Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_2017_002
  • Domínio: Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais
  • Categoria: Pesca e aquicultura
  • Denominação: Arte-Xávega na Costa da Caparica.
  • Outras denominações: Não aplicável.
  • Contexto tipológico: A Arte-Xávega é uma técnica de pesca tradicional, de cerco e alagem para terra, com recurso a uma embarcação utilizada para largar as cordas e as redes.
  • Contexto social:
    Comunidade(s): Comunidade Piscatória da Costa da Caparica
    Grupo(s): Companhas
    Indivíduo(s): Pescadores
  • Contexto territorial:
    Local: Costa da Caparica; Fonte da Telha.
    Freguesia: Costa da Caparica
    Concelho: Almada
    Distrito: Setúbal
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente \ Lisboa \ Península de Setúbal
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: Durante todo o ano dependendo do estado do mar.
    Data(s): Não aplicável.
  • Caracterização síntese:
    A Arte-Xávega é uma técnica de pesca tradicional definida pelos pescadores da Costa da Caparica como uma rede de cerco envolvente que é lançada no mar e depois puxada para terra, classificada pelo decreto parlamentar nº 7/2000 de 30 de Maio, como pesca por arte envolvente-arrastante e regulamentada pela portaria 1102-F/2000 de 22 de Novembro. A Arte, como é designado o conjunto constituído por cordas, alares e saco, é lançada ao mar a partir de uma embarcação, deixando em terra a ponta da corda designada por banda panda. Depois de largar a rede, a embarcação regressa à praia trazendo a outra ponta de corda, designada por banda barca. Logo que a segunda corda chega à praia inicia-se o processo de alagem em simultâneo de ambas as cordas, puxando para a praia a rede cuja boca do saco se mantém aberta através da utilização de boias e de pesos. Esta técnica de pesca, praticada também em outras regiões do país, foi trazida para a Costa da Caparica por comunidades piscatórias de Ílhavo e Olhão, responsáveis pelo povoamento do lugar. Adaptando-se às praias e ao mar da Costa da Caparica, a Arte-Xávega adquiriu características específicas que a distinguem de práticas semelhantes utilizadas em outras regiões do país.
  • Caracterização desenvolvida:
    Cadeia Operatória


    A pesca com a Arte-Xávega é praticada em outras regiões do país nomeadamente na Beira Litoral (Mira, Vieira de Leiria ou Torreira por exemplo, foi trazida para a Costa da Caparica por comunidades piscatórias de Ílhavo e Olhão, as quais estão na origem do seu povoamento a partir da segunda metade do século XVIII. Adaptando-se às praias e ao mar da Costa da Caparica, a Arte-Xávega foi evoluindo e adquirindo um conjunto de meios operacionais e técnicas específicas que a diferenciam relativamente às práticas idênticas, ainda utilizadas nos locais de origem. Nesse sentido considera-se que enquanto manifestação património cultural imaterial a Arte-Xávega na Costa da Caparica assume características próprias que importa salvaguardar.

    A Arte-Xávega é praticada por grupos de pescadores designados companhas. Por sua vez a companha é composta pela tripulação da chata (embarcação) e a companha de terra. Cada companha é governada pelo arrais que pode ou não ser o proprietário (indivíduo ou sociedade) da embarcação, das redes e dos tratores utilizados na pesca.

    A tripulação da chata é composta por cinco camaradas: O arrais do mar – conduz a chata e é responsável por decidir onde e como se lança a rede no mar. O calador – responsável por largar a rede, tarefa feita por três camaradas: um que larga as boias (também designadas cortiças ou pandas) e outro larga o chumbo por bombordo; um terceiro que lança o saco por estibordo junto à popa. Remadores – dois camaradas que manobram um remo cada, no momento em que o barco sai da praia e tem de ultrapassar a linha da rebentação. Um dos remadores, depois de largar o remo segura o pau da corda, e ambos ajudam a lançar a rede. Compete ainda à tripulação arrumar a rede e as cordas dentro do barco.

