Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_2013_001
  • Domínio: Práticas sociais, rituais e eventos festivos
  • Categoria: Festividades cíclicas
  • Denominação: Kola San Jon
  • Contexto tipológico: A Festa de Kola San Jon é um evento festivo multi-expressivo que se realiza no bairro do Alto da Cova da Moura, por ocasião do dia de São João. Envolve música, dança, palavra e artefactos, recriando, em contexto migrante, alguns aspetos da tradição cultural cabo-verdiana, nomeadamente das festas que se realizam entre o dia 3 de maio (dia de Santa Cruz) e o dia 29 de junho (dia de São Pedro) nas ilhas de Barlavento (Santo Antão, São Vicente e São Nicolau).

  • Contexto social:
    Comunidade(s): Habitantes do Bairro do Alto da Cova da Moura
  • Contexto territorial:
    Local: Bairro do Alto da Cova da Moura
    Freguesia: Águas Livres
    Concelho: Amadora
    Distrito: Lisboa
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente \ Lisboa \ Grande Lisboa
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: O Kola San Jon realiza-se com uma periodicidade anual
    Data(s): O sábado/domingo mais próximo de 24 de junho, dia de São João.
  • Caracterização síntese:
    A festa de Kola San Jon consiste num evento multi-expressivo que se realiza no bairro do Alto da Cova da Moura, por ocasião do dia de São João (no fim-de-semana mais próximo de 24 de junho). Tem como elemento central um cortejo, que envolve música instrumental (tambores e apitos, entre outros), música cantada, dança, palavra e artefactos (navio, bandeiras, imagem do santo, espada, ramo, traje, entre outros). Recria, em contexto diaspórico, alguns aspetos da tradição cultural cabo-verdiana (sobretudo nas ilhas do Barlavento), nomeadamente das festas que se realizam entre o dia 3 de maio (dia de Santa Cruz) e o dia 29 de junho (dia de São Pedro) e que atingem o seu momento mais importante na festa de São João.

    Em Cabo Verde a multiplicidade de significados do Kola San Jon pode ser observada nas diferentes dimensões performativas e expressivas (a música, a dança, a palavra e os artefactos) bem como na componente religiosa (que inclui, por exemplo, a realização de missas e de peregrinações).
    A sua preparação estende-se ao longo do ano com apresentações em contextos diversificados como exibições espontâneas de rua, performances em palco, participação em festas populares em Portugal.

    O Kola San Jon foi trazido para Portugal por migrantes de origem cabo-verdiana e desempenha, no espaço de acolhimento, um papel importante na representação de memórias, proporcionando aos participantes uma instância de avaliação positiva da diferença cultural e social experienciada na Cova da Moura. Neste enquadramento desempenha um papel importante na ligação ao país de origem e na construção de um sentimento de pertença pelo país de acolhimento.

  • Caracterização desenvolvida:
    A festa de Kola San Jon consiste num evento multi-expressivo que se realiza no bairro do Alto da Cova da Moura, por ocasião do dia de São João (no fim-de-semana mais próximo de 24 de junho). Tem como elemento central um cortejo, que envolve música instrumental (tambores e apitos, entre outros), música cantada, dança, palavra e artefactos (navio, bandeiras, imagem do santo, espada, ramo, traje, entre outros). Recria, em contexto diaspórico, alguns aspetos da tradição cultural cabo-verdiana (sobretudo nas ilhas do Barlavento), nomeadamente das festas que se realizam entre o dia 3 de maio (dia de Santa Cruz) e o dia 29 de junho (dia de São Pedro) e que atingem o seu momento mais importante na festa de São João. Em Cabo Verde a multiplicidade de significados do Kola San Jon pode ser observada nas diferentes dimensões performativas e expressivas (a música, a dança, a palavra e os artefactos) bem como na componente religiosa (que inclui, por exemplo, a realização de missas, procissões e de peregrinações, nas quais ocorrem “pagamento de promessas”). É pertinente acrescentar que, durante o ciclo das festas juninas em Cabo Verde, ocorrem, com mais frequência, rituais como batismos e casamentos tendo em vista o papel tradicionalmente desempenhado pelo Santo António (santo casamenteiro) e a forte presença de emigrantes em férias que visitam seus familiares na ocasião. A preparação das festas de Kola San Jon estende-se ao longo do ano com apresentações em contextos diversificados como exibições espontâneas de rua, performances em palco, participação em festas populares, religiosas e datas festivas municipais em Portugal, em particular as Festas Populares de Lisboa como o dia de Santo António na Cidade de Lisboa. A festa do Kola San Jon da Cova da Moura suscitou o convite para colaboração em filmes e documentários, nomeadamente o filme “Fados”, do realizador espanhol Carlos Saura, e o documentário “Kolá San Jon: É festa di Kau Berdi”, do realizador português Rui Simões. O Kola San Jon foi trazido para Portugal por migrantes de origem cabo-verdiana e a festa é realizada pelos emigrantes caboverdeanos