mesma forma que as comédias e óperas, na forma que pedem.”
No entanto, tal como também afirma Pedro Branco, é mais provável que estas marionetas fossem de vara, do que de luva (como é o caso dos robertos):
“Acerca dos bonecos em si mesmos, diremos, por não termos testemunho em contrário, que parece ter sido comum o boneco articulado por arame e cortiça. Esse tipo de materiais apontam para uma manipulação superior, talvez com arames, igual ou do mesmo tipo da que ainda hoje é usada pelos bonecos de Santo Aleixo” (BRANCO: 1983).
É, com toda a certeza, no século XIX, que já podemos falar da presença de marionetas de luva e de espetáculos em estruturas semelhantes às guaritas atualmente utilizadas, o que se pode comprovar nalgumas imagens da época. Uma dessas imagens, inserida na Colecção de Costumes Portugueses (BRANCO: 1983) mostra um bonecreiro que utiliza o capote como uma guarita, onde uma criança, no interior, manipula dois fantoches para a audiência. Uma outra gravura, atribuída a Nicolas Delarive mostra um pano preso numa porta, sobre o qual aparecem marionetas de luva.
É também nessa data que terá surgido o nome de Roberto, atribuído às marionetas de luva. Não é clara a sua origem, mas a personagem “Roberto” acabou por dar nome aos espetáculos e mesmo a outras marionetas de luva, generalizando-se para estas a designação de “robertos”. Uma das razões mais comumente apontadas é o facto de ter existido, no século XIX, um empresário de teatro de marionetas com o nome de Roberto Xavier, que “emprestou” o nome aos bonecos. Outra das opiniões é que a denominação é proveniente de uma comédia de cordel do século XVIII, intitulada “Roberto e o Diabo”, baseada na vida de Roberto I da Normandia (CARDOSO, s.d.). A primeira hipótese aponta-nos no sentido de que sempre existiu um carácter profissionalizante na arte e mesmo estruturas de dependência a nível de hierarquia laboral que revelam a existência de verdadeiros empresários de teatro, mas também de executantes que se encontravam na dependência dos primeiros.
No século XX, a presença de robertos nas feiras seria já bastante comum, sendo que em 1905, Mário Costa relata a existência de fantoches na feira do Campo Grande:
“Não esqueceram também o “Theatro de Marionettes” (bonecos articulados e falantes), cujas pantominas o actor Estavão Amarante, entre bastidores, ajudou a animar; e as barracas de fantoches ou robertos, entre os quais estavam o “Guignol Teatro” e o “Teatro Nova Aorora” (era precisamente com esta ortografia que, em 1905, estava escrito o letreiro do último), que, como isca, davam aos passeantes o bónus de presenciarem gratuitamente, no exterior, uma parte dessa peça de maior movimento e espectacularidade, que se não era o noivado do sepulcro, era qualquer outra peça que acabava invariavelmente com grande pancadaria.” (BRANCO: 1983)
As feiras foram, durante todo esse século, palco de vários espetáculos de marionetas, nomeadamente nos pavilhões onde se desenrolavam os teatros e onde eram utilizadas tanto marionetas de fios como de luva. Segundo Henrique Delgado, o surgimento dos pavilhões de feira deveu-se à dificuldade que os marionetistas tinham em apresentar-se nas salas de teatro tradicionais (RIBEIRO: 2011). No início do século, estes pavilhões itinerantes tiveram uma importante função no desenvolvimento do Teatro de Dom Roberto. Muitas vezes, os espetáculos de marionetas de luva eram feitos antes dos teatros com marionetas de fios, ambos dentro de pavilhões que chegavam a levar 400 pessoas no interior e davam trabalho a um número razoável de pessoas, desde marionetistas a músicos. Sobre um destes pavilhões, diz-nos Manuel Rosado que “media bem vinte metros de cumprimento por oito de largura. A altura aproximada era de cerca de dois metros na parte da frente e três onde trabalhavam os fantocheiros. É o que se pode chamar um verdadeiro teatro de feira.” (RIBEIRO: 2011)
A verdade é que o teatro de marionetas sempre teve uma presença forte em feiras e mercados, não só em Portugal, mas por toda a Europa, onde por vezes surgiam associados a outro tipo de mister: por exemplo o criador de Guignol, Laurent Morguet, fazia das marionetas um pretexto para distrair os clientes enquanto lhes arrancava os dentes. Autênticas casas de espetáculo ambulantes, os pavilhões de feira, contavam ainda com pequenas orquestras que serviam para acompanhar os teatros, mas também para chamar o público:
“[Joaquim Pinto] Tinha o seu quarteto privativo para fazer propaganda, como de facto tocavam bem as pessoas diziam: “Isto é bom! Isto lá dentro deve ser bom também! Só a música vale o dinheiro! E os fantoches? É rir a bandeiras despregadas!” de facto, o público gostava. Cada peça tinha a sua composição musical, adequada.” (RIBEIRO: 2011)
Já na segunda metade do século XX, a maior parte de registos existentes sobre bonecreiros foi feita pelas mãos do marionetista e investigador Henrique Delgado, que documenta a vida de muitos deles em artigos publicados na revista Plateia. No entanto, comparativamente com o que terá acontecido em anos anteriores, o número de bonecreiros existentes seria já então escasso. Nestas recolhas, muito personalizadas e centradas nos marionetistas existentes, encontramos uma arte que passa de geração em geração e que se dissemina por todo o país. É precisamente através desta recolha de Henrique Delgado que conseguimos fazer uma verdadeira genealogia da forma de transmissão do saber que chegou até aos bonecreiros atuais.
O primeiro marionetista conhecido do qual se encontra documentação a este nível é Faustino Duarte, que terá aprendido com Joaquim Pinto, “o antigo”. Numa fotografia, pertencente ao espólio do Museu da Marioneta, aparece o próprio Faustino com a sua pequena orquestra e uma marioneta do “Marquês de Pombal” que aparecia na peça “Marquês de Pombal e os Jesuítas”. Numa entrevista dada por Emílio Silva, trompetista que com ele trabalhava, pode ler-se:
“Representávamos o Marquês de Pombal, a tourada à espanhola, o Barbeiro de Sevilha… o rei dos fantocheiros foi Faustino Duarte… utilizávamos normalmente gambiarras de carbureto, mas quando havia luz elétrica era esta a utilizada… trabalhava-se muito, chegava-se a começar os espetáculos às 3h da tarde e acabar às 4h da madrugada. No Inverno, Faustino vendia doces… estávamos em casa à espera das feiras.” (SANTOS: 2007)
Joaquim Pinto (1899-1968) era filho de Faustino Duarte e aprendeu o ofício com a família, adotando o nome do antigo mestre de seu pai. Chegou a ter 400 marionetas com as quais trabalhava no seu pavilhão, 5 músicos, 3 “palhetas” e ainda 2 ajudantes. Alcançou bastante sucesso, chegando a referir: “(…) Os apreciadores de fantoches contam-se por umas largas dezenas de milhar. Cobrando dez tostões por cada entrada, muitas feiras havia em que enchíamos completamente um baú daqueles em que costumamos guardar os bonecos, com moedas de um escudo. E eram tantos os espetáculos que apresentávamos nas feiras de maior movimento que só tirava a “palheta” da boca para comer.” (DELGADO: 1968)
Henrique Duarte, também filho de Faustino Duarte, enveredou igualmente pela vida de bonecreiro por conta própria. A vida destes marionetistas, que tinham de se deslocar com a guarita à porta e de terra em terra, e de quem dependia na exclusividade a realização de um espetáculo fisicamente muito exigente não era fácil, como refere o próprio Henrique Duarte:
“Estar sozinho dentro de uma pequena “guarita” animando diversos personagens constitui uma tarefa demolidora. Muitas alturas há em que seguro dois bonifrates numa mão enquanto com a outra manipulo um boneco que volteia um pau. Depois há que manter sempre humedecida a fita de nastro que envolve as palhetas metálicas que introduzimos na boca. Para isso, somos obrigados a evitar o vinho, as sardinhas, as azeitonas que, como deve saber, impedem o funcionamento normal das glândulas salivares.” (DELGADO: 1968a)
Manuel Rosado chegou a trabalhar com Joaquim Pinto no Pavilhão Scalabitano, tendo mais tarde criado o seu próprio Pavilhão Mexicano, com o qual percorreu todo o país, tendo sido também o responsável por passar a arte de teatro Dom Roberto a aprendizes que com ele trabalhavam, nomeadamente a João Santa-Bárbara e a Domingos Moura, enquanto António Dias, embora tendo trabalhado com ele, aprendeu com “o mais velho dos Faustinos”, referindo-se a Faustino Duarte.