    A companha de terra é composta pelo arrais de terra, os tratoristas e restante pessoal de apoio às diversas tarefas. Cabe ao arrais de terra decidir o local da praia onde se faz o lanço e coordenar o processo de alagem (puxar) da rede dando instruções aos tratoristas relativamente à velocidade que deve ser aplicada no alador e o avanço dos tratores, que se vão aproximando entre si à medida que a boca da rede se aproxima da praia. Em terra trabalha um número variável de pessoas de ambos os sexos, entre quinze a vinte indivíduos, que realizam diversas tarefas, nomeadamente: colher a corda à medida que esta é puxada pelo alador mecânico ligado à tomada de força do trator; recolher e desembaraçar a rede quando esta chega à praia; escolher e lavar o peixe; preparar caixas para acondicionamento do peixe. Cabe ainda à companha de terra manobrar o trator que reboca a embarcação na entrada e na saída, manobrar os tratores com os aladores mecânicos e efetuar o transporte do peixe para a lota.

    A companha integra ainda o mestre de redes, que pode ou não participar na pesca, tem a responsabilidade de construir e fazer a manutenção das redes e cordas utilizadas para a pesca, e o escrivão responsável por registar os membros da companha que participam em cada jornada de pesca e contabilizar o valor do peixe vendido de cujo total é retirado o valor correspondente às despesas (principalmente combustível) sendo o restante dividido em partes iguais cabendo a cada membro da companha receber, em função das suas tarefas e do acordado com o patrão da companha, entre duas a quatro partes por jornada de pesca, sendo este processo designado por “fazer contas à companha”.

    Cada jornada de pesca é composta por um número variável de lanços dependendo da quantidade e qualidade do peixe capturado em cada lanço, do estado do mar e da capacidade de trabalho da companha, cabendo ao Arrais a decisão de quantos lanços “dar” por jornada.

    O processo de pesca utilizado na Arte-Xávega é composto de várias etapas que constituem o lanço e inicia-se com a entrada do barco na água, realizada com a ajuda de um trator que reboca a embarcação até ao momento em que, com a ajuda da companha que empurra manualmente, a altura de água permita ao barco flutuar. Os remadores remam então para vencer a rebentação e atingir a profundidade suficiente para acionar o motor. Na praia fica atada a um dos tratores a ponta da corda designada por banda panda. À medida que a embarcação navega perpendicularmente à linha de costa a corda vai sendo largada por bombordo, guiada pelo pau da corda - uma vara de madeira que se encosta à amurada para evitar que a corda “varra” a amurada. Quando faltam oito cordas para chegar à rede, é presa à corda uma boia esférica de cor laranja, procedimento que se repete oito cordas depois de lançar a rede. Estas duas boias possibilitarão depois ao arrais de terra verificar (através do alinhamento das boias) se a rede vem direita quando está a ser alada, pois caso contrário o cerco abre-se e o peixe escapa.

    Quando termina a largada da banda panda a embarcação abranda e começa a navegar paralelamente à linha de costa. Preso à última corda é deitado ao mar o calão da banda panda, onde está amarrado um peso que tem por função evitar que o alar se enrole na corda. Segue-se o lançamento do alar (que é como um braço do saco, feito em rede): dois pescadores começam por lançar a tralha das cortiças e a tralha do chumbo, que manterão o alar aberto. Depois lançam a gacheta com os cabos da boca de cima com flutuadores e o cabo da boca de baixo com chumbos (apetrechos que garantem a abertura do saco). Simultaneamente é lançado por estibordo o saco, e por último o calamote (um cabo com uma boia na ponta).

    Uma vez lançado o saco começam a largar os alares da banda barca da mesma forma que descrito para a banda panda. Assim, após largar o peso colocado no calão, a embarcação muda de rumo em direção à praia largando as cordas da banda barca.

    Chegada à praia, a embarcação é rebocada pelo trator que a encalha na areia. De imediato a ponta da corda da banda barca é enrolada no alador e ambos os tratores iniciam a alagem da rede puxando em simultâneo as cordas da banda barca e da banda panda. No início da alagem os tratores com os aladores encontram-se entre 200 a 300 metros de distância. À medida que chegam a terra as uniões das cordas assinaladas com sinais que indicam o respetivo número de cordas que ainda faltam, os tratoristas trocam sinais entre si confirmando que as bandas vêm paralelas. Tendo como referência o número de cordas largadas e as que já foram colhidas, o arrais de terra dá instruções aos aladores para avançarem, aproximando os alares e fechando o cerco. À medida que a corda da banda panda vai chegando, um pescador vai colhendo a corda em círculos fazendo molhos correspondente a quatro cordas que são atados e empilhados no trator, enquanto as cordas da banda barca são colhidas e enrolados no fundo da embarcação. Quando terminam as cordas, com a chegada dos alares da rede à praia, é necessário levantá-la à força de braços para evitar que os chumbos se enterrem na areia e a rede se parta. Os alares da rede da banda barca são desemaranhados e arrumados dentro do barco e seguidamente é colocada a gacheta e os alares da banda panda e são desfeitos os nós que prendiam os rolos das cordas.