que ali residem desde a década de sessenta do sec. XX desempenhando, no espaço de acolhimento, um papel importante na representação de memórias e na construção de sociabilidades, proporcionando aos participantes uma instância de avaliação positiva da diferença cultural e social experienciada na Cova da Moura. Neste enquadramento desempenha um papel importante na ligação ao país de origem e na construção de um sentimento de pertença pelo país de acolhimento. No Alto da Cova da Moura as pessoas usam a grafia “Kola San Jon”, mas há várias grafias para o termo Kola San Jon, como é o caso de “Colá Son Jon” e de “Colá San Djon”. O uso da letra “k” na grafia de “Kola San Jon”, foi adotado à semelhança do que acontece com a designação “Kova M”, utilizada para o bairro e também devido aos cursos de língua cabo-verdiana lecionados no Moinho, os quais levaram em consideração o ALUPEC (Alfabeto unificado para a escrita do cabo-verdiano). A expressão “Kova M” foi lançada pelos jovens do movimento hip hop, que propõem o uso da letra “K” para dar à representação do bairro e dos seus habitantes um sentido positivo, alternativo às associações estigmatizantes e racialistas veiculadas pelos media. De acordo com alguns dos participantes mais velhos, Kola San Jon quer dizer “saudar São João”. Por outro lado, a palavra “kola” está associada ao verbo “kolar”, que significa “dançar” e “colar” e refere-se ao momento em que os corpos dos dançarinos se unem. A ação de “colar” corresponde a um desenho coreográfico designado por “golpe da umbigada”. A palavra “kola” é também adotada para designar o grupo que assegura a realização da festa, o chamado “Grupo Kola San Jon”. Contudo, este debate é bastante longo, sobretudo entre os intelectuais cabo-verdianos, já nos anos 1960, como Baltazar Lopes da Silva, Almerindo Lessa, Ju´lio Monteiro e Daniel Tavares, que procuram pesquisar o significado do termo, no qual mais tarde o antropólogo e etnomusicólogo Alcides Lopes veio a defender que o termo Colá, em particular, possui um significado polissémico “Cola´ significa plenamente entoar em voz alta ou cantar versos improvisados (...). Cola´ e´ também o arfar dos corpos suados que se movem no mesmo ritmo e se tocam (...). Cola´ e´ também o êxtase da dança que e´ materializado em gritos de euforia, tambores e apitos." Também a pesquisadora Carla Queiroz da Costa afirma, na sua tese de doutoramento, que no intuito de perceber essa questão procurou esclarecimento junto da linguista Elvira Gomes dos Reis da Universidade de Cabo Verde que confirmou que “o crioulo cabo-verdiano e´ de natureza fone´tico-fonolo´gico por isso todo o som [k] escreve-se com a letra K pelo que, no seu entender e´ correto empregar a expressão “Kola San Jon”. A festa do Kola San Jon começa a preparar-se a partir da Primavera, com a realização de reuniões quinzenais do grupo “Kola San Jon” nas instalações da Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ). Coordenadas por três elementos do Grupo que são também elementos da ACMJ, estas reuniões têm como objetivos definir o programa da festa e fazer a distribuição de tarefas de forma individual ou em grupo. É também nesta época do ano, anterior à festa e coincidente com o final do Inverno, que o “grupo de Kola San Jon” começa a fazer, mais frequentemente, exibições públicas, sendo esses os únicos contextos em que os seus elementos se encontram e atuam em conjunto. Nas reuniões do “grupo Kola San Jon”, a coordenação informa todos os participantes de convites formulados por outras organizações e instituições. Todas as questões de natureza económica, artística e/ou organizacional são discutidas e decididas coletivamente. Com a aproximação do mês de junho, a preparação da festa intensifica-se, sendo constituído na ACMJ um núcleo coordenador. As diferentes respostas sociais e projetos da ACMJ são mobilizados para a festa. Algumas equipas da ACMJ preparam eventos específicos, incluídos no programa da festa. Nos dias imediatamente anteriores à realização da festa, todos os funcionários e voluntários se ocupam de aspetos como a decoração do bairro, que é assegurada por equipas responsáveis por zona, seguindo os conselhos dos moradores, que conhecem a festa desde a sua meninice, bem como por voluntários. As ruas são enfeitadas com decorações alusivas aos santos populares. Nas áreas mais habitadas por pessoas originárias de São Vicente ou de Santo Antão (“sampadjudos”), algumas ruas são decoradas pelos seus moradores. Dias antes da festa, os tamboreiros encontram-se para “puxar” (afinar) os tambores. Em geral organizam-se exposições alusivas à festa ou debates, encontros e oficinas, ao longo da semana anterior e/ou na manhã antes da festa. No dia da festa o grupo de Kola, em maior número mulheres, começa a reunir-se na noite anterior ou ao longo da manhã na ACMJ para ultimar os preparativos, como por exemplo a decoração do navio, a elaboração de rosários e a decoração da imagem do santo, a confeção de roscas, alimentos vários (incluindo um almoço), os