Embora muitos marionetistas pudessem aprender o ofício através da família, a verdade é que tinham depois de se estabelecer por conta própria, construindo as suas próprias estruturas cénicas e bonecos. Na decadência dos pavilhões de feira, os marionetistas mais novos passaram a optar por um tipo de itinerância levando com eles apenas a barraca de Robertos, com a qual se deslocavam por todo o país, o que constituía também um ato de independência em relação aos empresários dos pavilhões. No entanto, mesmo com as suas barracas individuais, os bonecreiros continuavam a depender das licenças passadas nas Câmaras Municipais e Governos Civis.
A relação destes marionetistas com o teatro profissional ou com outros tipos de arte era frequente, como é o caso de Manuel Rosado que esteve no Teatro Dona Maria e colaborou no Teatro de Mestre Gil (DELGADO: 1967), assim como num filme em Espanha chamado “A Filha Maldita” (DELGADO: 1968c); Joaquim Pinto, por sua vez, chegou a trabalhar no Teatro São Carlos (RIBEIRO: 2011, p. 142) e António Dias fez as cenas de fantoches no filme de Ernesto de Sousa, “Dom Roberto”.
Ainda segundo Henrique Delgado, as peças mais apresentadas nos pavilhões de feira eram as seguintes: “Marquês de Pombal e os Jesuítas”, “O Milagre de Santa Isabel”, “Nossa Senhora da Nazaré”, “Os Milagres de Santo António”, “O Zé da Aldeia”, “O José do Telhado”, “O Sapateiro Incendiário”, “O Diabo atrás da Porta”, “A Princesa Encantada”, “A Rosa e os Três Namorados”, “Carolina na Ponta da Unha” e “Largada de Touros em Vila Franca”. Francisco Mota refere ainda uma outra peça, intitulada “O Assalto à Casa do Lavrador” (MACHADO, 1998).
O reportório de início do século seria muito mais vasto que o atual e algum dele incluía histórias de carácter político, como por exemplo “O Marquês de Pombal e os Jesuítas”, sobre o qual João Paulo Seara Cardoso escreve:
“Uma curiosa obra, bem representativa do modo como o génio popular soube satirizar um trágico período da nossa história, é uma comédia intitulada “O Marquês de Pombal e os Jesuítas”. Através dela, o povo exteriorizou o seu ódio profundo à impiedosa Inquisição portuguesa e, uma vez mais, são as mãos mágicas dos bonecreiros que dão forma ao sentimento popular: no final da peça, os Inquisidores, que se preparam para fugir para o Brasil, são atirados de um barco para as águas infestadas de tubarões, que os vão devorando. De cada vez que isso acontece, Dom Roberto exclama: “Mais um padreca!”. E a assistência rejubila e pede mais…” (CARDOSO: s.d.)