    Quando o saco da rede começa a chegar à praia é sacudido para empurrar o peixe para o fundo e é puxado pela companha até à borda da água. O saco é arrastado pelo trator e aberto sobre um oleado, procedendo-se à escolha e separação do peixe em cestos (catitas). Outros elementos da companha pegam nos cestos depois de cheios e lavam o peixe na água do mar colocada em barricas, após o que deitam o peixe nas caixas que serão levadas à lota de imediato, transportadas por um trator.

    Uma vez vazio o saco é dobrado e colocado na amurada a estibordo, junto à popa da embarcação procedendo-se ao fecho do fundo do mesmo. Logo que a rede e as respetivas cordas se encontram devidamente arrumadas, a embarcação pode ser novamente rebocada para o mar e dar início a outro lanço.

    A distância da praia a que os lanços são feitos varia em função das decisões dos arrais, podendo variar entre os 2000 e os 500 metros. Apesar de legalmente as artes poderem ser lançadas até 3000 metros da praia, na Costa da Caparica não se fazem lanços a essas distâncias, em parte devido ao fato de a partir dos 2000 metros se encontrarem no mar outras artes de pesca que impossibilitam o uso da Arte- Xávega. Embora não seja possível definir uma regra, é prática comum fazer o cerco a maiores distâncias durante o dia, diminuindo a distância com o entardecer e durante a noite, pois segundo a experiência dos pescadores o peixe aproxima-se da costa ao anoitecer.

    O alcance dos lanços é determinado em função do número de cordas que são largadas, assim podem ser largadas sempre em conjuntos de quatro cordas (62, 58, 52, 48, 42 …), para saber o número de cordas que se largam ou que já foram colhidas é utilizado o sistema de contagem baseado em nós e laços referido no ponto 19.1 Património Móvel.


    Conhecimentos sobre ecossistema: marés, ventos, fundos, espécies.


    Enquanto sistema cultural a pesca tradicional não se reduz ao domínio tecnicista de um conjunto de procedimentos. Além de estar dependente dos meios necessários para a prática da atividade (embarcações, aparelhos de pesca e outras máquinas e ferramentas), o pescador tradicional necessita também de conhecer, tão profundamente quanto possível, o meio onde a pesca é praticada, constituindo esse saber um dos principais recursos dos quais depende o resultado do trabalho realizado. Sendo a pesca uma atividade de exploração direta dos recursos naturais, o mar e os ecossistemas marítimos constituem o património natural sem o qual a Arte-Xávega não se poderia praticar e do qual está absolutamente dependente, nomeadamente, porque parte das espécies capturadas são migradoras (a sardinha por exemplo) e só ocorrem no mar da Costa da Caparica em determinadas épocas do ano que se designam por Safras. Outro fator determinante do património natural associado a esta prática de pesca consiste na proximidade da foz e do estuário do Tejo cujas águas mais quentes e salobras atraem várias espécies de peixes e outros animais marinhos que aí se reproduzem ou desenvolvem.

    Por outro lado as capturas variam também em função da ocorrência de determinadas espécies nas áreas onde atuam as redes da Arte-Xávega que são lançadas a uma distância máxima de 2000 metros da praia, pelo que espécies que ocorram a distâncias superiores a essa não são capturadas pelas Artes, situação que poderá variar em função de fatores ambientais diversos que apresentam variações sazonais ou mesmo anuais. Algumas espécies abundantes no passado ou em anos anteriores podem escassear ou mesmo desaparecer, ou por outro lado podem abundar em determinado ano atingindo volumes de captura muito elevados. Por exemplo 2013 foi um ano de grande abundância de carapau, sem que houvesse memória entre os pescadores mais velhos de situação semelhante, paralelamente em 2014 a sardinha tem escasseado. Contudo o conhecimento desses fenómenos reduz-se à observação direta, sem que os pescadores detenham qualquer conhecimento acerca das razões os originam.