preparativos para a Katxupa e a preparação de cestos de oferendas (fruta e legumes) para levar no cortejo. Outros elementos do “grupo de Kola San Jon” iniciam o dia de festa em casa, onde telefonam para Cabo Verde ou recebem convidados para almoçar, antes de sair para as instalações da ACMJ. Os festejos iniciam-se ao princípio da tarde e prolongam-se pela noite dentro. A primeira parte da festa é constituída pelo cortejo que se faz pelas ruas do bairro e que termina com a partilha de uma refeição (habitualmente constituída por Katxupa), aberta a todos, que se realiza na sede da ACMJ. A segunda parte da festa consiste num concerto com diferentes grupos musicais, realizado num dos espaços públicos do bairro: o espaço polidesportivo situado num dos limites geográficos do bairro, a escola ou outro. À hora do almoço a sala polivalente da ACMJ enche-se com os elementos do Grupo que almoçam em conjunto. O almoço decorre em clima informal, cada um deslocando-se livremente entre a cozinha e a sala, junto dos navios, do santo, dos rosários e dos trajes a distribuir pelos que ainda não levantaram o seu (incluindo as camisolas alusivas à festa daquele ano). Quando terminam o almoço, os tamboreiros, já munidos dos instrumentos que trouxeram de casa ou levantaram na Associação, descem para o pátio e iniciam “a toka”. Gradualmente, juntam-se-lhes as koladeiras e um ou outro homem, que começam a dançar (“kolar”). O pátio da Associação vai enchendo até que, um pouco depois da hora marcada no programa da festa, pode iniciar-se o cortejo que percorrerá o bairro. A performance do grupo constitui o centro do cortejo, estando ligada aos protagonismos e inspiração dos seus diferentes elementos. Na expressão de vários participantes na festa, o Kola San Jon é uma festa , “de todos”, a que se chama também “brincadeira”. Sem líderes aparentes, a festa é vista como sendo movida unicamente pela energia que decorre do ritmo e da atmosfera festiva que distingue esta manifestação. Um elemento central na organização de um Grupo de Kola é o “navio”. Trata-se de um pequeno navio construído em madeira e que envolve o corpo de um dos elementos que integra o cortejo. Remete para um aspecto familiar na experiência da população cabo-verdiana, mas a que se atribui no Kola San Jon uma associação simbólica incerta ou polissémica. Considera-se que o navio poderá aludir às caravelas portuguesas (trazendo nas suas velas a insígnia da Ordem de Cristo) mas, também, aos navios de pirataria que assolavam, no passado, as costas de Cabo Verde. Por sua vez, Lopes (2020, p. 212-217) desafia as narrativas mais aceites sobre o papel do Navio de San Jon, quando apresenta, na sua tese de doutorado, algumas alternativas possíveis à alegoria do navio citando o historiador guianense Walter Rodney (1970). A “tripulação” do navio integra o Kola com o/a “comandante” (ou “almirante”), que o leva dançando num modo que evoca a arte de velejar, e a/o “capitã(o)” que, munido de espada (de madeira) e apito, insta o público a fazer uma oferenda ao navio, devidamente depositada no porão (esta função também pode ser cumprida pelo comandante do navio). O número de navios que participa no cortejo depende das pessoas dispostas a carregá-los e de quantos tenham sido decorados previamente (a ACMJ dispõe de cinco navios, incluindo o do “Kolinha”, construído para as crianças). A “tripulação” do navio (o/a comandante/almirante ou o capitão) realiza um peditório junto de quem passa, exortando os participantes a contribuir com “frete para este navio”. Nos primeiros anos a colecta fez-se junto dos moradores, ao passo que nos últimos anos, é sobretudo junto dos estabelecimentos públicos do bairro – cafés, associações – que a mesma é feita. Na Cova da Moura, constata-se a centralidade da quadra/roda de tamboreiros, sob a orientação de um dos membros fundadores do grupo de Kola da Cova da Moura. Num diálogo percussivo, condicionado pelas configurações dos ritmos emergente e resultante, a partir de concepções holísticas do tempo musical circular, que se integra em diferentes padrões rítmicos (Lopes, 2017, pp. 89-118), vários tocadores de apitos (entre eles o capitão), a quadra/roda de tamboreiros estabelecem e tocam a música ao som da qual as/os koladeiras executam uma “dança” (termo usado como aproximação ao tipo de performance, mas que as koladeiras e outros executantes e conhecedores do Kola não reconhecem como designação apropriada, usando sempre a palavra "kolar"), que designam por “kolar”. Centrada sobre si mesma (com os tamboreiros virados uns para os outros), a progressão da quadra/roda é orientada por um tocador de apito, que assegura que as pessoas em redor deixem espaço disponível para o avanço dos tocadores. As/os koladeiras “kolam” na proximidade da quadra de tamboreiros, em pares que podem ser constituídos por uma mulher e um homem (não havendo designação específica para o homem) ou por duas mulheres. Envolvendo a sucessiva aproximação e afastamento dos corpos ao ritmo da toca e, no culminar da