Houve, portanto, reportório que se perdeu, existindo evidências que o mesmo se ia modificando e adaptando a temas mais atuais de modo a prender a atenção da audiência, como é o caso das histórias do Zé do Telhado, da peça “Os Palhaços”, de António Dias ou da adaptação da famosa série televisiva “Lone Ranger” a teatro de marionetas, por Manuel Rosado. O Museu da Marioneta conserva grande parte do espólio deste bonecreiro, tanto nas suas reservas, como em exposição, onde se pode observar não só a diversidade de personagens e histórias, mas também de materiais utilizados na construção de marionetas.
A precariedade sempre foi uma constante no Teatro de Dom Roberto: embora existissem verdadeiros empresários da área, sobretudo na época em que os pavilhões de feira tinham sucesso, havia também fases, especialmente nos meses de Inverno, em que os marionetistas tinham de se dedicar a outro mister para puderem subsistir. Depois da decadência desses pavilhões, muitos dos bonecreiros passaram a trabalhar por conta própria, percorrendo o país na guarita individual. Henrique Delgado traça o retrato de alguns deles mas já no final da década de 60, o que nos leva a crer que terá havido muitos mais nos anos anteriores. Estes relatos mostram-nos a diversidade de formas e locais de atuação e mesmo diferenças entre as marionetas. Por exemplo, Clarinda de Azevedo, única mulher marionetista conhecida, usava um macaco como chamariz para os espetáculos e atuava na rua, mas também em festas familiares e em festas para crianças. (DELGADO: 1968b) Por sua vez, Ernesto de Abreu, refere que, no início da sua atividade, não usava palheta: “Como era criança, tinha a voz muito fininha e não precisava da “palheta”. Só mais tarde, quando a minha voz engrossou, é que a passei a usar” (DELGADO: 1970). Augusto Sérgio que, em Tavira, atuava numa guarita triangular, aprendeu a arte com o seu pai António Pereira Guimarães, natural de Braga, e que conjugava esta profissão com outros ofícios como músico e afinador de pianos. O seu Dom Roberto era uma personagem de barba preta e vestido à árabe: «A atenção dos “praças” redobrou com o aparecimento da figura do “soldado 31”, vestido com o fato verde de campanha. Junto dele colocou-se um estranho personagem de barba negra trajado como se fosse um árabe. Pelo diálogo descobrimos que era o Roberto» (DELGADO: 1969a, p.21). É também este marionetista que refere os vários nomes pelos quais o teatro de Dom Roberto era conhecido: «De Vila Real de Santo António até Lagos, o povo chama-lhes “Roberto e Joana”. Em Portalegre, “Robertos de Caixa Murrada”. No Minho, “Zé Broas”. No Alentejo, “Robertos de Santo Aleixo”. Na Beira Alta e na Beira Baixa, chamam-lhes “Robertos, nas cidades e “Títeres” nas aldeias» (DELGADO: 1969b).
Cesário da Cruz Nunes foi um dos bonecreiros que atou em Lisboa, entre 1946 e 1952. Entusiasmou-se quando viu um espetáculo de António Dias na Feira da Ladra e quis, também ele, começar a fazer robertos. Passados os primeiros treinos com a palheta e a construção dos primeiros bonecos, começou a apresentar-se nas ruas. O sentimento que nutria pelos bonecos está bem patente na forma como falava deles: “Eu dentro da barraca a trabalhar com Robertos, ria-me deles, via aquilo e chegava a pontos de me rir. Aquilo sai de mim, e olho para aquilo e penso que é outra coisa e que não sou eu.” (SA MARIONETAS: 2004)
Um dos discípulos que aprendeu com Manuel Rosado é João Santa-Bárbara, pai de Vítor Santa-Bárbara, que trabalhou como aprendiz no seu pavilhão tendo mais tarde se estabelecido por conta própria. João Santa-Bárbara percorria o país com a sua família, atuando nas feiras durante o dia, com Robertos e marionetas de fios, utilizando a mesma guarita para servir de abrigo à noite. Mais tarde, conciliava o seu trabalho na Câmara Municipal de Cascais com o ofício de bonecreiro, percorrendo as praias com a sua barraca no período da tarde.