    O conhecimento adquirido pela experiencia, relativamente ao do comportamento das espécies piscícolas, indica que com o anoitecer o peixe se aproxima da costa, nesse sentido é prática comum fazer os lanços mais distantes da praia (62 cordas) enquanto o sol vai alto, diminuindo a distância à medida que anoitece realizando lanços mais próximos (32 cordas).

    Os pescadores experientes conseguem também identificar a existência de cardumes de peixe no mar, quer através do movimento à superfície da água quer pelos reflexos dentro de água em noites escuras (ardentia).

    Com base em conhecimentos empíricos alguns pescadores interpretam as condições meteorológicas como favoráveis ou desfavoráveis à pesca, por exemplo o vento de norte e nordeste é favorável à pesca, a presença de uma faixa de céu mais escuro paralela à linha do horizonte é indicação de Nortada Através da observação das ondas é possível reconhecer a existência, no fundos de areia, de fundões ou cabeços e nessa medida manobrar a alagem da rede evitando que a mesma se prenda na areia e se parta.

    A praia e os fundos de areia sem rochas ou outros obstáculos da frente atlântica da Costa da Caparica são igualmente condições naturais que estão diretamente associados à origem e à evolução desta prática de pesca tradicional.

    Importa ainda referir que a Arriba Fóssil da Costa da Caparica, resultante do recuo da linha de costa que constitui um elemento do património geológico e natural que marca toda a paisagem da Costa, ainda é utilizada pelos pescadores da Arte-Xávega como referência espacial. Em função do relevo e acidentes de terreno, certos pontos da arriba como pontos de referência em terra para localizar no mar os locais onde se realizam os lanços e cujas designações ainda persistem na memória dos pescadores mais idosos: Barreiras (pelo Norte); Rocha Alta (Praia do Castelo); Rego (entrada para a Charneca); Descida das Vacas (Praia do Rei); Pinheirinho; Morro do Sul; Morro do Norte; Fonte da Telha; Mina; Olhos de Água; Ponta da Rocha (boca da Lagoa de Albufeira).


    Construção e manutenção da chata e das redes


    A Arte-Xávega é praticada no mar com recurso a uma embarcação e uma rede (arte). Na Costa da Caparica as embarcações atualmente utilizadas designam-se chatas e são construídas em madeira ou em fibra de vidro sendo a sua construção pode ser realizada em diferentes locais de acordo com as indicações do armador. Por outro lado a tarefas de manutenção limpeza, calafetagem, pintura, bem como a realização de pequenas reparações é realizada pelos próprios pescadores e proprietários. As redes ou artes utilizadas na pesca abaixo descritas no ponto 19.1. são construídas por pescadores que dominam os conhecimentos necessários à execução e montagem das várias peças de rede e cordas que constituem a arte, estes pescadores desempenham um papel fundamental nas companhas e designam-se mestres de redes, são igualmente responsáveis pela manutenção e reparação das artes sempre que elas se partem ou rompem.
  • Manifestações associadas:
    Não aplicável.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: A prática da Arte-Xávega está ativa nas praias atlânticas da Costa da Caparica, sendo praticada por companhas de pesca da Costa da Caparica e da Fonte da Telha.

    As companhas integram necessariamente um arrais com cédula marítima com a categoria de arrais de pesca local. Os restantes membros da tripulação que embarcam devem possuir cédula marítima com a categoria de marinheiro/pescador. Os membros da companha de terra, que não embarcam, não necessitam de carteira profissional.

    Os arrais para além da habilitação legal para governar determinada embarcação (só pode ser arrais de uma embarcação e cada embarcação só pode ser governada pelo respetivo arrais), deve possuir autoridade, conhecimentos e experiência de pesca reconhecidos e respeitados entre os seus pares e pelo patrão ou dono da Arte. Embora não seja possível identificar e sistematizar as aptidões e competências necessárias ao desempenho das funções de arrais, segundo é possível perceber pelas conversas com os pescadores, trata-se de uma capacidade que se desenvolve e manifesta desde cedo entre os jovens pescadores e que só se encontra em alguns.

    Tradicionalmente, o trabalho nas companhas da Arte-Xávega iniciava-se na infância acompanhando os pais ou familiares. Entre os pescadores veteranos do século masculino era comum integrarem as companhas a partir dos 12 anos, executando tarefas como colher a corda, tirar a água do barco (Giro), quando embarcavam não podendo ainda remar seguravam o pau da corda (rapaz do Pau da Corda). As mulheres e raparigas que integram as companhas trabalham na praia, quando a alagem era realizada a cinto participavam nessa tarefa ao lado dos homens, atualmente participam na escolha, lavagem transporte e venda do peixe na praia aos banhistas.