aproximação, o toque dos corpos ao nível da zona pélvica (o “golpe da umbigada”), a “dança” pode ser acompanhada por palavras que comentam a sua conotação sexual: “Oh Jon, kola per riba, per boxe e ne de bo conta”. (“Oh João, kola por cima, por baixo não é da tua conta”, Lopes, 2017, pp. 91-92). As koladeiras e os homens que com elas kolam (sem designação específica) compõem o segmento mais numeroso do cortejo. A dança pode ocorrer em pares, em grupos de três pessoas, em que uma delas encontra sucessivamente um e outro parceiro de dança, ou em grupos de dois pares, que se cruzam entre si (alternando os movimentos de afastamento e de aproximação dos corpos), ou, mesmo, de seis pessoas. Estas diferentes formas de “kolar” vão acontecendo ao longo do cortejo, num clima de desafio. Outros participantes no cortejo transportam a imagem de São João, profusamente adornada com coloridos rosários, feitos de massa de pão (roscas), pipocas, frutos, doces e papelinhos, alguns cestos de comida, algumas plantas de milho e, pelo menos, um ramo feito e oferecido todos os anos por uma koladeira do Grupo, que pode ser leiloado após a realização do cortejo, embora tal nem sempre aconteça. Em Cabo Verde, a componente religiosa da festa de São João inclui a realização de missas, peregrinações, pagamento de promessas e o culto ao santo, o que não acontece na Cova da Moura. Neste lugar a imagem de São João integra o cortejo, mas não é cultuada publicamente, embora várias pessoas, nas suas casas, lhe façam/pagam promessas. A estes vários elementos do cortejo juntam-se outras pessoas que o acompanham, misturam-se com o grupo kolando, por um período de tempo curto ou até ao final do percurso. Entre estes participantes encontramos moradores do bairro, pessoas com ligações pessoais ao bairro, mas que ali não residem, cabo-verdianos atraídos pela realização de uma festividade da sua terra natal e outros visitantes atraídos pelo Kola San Jon e por outras atividades da festa. Vários participantes usam rosários pendurados no pescoço, idênticos aos que decoram o santo e o(s) navio(s), rosários esses que fizeram e trouxeram de casa, que foram oferecidos pelo Grupo, ou vendidos por este com vista à angariação de fundos. A dimensão do cortejo depende do número de pessoas que se juntam ao Grupo nas ruas. Na Cova da Moura, o cortejo leva à sua frente as bandeiras de Cabo-Verde, Portugal e da Associação Cultural Moinho da Juventude. Contudo, desde de 2012, por sugestão feita por um dos elementos do Grupo numa das reuniões de preparação do evento, juntaram-se às três bandeiras referidas também as bandeiras de Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Brasil, com o intuito de fazer da festividade cabo-verdiana uma festa que espelha a diversidade cultural existente no bairro. Estas bandeiras são levadas por moradores da Cova da Moura oriundos dos países respectivos ou pelos seus descendentes. Saindo da sede da Associação Cultural Moinho da Juventude e aí regressando no final, o cortejo percorre circularmente o bairro, caminhando ao longo de grande parte das suas ruas, com destaque para as ruas e locais de encontro decorados por habitantes e mais habitadas/frequentadas por cabo-verdianos oriundos das ilhas de Santo Antão e de São Vicente (“sampadjudos”). O percurso é pontuado por um conjunto de paragens significativas, incluindo as sedes de outras coletividades do bairro (Associação de Moradores do Alto da Cova da Moura e Associação de Solidariedade Social do Alto da Cova da Moura) e a residência dos fundadores da Associação Cultural Moinho da Juventude. Todos os anos se estabelecem, adicionalmente, paragens destinadas a assinalar simbolicamente a importância de iniciativas ou temáticas específicas que marcam a vida do bairro e/ou da ACMJ. Desde 2015 foi adicionado ao percurso histórico a visita à Rotunda Eduardo Azeredo Pontes, em jeito de homenagem, cofundador da Associação Cultural Moinho da Juventude, e algumas vezes a casa dos membros que faleceram ou que estão doentes. Durante estas paragens é distribuída gratuitamente água a todos os que integram o cortejo e – na residência dos fundadores da ACMJ, na sede da Associação de Moradores e na sede da Associação de Solidariedade Social (“O Clube”) – são oferecidos petiscos, frutas e doces. Além de ser referido, pelos elementos do grupo de Kola, como “uma brincadeira” e uma festa “de todos”, o Kola San Jon também é definido como uma festa “de partilha de valores”, uma festa “dos pobres” ou mesmo uma festa “do povo”. Na Cova da Moura, a Associação Moinho da Juventude prepara cinco grandes panelas de Katchupa, que é partilhada no final do cortejo. Para esta Katchupa contribuem restaurantes locais que oferecem milho, feijão, carne e hortaliças (os restaurantes locais que fazem parte do projeto SABURA - iniciativa da Associação Moinho da Juventude que promove visitas de grupos, escolas ou associações que queiram conhecer o bairro do Alto da Cova da Moura e os projetos que aí se desenvolvem). A Katchupa é um prato partilhado