Após a decadência dos pavilhões de feira, também os espetáculos de robertos em guaritas individuais estiveram perto de desaparecer, não fosse a persistência de João Paulo Seara Cardoso que aprendeu com o mestre António Dias. No início dos anos 80, o declínio do Teatro Dom Roberto era visível no número diminuto de bonecreiros que o praticavam. As duríssimas e precárias condições de trabalho e, sobretudo, o fraco retorno económico que advinha das representações, fez com que o número de bonecreiros fosse diminuindo sem que se conseguissem cativar novos aprendizes que garantissem a sobrevivência do Teatro Dom Roberto. O filme Dom Roberto, de Ernesto de Sousa é um retrato claro do quotidiano dos antigos bonecreiros, muito próximo do que seria a vida do próprio António Dias, em que o argumentista Leão Penedo se baseou: aqui, João Barbelas, a personagem principal interpretada por Raul Solnado, percorre a cidade com o seu teatro de fantoches, não perdendo nunca a esperança de encontrar um local para viver.
A grande parte dos marionetistas contemporâneos aprendeu com João Paulo Seara Cardoso (Raul Constante Pereira, Manuel Costa Dias, José Gil, Nuno Correia Pinto, Sara Henriques), mas alguns deles foram levados a aprender a arte quando viram o mestre António Dias em prática (nomeadamente Manuel Costa Dias e José Gil). Francisco Mota é dos únicos em atividade que aprendeu diretamente com o mestre Domingos Moura, de quem ainda hoje conserva o espólio.
Existe atualmente uma terceira geração de bonecreiros que aprenderam com José Gil: João Costa, Rui Sousa e Nuno Correia Pinto (este apenas a arte de falar com a palheta). Para além de realizarem Teatro de Dom Roberto, os marionetistas dividem-se também por outras profissões, nem sempre relacionadas com o teatro de marionetas ou com o teatro profissional stricto sensu.
Se os antigos marionetistas não viviam continuamente do Teatro Dom Roberto, pois muitos tinham de se dedicar a outros trabalhos durante o Inverno, para poderem garantir rendimento suficiente, hoje em dia o Teatro Dom Roberto continua a não garantir subsistência para nenhum dos bonecreiros envolvidos. A vida profissional de muitos deles está ligada ao teatro ou ao teatro de marionetas (como é o caso de Jorge Soares, José Gil, Manuel Dias, Nuno Correia Pinto, Raul Constante Pereira, Rui Sousa, Sara Henriques e Sérgio Rolo), mas outros têm outras profissões, sendo o teatro Dom Roberto a única atividade no âmbito teatral a que estão ligados (Francisco Mota, João Costa, Vitor Costa). Se antigamente a aprendizagem era feita no âmbito dos pavilhões, hoje em dia é feita diretamente mestre-aprendiz, mas principalmente por solicitação do pretendente a aprendiz que procura marionetistas mais experientes. No entanto, ainda que o momento inicial seja ligeiramente diferente, o caminho de treino que os bonecreiros têm de fazer sozinhos mantém-se. Tratando-se de um trabalho solitário, com nuances muito pessoais e exigentes, como é o exemplo do treino com a palheta, cada um dos marionetistas tem de passar um período de ensaios sozinho, no qual treina a manipulação e encenação do espetáculo.