    Do valor total da venda do pescado em cada jornada de pesca é retirada uma parte para o pagamento das despesas, o restante é dividido em partes em função do número de elementos que participou na jornada de pesca, cabendo a cada um dos elementos da companha de terra duas partes e aos que embarcam quatro partes.

    Quando a pesca é compensadora em quantidade e qualidade de peixe capturado o arrais divide uma porção de peixe em partes iguais designadas quinhão, cabendo um a cada elemento da companha.

    Data: 2015/03/09
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Pescadores da Arte-Xávega
  • Origem / Historial:
    Baldaque da Silva na obra Estado Actual das Pescas em Portugal refere as praias da Caparica onde se faz: «unicamente a pesca costeira por meio de artes de arrastar para terra» (SILVA: 1891, p. 137). Esta arte de puxar para terra tem uma origem remota que segundo alguns autores remonta à pré-história, estando documentada em diversas regiões do Mediterrâneo mas também no Índico. A pesca com redes de Arte-Xávega nos moldes que atualmente se conhecem remonta ao século XVIII e terão sido introduzidas por armadores andaluzes e catalães nas praias do Algarve e da Costa Nova, na sequência da proibição em 1725 da pesca de arrasto nas praias da Catalunha. (SOUTO:2007, p.107). A Arte-Xávega é actualmente em Portugal a única arte de pesca de alar para terra, cuja utilização é permitida nos termos da legislação em vigor na área das pescas.

    Na Costa da Caparica as condições naturais necessárias à utilização da Xávega: praia aberta e sem obstáculos, fundos de areia sem rocha e abundância de peixe, associada à proximidade da foz e estuário do Tejo, atraíram companhas de pescadores oriundos de Ílhavo e Olhão que aqui vinham pescar sazonalmente tirando partido do mar mais calmo e da proximidade do mercado da capital para o escoamento do pescado, principalmente sardinha. A partir de 1770 ter-se-ão fixado definitivamente na Costa as primeiras companhas oriundas de Ílhavo dando início ao povoamento do lugar, até então despovoado e desprezado pelas populações locais, em parte devido à insalubridade derivada da existência de pântanos e juncais que dominavam a paisagem de areal da costa atlântica da freguesia de Caparica.

    Como forma de dar resposta a algumas das necessidades da população que então passou a constituir a povoação da Costa os mestres das companhas organizaram o “Cofre dos Quinhões das Companhas”, para o qual cada companha contribuía conforme o pescado vendido, com o rendimento do cofre se pagava anualmente ao “cirurgião”, ao padre e ao escrivão. O muro de cemitério e a sua pequena capela, assim como o poço que abastecia a população de água potável, foram igualmente pagos com dinheiro do “Cofre”, que financiava as festas em honra da padroeira, Nossa Senhora do Rosário, a manutenção da capela e o apoio aos mais desvalidos da comunidade (CORREIA: 1967).

    A organização social destas primeiras comunidades locais baseava-se em laços familiares e laborais, sendo que cada companha constituía como que uma família alargada, num segundo nível. Os locais de origem marcavam de forma mais profunda a separação social entre ílhavos e algarvios, que ocupavam espaços territoriais diferenciados, cuja linha divisória (atual Rua dos Pescadores) separava os descendentes dos ilhavenses, a norte, dos algarvios, a sul. Identificam-se entre alguns pescadores e pescadoras indivíduos oriundos do Alentejo que se fixaram na Costa da Caparica e desenvolveram a sua atividade em torno da pesca. Acerca da origem dos membros da comunidade piscatória importa ainda referir que a necessidade de força de trabalho utilizada na Arte-Xávega contribuiu para integrar na comunidade muitos indivíduos de origens desconhecidas que procuravam abrigo e trabalho nas companhas da Arte-Xávega. Eram chamados barraqueiros por habitarem nas barracas da companha, utilizadas para guardar as redes e outros apetrechos de pesca. Esta realidade mantém-se atual, sendo que continuam a habitar nos alvéolos dos pescadores da Costa vários pescadores de origem africana. Contudo, na sua maioria, os membros da comunidade piscatória são naturais da Costa da Caparica, sendo a pesca uma atividade que se mantém no âmbito das famílias e um recurso perante a falta de outras oportunidades de ocupação profissional.