e consumido durante a própria festa. Começa por cozer-se o milho amarelo e branco pisado, porque é mais rijo. Ao milho vão-se juntando uma variedade de ingredientes, um pouco ao critério de quem confeciona a Katchupa: feijão pedra, feijão Congo, feijão manteiga, feijão catarino, alguma carne de porco, orelha, chispe, agrião ou couve. A Katchupa pode enriquecer-se com mandioca, batata-doce, cenoura, farinheira, chouriço, etc. No entanto, também há quem a prefira mais simples, de modo a que possam sentir-se bem os sabores distintos dos ingredientes usados. A festa anual do Kola San Jon na Cova da Moura tem sido realizada ao longo dos últimos 33 anos com uma periodicidade anual, com a excepção de dois anos em que problemas pessoais afetaram elementos-chave do Grupo e impediram a sua efetivação, e também durante os dois anos assolados pela Pandemia Covid-19, por razões sanitárias. Constitui um momento importante de contacto de todos os moradores do bairro com esta manifestação cultural. O “Grupo do Kola” perpetua-se para lá da realização anual da festa, através da participação em diversas iniciativas, com destaque para os convites formulados por entidades terceiras, com vista à apresentação do Kola San Jon em eventos específicos. Fora do bairro (numa dinâmica que está, também ela, muito ligada ao papel de mediação da Associação Moinho da Juventude), o Kola San Jon da Cova da Moura vem sendo progressivamente reconhecido, ao longo dos anos, como um evento cultural cabo-verdiano. O “Grupo do Kola” tem sido convidado por outras entidades para participar em diversos eventos performativos, entre os quais se destacam a participação no filme “Fados”, de Carlos Saura, que lhe conferiu maior visibilidade. Tem também tomado a iniciativa de participar em eventos exteriores ao bairro, com destaque para a participação anual, na noite de 12 de Junho, nas Festas de Lisboa, associadas à celebração do Santo António, e – em 2009 – no Kola San Jon de Porto Novo (Ilha de Santo Antão) e de São Pedro (Ilha de São Vicente), em Cabo Verde, etc. Em 2011 foi a Itália a convite do diretor artístico da segunda exposição nacional de arte contemporânea (PREMIO CENTRO 2011 – Della II esposizione Nazionale delle Arti Contemporanee “La Citta” e l’Umano”) que decorreu nas cidades italianas de Viterbo, Bomarzo e Ronciglione. Em 2018 o grupo viajou para Luxemburgo onde participou na Weekend Capverdien Festival, realizada nos dias 13, 14, 15 de julho de 2018. O acesso e pertença ao Grupo de Kola são abertos e, nas palavras dos seus membros, motivados “pela alegria que proporciona”. Enquanto que em Cabo Verde o Kola San Jon se faz apenas em algumas ilhas, sobretudo nas ilhas do Barlavento, na Cova da Moura o Grupo vem atraindo a si pessoas com origem nas várias ilhas do arquipélago e, também, de outros países. Este facto é apontado pelos próprios envolvidos como um traço distintivo do Kola San Jon da Cova da Moura, fazendo com que a festa deixe de ser uma prática de São Vicente ou de Santo Antão para passar a ser uma prática «cabo-verdiana» ou mesmo, gradualmente, do bairro. Em consonância com as dinâmicas descritas, o “grupo de Kola San Jon” debate explicitamente, entre si, quais os modos considerados mais próprios para o Kola na diáspora. Um exemplo ilustrativo deste tipo de processo é o debate sobre o modo como os tamboreiros e as koladeiras se devem vestir e apresentar nos momentos performativos. A discussão tem sido feita no seio do grupo, no qual uns valorizam a espontaneidade atribuída ao Kola, como “festa de todos”, e outros defendem a necessidade de conferir ao Grupo sinais distintivos.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: A primeira realização do Kola San Jon deu-se em 1984, por iniciativa das pessoas que viriam mais tarde, a partir de 1991 e sob o enquadramento da Associação Moinho da Juventude, a realizá-la todos os anos (com exceção de 1999 e 2001, por impedimentos pessoais de pessoas envolvidas na organização). A realização da festa é assegurada desde 1991 pelo “grupo de Kola San Jon”, sob o enquadramento da ACMJ. Para muitos cabo-verdianos residentes no Alto da Cova da Moura, o Kola San Jon é uma festa “de sampadjudos”, isto é, de naturais das ilhas cabo-verdianas de Barlavento (Santo Antão, São Vicente e São Nicolau), a quem os cabo-verdianos atribuem hábitos culturais diferentes dos “badios”, cabo-verdianos das ilhas de Sotavento (Santiago). São os habitantes nascidos em Santo Antão, São Vicente e São Nicolau, de facto, que mais manifestam afetuosamente a sua ligação ao Kola San Jon, que recordam ter vivido em Cabo Verde. Habitualmente, são também os filhos de migrantes naturais das ilhas de Barlavento que aprendem com os pais a “kolar” ou a tocar tambor, a construir e a decorar o navio, a fazer os rosários e outros adornos da festa, proporcionando assim um contexto de transmissão inter-geracional contínuo. O acesso e pertença ao “grupo de Kola San Jon” são, no entanto, abertos. No Alto da Cova da Moura o grupo vem atraindo a si