Para além disso, deve ter-se em conta uma outra característica dos marionetistas atuais: a iniciativa de fazerem investigação para conhecerem melhor a tradição e para suportarem os seus próprios espetáculos é muito comum. O caso de José Gil é o mais claro, tendo resultado inclusive na sua dissertação de mestrado e na publicação de um livro: “Teatro Dom Roberto. O teatro tradicional itinerante português de marionetas. O Saloio de Alcobaça e os novos palhetas.” Foi também José Gil que preservou o espólio de Cesário da Cruz Nunes, através da professora Lúcia Serralheiro. Jorge Soares relata (SOARES, 2014) ter feito alguma pesquisa durante a qual, na recolha de testemunhos por via oral, tomou conhecimento de um antigo bonecreiro amador, de nome António Saínhas, residente em Messines. Já na região norte, Francisco Mota, detém o espólio do antigo bonecreiro Domingos Moura tendo contribuído para a divulgação do teatro de robertos através de algumas exposições itinerantes que realizou com esses objetos. Rui Sousa, depois da atuação num espetáculo em Ílhavo, em que ouviu chamar aos seus bonecos “carolinos”, apercebeu-se, em conversa com a audiência, que haveria um antigo bonecreiro de nome Armando Ferraz, da Gafanha da Nazaré, que havia já sido referenciado por Francisco Mota. Foi também Rui Sousa que ouviu relatar de um parente mais idoso que nas tiradas de cortiça do Alto Alentejo, apareciam bonecreiros que montavam um pano nas carroças que serviam para transportar cortiça e que entretinham com os seus bonecos os trabalhadores e os filhos destes, que muitas vezes seguiam com os pais para os campos (SOUSA: 2014). Reportório tradicional foi também recuperado por Ildeberto Gama, nas suas “Histórias do Zé Broa”, da companhia Alma d’Arame, em que se utiliza, em vez de uma guarita, uma estrutura de pano que se fixa nos ombros, enquanto o marionetista, com um capuz preto que lhe cobre a cara, manipula os bonecos. Esta estrutura foi inspirada numa fotografia em que Manuel Rosado aparece com uma construção semelhante a que se chamava “cogula”. (DELGADO: 1970a)
Outra mudança no modo de atuação está relacionada com a forma como o Teatro Dom Roberto é utilizado como meio, ainda que não exclusivo, de obter rendimento. Os bonecreiros antigos faziam-no com as atuações nos pavilhões e também com o “migalho” (nome atribuído às moedas) que recebiam na rua. Tendo-se alterado as circunstâncias socioeconómicas no país, sobretudo nos últimos quarenta anos, os atuais bonecreiros vendem os seus espetáculos a organizações exteriores, como autarquias, organizações de festivais, museus ou empresas. No entanto, alguns deles continuam ainda a fazer teatro de robertos “à moeda” (recebendo o que o público oferece), mas mais por gosto do que por necessidade. Chega também a acontecer que, mesmo em espetáculos contratados, algumas pessoas com mais idade que estão a assistir acabam por ir atrás da guarita oferecer dinheiro ao bonecreiro, pois esse hábito parece estar enraizado. No geral, assistiu-se a uma institucionalização do Teatro Dom Roberto, que lhe dá um novo estatuto, mais formal e mais próximo do teatro profissional.
No entanto, apesar destas modificações, o teatro de Dom Roberto é a única tradição de teatro de rua que tem permanecido ao longo dos anos praticamente disseminado por todo o território de Portugal Continental. Embora a tradição tenha estado em perigo de desaparecer nos meados dos anos 80 do século XX, nunca deixou de estar presente na memória das populações, sendo tal facto ainda hoje bastante visível nos espetáculos de rua dos bonecreiros. O Teatro de Dom Roberto tornou-se um elemento importante na vivência do espaço público e na ocupação do mesmo, tendo sobrevivido de geração para geração de bonecreiros quer pertencessem ou não à mesma família, havendo continuação da transmissão do saber, muito embora as circunstâncias socio culturais tenham sido alteradas.
Nos últimos anos, o Museu da Marioneta, tem tido a especial preocupação de preservar o espólio de bonecreiros mais antigos, assim como de divulgar e promover o trabalho dos marionetistas tradicionais, nomeadamente programando em Lisboa apresentações regulares do Teatro Dom Roberto em que todos os bonecreiros são envolvidos, proporcionando também desta forma, encontros entre os protagonistas desta arte.
Direitos associados :
Tipo
Circunstância
Detentor
Direitos coletivos de caráter consuetudinário, direitos de autor
São detentores dos direitos relativos ao Teatro Dom Roberto os atuais bonecreiros