    A Arte-Xávega seria então o principal método de pesca utilizado de entre outras artes tradicionais de cerco e alar para terra como o Chinchorro, a Rede-Pé, a Mugeira ou o Estremalho (Cf. SILVA: 1891, p. 242), artes que foram proibidas por terem malhagens reduzidas sendo por isso consideradas muito predatórias. A pesca com a Arte-Xávega, mais precisamente a condução das redes, fazia-se com recurso a embarcações designadas Saveiros ou Barcos de Mar, trazidos pelos pescadores da Beira Litoral (Mira, Torreira, por exemplo onde ainda hoje são utilizados). Eram movidos a remos por tripulações com cerca de vinte remadores a bordo, contudo as condições do mar da Costa da Caparica levaram à transformação dos Saveiros em embarcações mais pequenas e com um desenho ligeiramente diferente a que se chamou Meia-lua (por apresentarem as bicas simétricas enquanto o Saveiro apresenta a bica da proa mais elevada do que a da popa) ou Saveiro da Costa. Em comum ambas as embarcações apresentavam o fundo plano, que permitia a manobra deslisando sobre a areia, bem como a popa e a proa elevadas para vencer a rebentação das ondas quer à vante quer à ré adaptando-se ao vale da onda. O meia-lua, de dimensões variáveis consoante o número de remos que levava: dez, oito ou seis, embarcava uma tripulação composta pelo arrais, espadilheiro (manobrava o remo da espadilha colocado à popa que servia de leme), calador (responsável por “meter” e largar a rede), rapaz do pau da corda e os remadores, um por cada remo, conforme a dimensão da embarcação.

    A partir de meados do século XX os meias-luas vão sendo substituídos por embarcações mais pequenas designados por “barco de duas bicas”, que apresentavam ainda a popa e a proa levantadas mas com as bicas mais baixas, ainda movido a remos mas de mais fácil manobra e adaptado a outros tipos de pesca para além da Arte-Xávega. Na Costa da Caparica a adaptação de motores aos barcos da Arte-Xávega iniciou-se na década de setenta do século XX. Fazia-se nos meia-lua através de um “poço” à popa, onde o motor era introduzido na vertical. Isso obrigava a que, na chegada à praia, o motor tivesse de ser levantado para não bater no fundo. No sentido de aumentar a segurança e a estabilidade da embarcação, bem como torná-la mais versátil para outros tipos de pesca, foram sendo introduzidas as Lanchas ou Chatas.

    As redes eram então feitas à mão, em fio de linho ou algodão, tingidas com casca de raiz de pinheiro para escurecerem e não serem vistas dentro de água pelos peixes. As boias por sua vez eram feitas com bexigas de porco e os flutuadores com placas de cortiça (as pandas), enquanto as cordas de sisal eram impermeabilizadas com alcatrão. Estas artes, em particular as redes, tinham de ser secas ao sol penduradas em varas para perderem a água absorvida que as tornava demasiado pesadas para transporte e manuseio. A alagem da rede era realizada por homens e mulheres utilizando um cinto atravessado pelo ombro, sobre as costas e o peito. Do cinto pendia uma corda com uma boia que se enrolava na corda que puxava a rede. A alagem da rede com recurso exclusivo à força humana condicionava a sua prática aos intervalos entre a meia baixa-mar e a meia praia-mar, na medida em que só quando existia uma faixa de areia molhada e endurecida era possível puxar a rede, o que se tornava impossível de fazer com os pés sobre a areia solta. Esta condicionante, a par do esforço físico necessário ao transporte das redes, das cordas e da própria embarcação limitavam a três o número máximo de lanços por jornada de pesca. Importa ainda referir que então a prática da Arte-Xávega decorria principalmente entre o S. João (24 de Junho) e o mês de outubro.

    A mecanização da alagem através da adaptação de aladores à tomada de força dos tratores, introduzidos na década de setenta do século XX para apoiar as manobras das embarcações e o transporte do peixe, resulta de várias experiências realizadas por alguns armadores locais e generaliza-se a partir de finais da década de oitenta do século XX.

    Segundo a opinião de alguns pescadores, recolhida em contexto de diálogo informal, a mecanização dos barcos, do transporte do peixe e da alagem da rede é condição determinante para a sobrevivência da Arte-Xávega na Costa da Caparica, pois já ninguém se sujeitaria ao esforço necessário para realizar manualmente e à força de músculos todas as tarefas necessárias durante uma jornada de pesca.