pessoas com origem nas várias ilhas do arquipélago cabo-verdiano e, também, de outros países. Este facto é apontado pelos próprios envolvidos como um traço distintivo do Kola San Jon do Alto da Cova da Moura, fazendo com que a festa deixe de ser uma prática de São Vicente, de Santo Antão ou de São Nicolau para passar a ser um evento «cabo-verdiano», ou mesmo um evento do bairro. Por outro lado, pelo facto de envolver um percurso colectivo por todo o bairro, pela crescente visibilidade que vai ganhando, pelos convites feitos, o Kola San Jon contribui diretamente para a vivência do bairro como uma totalidade socio-espacial, sendo também uma instância de avaliação positiva da diferença cultural e social experienciada pelos seus habitantes mais em geral. Pelo lugar que veio a ocupar na Cova da Moura, o Kola San Jon aparece cada vez mais como a grande festa do bairro. Para além dos habitantes do bairro, a festa envolve visitantes que queiram juntar-se ao grupo durante o cortejo, acompanhando-o, “kolando”, tocando tambor ou levando o navio. Entre estes visitantes encontram-se pessoas com ligações pessoais/familiares no bairro, mas que ali não residem, cabo-verdianos atraídos pela realização de uma festividade “da sua terra” e outros visitantes atraídos pelo cortejo ou outras actividades da festa. A transmissão dos saberes e práticas associados ao Kola San Jon faz-se através da oralidade e, sobretudo, pelo envolvimento prático, através da participação direta nas atividades do “Grupo de Kola San Jon”. Este oferece um contexto propício à aprendizagem pela prática, sendo comum os adultos fazerem-se acompanhar de crianças durante as performances. Este processo é extremamente favorável à transmissão intergeracional. No que se refere à aprendizagem do tambor, as crianças aprendem pela prática, seguindo o exemplo dos adultos, em pequenos tambores que estes constroem para o efeito, ou tocando por iniciativa própria, em pratos, tampas de panela e objectos afins. Foi assim que aprenderam os tamboreiros mais novos do grupo, filhos da geração que imigrou para Portugal. Os/as koladeiras e os rapazes que as acompanham aprendem a dança através da participação direta na festa e outras atuações do Grupo, para as quais são levadas pelas mães e outros familiares. Ocasionalmente, o Grupo é convidado para organizar um workshop de dança, em eventos no bairro (por exemplo, durante o “Kova M Festival” – festival da juventude, em Abril de 2012) ou fora dele (por exemplo, durante o festival Andanças, em Agosto de 2000, Marcha Internacional das Mulheres, 2015, com o artista da Cidade de Lisboa 2016, Faustin Linyekula, em Fevereiro de 2016 Encontro entre a Escola de Verão “Epistemologias do Sul” e a Associação “Moinho da Juventude”, em Abril de 2016, Academy for Music Impact, 2022, etc.). Três navios foram construídos no bairro por moradores mais velhos, que aprenderam a fazê-lo em Cabo Verde. Transmitiram os seus conhecimentos aos seus filhos, sobrinhos e vizinhos mais novos. Algumas crianças do bairro assistiram à construção do barco do “Kolinha” e assistem por vezes às operações de manutenção dos barcos (arranjos na estrutura e renovação da decoração). As modalidades de transmissão dos conhecimentos para as novas gerações vêm imbuidas de valores e estratégias desenvolvidas a partir das experiências vivenciadas pelo grupo durante algumas décadas. As viagens, às vezes com destino aos outros países europeus, requerem o transporte dos instrumentos (tambores) e dos artefactos (navios). Estes têm se demonstrado de difícil manuseio devido à desmontagem para despacho em voos ou transporte em ônibus. Em resposta a estes constrangimentos, um ladrilheiro cabo-verdiano, morador do bairro e irmão de uma das integrantes fundadoras do grupo, Tito Duarte, construiu um navio desmontável, inovando assim um processo de construção tradicional sem descaracterizar o artefato usado no cortejo do Kola San Jon. Antes pelo contrário, nos depoimentos prestados pelo artesão, há consciência plena sobre questões como leveza e maleabilidade dos materiais usados, sem se descuidar das preferências estéticas. Finalmente, os rosários com que se adornam os participantes e com os quais adornam o santo e os navios são feitos em casa, principalmente por mulheres, ou na Associação, contando com o envolvimento e a aprendizagem das raparigas mais novas. Modo de aprendizagem das gerações mais novas A participação de jovens no Kola San Jon dá-se através do seu envolvimento ativo na festa no bairro, nas reuniões do “grupo de Kola San Jon” que a antecedem e nas saídas do mesmo para participação em eventos diversificados. Existe, também, todo um trabalho de sensibilização para o Kola San Jon desenvolvido no âmbito das atividades quotidianas da ACMJ, com destaque para a constituição do grupo “Kolinha”, um grupo infantil de Kola San Jon, no Jardim de Infância (15 crianças). Este grupo está munido do seu próprio navio, construído com as crianças na carpintaria da associação em 2008, e participa na festa anual.