    A faina da pesca realizada através da Arte-Xávega na Costa da Caparica, sendo praticada no mar e na praia constitui uma atração turística que cativa muitos dos frequentadores da praia nomeadamente banhistas que principalmente durante os meses de verão acorrem em grande número para observar a chegada à praia da rede e a escolha do peixe. Nesse sentido apesar da proibição desta prática da pesca nas áreas concessionadas entre 09:00 e 19:00 horas, imposta durante a época balnear, alguns concessionários viabilizam o acesso dos tratores através das concessões no sentido de possibilitar a prática da Arte-Xávega. A procura, por parte dos banhistas, de peixe fresco junto dos pescadores da Arte-Xávega leva a que uma pequena parte do peixe seja vendida na praia. Não sendo uma prática legal, se devidamente regulamentada contribuiria para a valorização da Arte-Xávega na Costa da Caparica enquanto recurso turístico, para além de favorecer o rendimento das companhas.

    Encontram-se jovens de ambos os sexos integrados nas companhas da Arte-Xávega, tendo como principal objetivo auferir de algum rendimento monetário. Apesar de se observar alguma falta de interesse por parte das novas gerações em dar continuidade à atividade piscatória na Costa da Caparica, observa-se uma renovação das companhas entre as quais se encontram atualmente três governadas por “donos” com idades na casa dos quarenta anos ou menos. Nesse sentido considera-se que os conhecimentos e experiência necessária ao governo da Arte, principalmente no que diz respeito à construção e manutenção das redes imprescindíveis à continuidade da prática da Arte-Xávega e sem qualquer viabilidade de produção industrial, se encontram minimamente salvaguardados e com possibilidade de terem continuidade e viabilidade económica.

    O património imóvel associado à comunidade piscatória da Costa da Caparica e por inerência à prática da Arte-Xávega relaciona-se com os locais de arrumação dos aparelhos e artes de pesca, bem como a habitação. Contudo, em virtude do crescimento urbano da cidade da Costa da Caparica, observaram-se a partir da primeira metade do século XX transformações profundas que condicionaram a atual concentração habitacional da comunidade piscatória.

    Os primeiros locais de fixação de população na Costa da Caparica dividiam-se em dois núcleos separados pelo traçado da atual Rua dos Pescadores - as famílias de pescadores oriundos do Algarve a norte, e as de Ílhavo a sul. As habitações primitivas da Costa eram construídas em tábuas e estorno (gramínea que se desenvolve nas dunas). O primeiro bairro em alvenaria foi construído a norte da Rua dos Pescadores em 1884 por iniciativa do deputado Jaime Artur da Costa Pinto, com a finalidade de alojar as famílias de pescadores cujas habitações haviam sido destruídas por um incêndio. Contudo, a partir do primeiro quartel do século XX, com o desenvolvimento da Costa da Caparica enquanto estância balnear e subsequente urbanização da zona norte da povoação as famílias dos pescadores que se aí se haviam instalado foram de alguma forma “empurradas” para sul, onde surgiu o bairro de barracas designado por “Rua 15”. A partir da década de sessenta do século XX, com a construção do Bairro dos Pescadores, integrada nas medidas de fomento da pesca tradicional promovidas pelo Estado Novo através do almirante Henrique Tenreiro e da Junta Central da Casa dos Pescadores, sedeada na Costa da Caparica, a maioria dos pescadores da Costa da Caparica passa a dispor de habitação no bairro cuja construção se desenvolverá em três fases.

    Acerca da habitação dos pescadores foi possível perceber que a proximidade da habitação ao mar é uma condição determinante para a viabilidade da atividade da pesca, pois a decisão acerca da saída para a faina depende da observação do estado do mar, pelo que a proximidade da praia é determinante na decisão dos mestres e na possibilidade de chamar os camaradas para a faina. Importa referir que tradicionalmente um dos elementos da companha, geralmente uma criança, tinha a função de “chamador”: percorria as habitações dos pescadores gritando “chama o arrais” convocando assim os pescadores para a faina.

    Uma das zonas referidas pelos pescadores mais idosos, como local de referência para a comunidade piscatória da Costa da Caparica situa-se onde se encontra o Hotel Praia do Sol. Esse local era designado “o Alto” onde se concentrava um núcleo habitacional e onde se via o mar. Quando os alcatrazes caiam mergulhando no mar era sinal de sardinha. Em data não determinada, quatro famílias da Costa da Caparica foram fundar a povoação da Fonte da Telha, onde se juntam também duas famílias da Charneca.

    A transformação determinante na história da Costa da Caparica e da sua comunidade piscatória opera-se a partir da década de vinte do século passado com a classificação de estância balnear. As famílias de pescadores passam então a alugar as suas casas aos “banhistas” habitando durante o verão nas barracas de apoio à pesca, alguns pescadores durante esse período passam a trabalhar como banheiros nas praias concessionadas.

    A Arte-Xávega, os seus pescadores e principalmente os barcos meia-lua, constitui uma atração turística, passando a imagem do pescador e do barco meia-lua a estar ligada à promoção turística da Costa como “imagem de marca”. Diversos fotógrafos registaram imagens da faina piscatória na Costa da Caparica, sendo que algumas dessas imagens foram publicadas em postais e folhetos turísticos. Artistas plásticos e fotógrafos, entre os quais se destacam José Passaporte, João Martins e Júlio Dinis, registaram os métodos de pesca então utilizados na Arte-Xávega constituindo um acervo que permite documentar a Costa da Caparica e das suas gentes durante a primeira metade do século XX.

    No estudo de caracterização social da comunidade piscatória ligada à Arte-Xávega no concelho de Almada realizado em 2007 pelo Instituto de Oceanografia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, «Foram realizados 18 inquéritos abrangendo 20% da população afecta à pesca com arte de xávega» (COSTA, CABRAL: 2007 p. 9) tendo incidido sobre género, idade e nível de escolaridade. Não houve entretanto actualização deste estudo, nem se realizou nenhum recenseamento da comunidade piscatória no concelho de Almada. As principais comunidades piscatórias do concelho de Almada localizam-se na Costa da Caparica, Trafaria e Fonte da Telha. Contudo, algumas pessoas que trabalham na pesca, e na Arte-Xávega em particular, habitam em outras localidades do concelho, nomeadamente na Charneca e no Monte de Caparica. A Trafaria é a povoação piscatória cuja ocupação antecede a da Costa da Caparica e onde residem alguns pescadores que integram as companhas da Costa.

    As novas tecnologias de comunicação e a facilidade das deslocações com recurso a meios de transporte próprios terá introduzido algumas alterações ao nível dos locais de habitação dos pescadores, contudo o caracter familiar da atividade contribui para que na sua maioria a classe piscatória habite na Costa da Caparica.

    As principais manifestações religiosas da comunidade piscatória da Costa da Caparica já não se realizam, contudo permanecem na memória coletiva das populações locais demonstrando a religiosidade própria dos pescadores que, não frequentando a igreja, possuem uma forte devoção associada à proteção que esperam receber. As principais celebrações consistiam numa procissão em honra de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Costa da Caparica, durante a qual era transportada uma miniatura de meia-lua cuja tripulação é composta por Jesus Cristo e os apóstolos (imagem conservada na primitiva igreja paroquial). A Nossa Senhora do Cabo Espichel constituiu outra das devoções da comunidade piscatória da Costa que, até às primeiras décadas do século XX participava regularmente no Círio do Cabo, percorrendo parte do percurso pela praia.

    As práticas de pesca tradicional utilizadas na Costa da Caparica estão dependentes de um conjunto de fatores naturais que condicionam o sucesso da atividade e os riscos associados à navegação que podem colocar em perigo a integridade física dos pescadores. Nesse sentido, embora seja difícil aferir as crenças e devoções particulares de cada pescador, alguns dos aspetos referidos no Anexo I em 19.3., nomeadamente a pintura de um olho de cada lado da proa de algumas embarcações assim como os nomes que lhes são atribuídos, constituem no nosso entender aspetos que caraterizam as manifestações de Património Imaterial associadas à Arte-Xávega na Costa da Caparica.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    LegislaçãoTendo sido até 1987 uma atividade tradicional regulada exclusivamente por direitos coletivos da respetiva comunidade, de caráter consuetudinário, a Arte-Xávega é também, desde então, uma prática económica regulada por legislação específica: Comunidade Piscatória da Costa da Caparica.
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Francisco Manuel Valadares e Silva
    Função: Historiador
    Data: 2015/03/27
    Curriculum Vitae
    Declaração de compromisso
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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