    Data: 2013/04/15
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português; Crioulo (Cabo-Verde)
    Agente(s) de transmissão: Alguns residentes do Bairro do Alto da Cova da Moura (originários de Cabo Verde, das ilhas de Santo Antão e São Vicente)
  • Origem / Historial:
    TEXTO DO PROCESSO DE 2013
    Em Estudos sobre a ilha de Santo Antão (1898), Carlos Ferrão, administrador da ilha de Santo Antão, descreve a festa do Kola San Jon na atrás referida e localiza-a no lugar de Porto dos Carvoeiros (hoje designado por Porto Novo), entre os dias 21 e 24 de Junho, designando-a por “Festa de São João Baptista”. De acordo com este relato, trata-se de “a maior festa de toda a ilha”, correspondendo a “dias de folia incomparável” e de “difícil manutenção da ordem pelas autoridades”. A festa fazia, já então, acorrer a Porto dos Carvoeiros milhares de pessoas, originárias de outros pontos da ilha e, também, de São Vicente, que ali pernoitavam em abrigos improvisados, ao som de “mais de trezentos tambores”.

    A tradição oral liga São João Baptista às localidades de Porto dos Carvoeiros/Porto Novo e de Ribeira das Patas, onde todos os anos se vai buscar o santo em romaria. Segundo testemunho prestado a Miguel (2010) em 2008, pelo então Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Porto Novo, São João foi, num passado longínquo, encontrado por Mamaia, uma figura feminina a quem manifestou o desejo de viver isolado e com quem o santo coabitou durante muitos anos, numa gruta. Com a morte de Mamaia, porém, e o crescimento de Porto dos Carvoeiros (Porto Novo), São João sentiu necessidade de se isolar de novo, tendo por isso fugido para a zona de Ribeira das Patas: “(…) Segundo os mais antigos, os porto-novenses iam lá buscar o santo [para o recolocar em Porto Novo]. Só que este acabava sempre por fugir, para a zona da Ribeira das Patas, para a capela, para uma capela construída para este santo… então, os porto-novenses assumiram um compromisso. De ir lá buscar e de lá levar, tá! Iam buscar no dia 23 e iam a levar São João no dia 25. (...) e o percurso é feito totalmente a pé. E antigamente era feito por mulheres que transportavam o São João à cabeça. (…) mulheres que aproveitavam para pagar promessas. Havia algumas promessas. Portanto, iam lá levar o santo (...) e prometiam que iam lá buscar o santo, não é! Transportavam durante este percurso de 22 Km! E durante o percurso são muitas, muitas, muitas pessoas que fazem a peregrinação, ao longo do trajecto … (Rildo Tavares, Vereador da Câmara Municipal de Porto Novo – Ilha de Santo Antão, 26 de junho de 2009).

    A origem do Kola San Jon é uma questão complexa, sabendo-se que se entrecruzam nesta expressão cultural elementos de matriz europeia católica, bem expressos no facto de se tratar de uma festa de romaria, com elementos de origem africana, entre os quais é usual referir a importância que a percussão adquire no Kola, bem como a conotação sexual da dança (Rodrigues s.d.; Fortes in Simões 2012; Miguel, 2010; Ribeiro, 2000).

    Trata-se um dos eventos culturais desenvolvidos em Cabo Verde na margem do poder colonial, vista com desconfiança pela igreja e chegando a ser proibida pelas autoridades político-administrativas. Ribeiro (2000) explica que os santos juninos se celebram em todas as ilhas do arquipélago cabo-verdiano, correspondendo o Kola San Jon à forma que tais celebrações assumem nas ilhas de Barlavento, com destaque para Santo Antão e São Vicente, mas acontecendo também em São Nicolau. Embora a designação – Kola San Jon – pareça remeter diretamente para os festejos de São João, assim se nomeiam todas as celebrações que ocorrem nas localidades que têm por santo padroeiro um dos santos juninos. A Festa de Santa Cruz, celebrada a 3 de Maio, faz igualmente parte dos festejos designados de “Kola San Jon”. No Sal, há registo da Festa de Santa Cruz (também designada por “Santa Cruz dos Negros” ou “Santa Cruz dos Escravos”) no lugar de Santa Maria, onde se prolongava por três dias, ao longo dos quais as pessoas kolavam ao som dos tambores. A data de 3 de Maio é aqui significativa, na medida em que nesta data era concedido “dia de alforria” aos escravos salenses, pensa-se que por influência da chegada de escravos brasileiros à Baia de Santa Maria (Vieira 2006 in Miguel 2010: 26).

    Rui Vieira Nery, em Para uma História do Fado (2004), aponta semelhanças entre o Kola San Jon e o Lundum, muito semelhante ao Fado, que se dançava no Brasil do século XIX, descrito como uma dança “muito próxima da dança dos Negros de África” e “a mais indecente das danças”. Segundo Vieira Nery, “... (a) julgar pelas descrições literárias e pelas imagens que nos chegaram da época, todas estas danças de matriz afro-brasileira, entre as quais o Lundum predomina, incluem quase sempre um jogo coreográfico em que o par de dançarinos ora se aproxima e se toca corpo a corpo (muitas vezes com um golpe de ventre contra ventre – a chamada “umbigada”) ora se afasta para depois recomeçar a aproximação, tudo isto com movimentos ondulantes dos quadris que, no auge da dança, se podem tornar verdadeiramente frenéticos e não deixam sombra de dúvidas à imaginação sobre a simbologia assumidamente erótica do baile.” (Nery, 2004: 27). Tal descrição corresponde muito proximamente ao Kola como o conhecemos hoje.

    Nesta festa identificam-se, igualmente, diferentes características dos festejos de São João que encontramos em Portugal, desde logo a sua associação ao São João e demais santos de Junho; assim como o carácter particularmente extrovertido e popular desta celebração pública, respeitante a uma comunidade na sua totalidade, propícia à criação e recriação de identidades colectivas associadas a certos lugares (Oliveira, 1984: 119; Lima e Cordeiro, 1991). Contrariando um pouco o exotismo atribuído à explícita alusão à sexualidade que distingue o Kola San Jon, encontramos na obra “Festividades Cíclicas em Portugal”, de Ernesto Veiga de Oliveira, menção ao carácter “marcadamente licencioso” das festas de São João, tais como se encontram em Portugal: “A festa, por toda a parte, contém um elemento marcadamente licencioso, por vezes expresso, na alusão sempre presente ao carácter brejeiro do santo, aos amores, etc., outras vezes tácito, na autorização implícita de brincadeiras e até “roubos”, em que todos participam espontaneamente, nessa noite.” (Oliveira, 1984: 124). Veiga de Oliveira chama a atenção para o carácter ritual desta licenciosidade “… onde a atmosfera de euforia, mais do que mero abandono aos instintos primários de prazer, parece resultar de um preceito tradicional (…)” (Oliveira, 1984: 124). Este aspeto é ilustrado pela ritualização de procedimentos que encontramos, designadamente, na forma como a conotação sexual da dança é tematizada nos dizeres que a acompanham (“kola, kola por cima, que por baixo não é de bô conta”).

    Outros traços que unem o Kola San Jon a modos de festejar o São João em Portugal são a pluralidade e tipo de adornos utilizados, designadamente a profusão de cor, obtida pelo uso de papel para a elaboração de enfeites e bandeiras (no caso do Kola San Jon, sem motivos florais) e outro tipo de materiais usados, como o recurso à massa de pão para a produção das roscas e figuras antropomórficas (“bonecas”, no caso do Kola San Jon).

    Por último, é importante referir o lugar que têm, também no Kola San Jon, o fogo e outras práticas propiciatórias e divinatórias, designadamente a realização da fogueira de São João, sobre a qual se salta com a lumenara: uma gema de ovo vertida para dentro de um copo de água à qual se atribui o poder de, pela forma que assume, revelar o futuro da pessoa que a transporta no salto (se for um caixão é morte, se for um barco é viagem, se for uma igreja é casamento). Esta prática é referida amiúde pelos cabo-verdianos que recordam a festa de Cabo Verde, havendo vontade de a introduzir na Cova da Moura.

    TEXTO DA REVISÃO DE 2023
    A festa de Kola San Jon/ Colá San Jon é uma prática cultural que tem a sua origem e é celebrado em várias ilhas do arquipélago de Cabo Verde, localizado na costa ocidental africana, a uma distância de 455 km do continente africano. O termo Kola San Jon foi mencionado nas publicações do século XIX, na Revista Cabo Verde (1958) por autores e intelectuais como Manuel Ferreira (1917-1992) e Baltazar Lopes (1907-1989). De forma particular, a Festa de Kola San Jon de Cova da Moura está associada a “um momento fundador específico” (Lopes, 2020, p. 187), o qual foi evocado pelos diferentes atores envolvidos, a partir de um contexto histórico relativamente recente e igualmente específico. Com efeito, o autor refere-se ao contexto histórico no qual estão implicados o processo colonial tardio empreendido nos territórios africanos que estavam sob o jugo do colonialismo português – trabalho forçado “ as roças de São Tomé”, Angola, S. Tomé, Cabora Bassa em Moçambique; as fomes coloniais em Cabo Verde, os programas de migração internacional voluntária e involuntária (cf. Monteiro, 2018); os acontecimentos que se sucedem em Portugal, desde a eclosão das guerras de libertação em África – a crise dos retornados; a intensificação gradual da imigração proveniente dos “novos” países independentes e migração interna (êxodo rural); o aumento da pressão demográfica e a crise em torno da propriedade no período da democratização após 1974; e as consequências destes fenómenos que sobrevivem até aos problemas enfrentados pela sociedade portuguesa na atualidade. Um aspecto específico relaciona-se com mundo social de cabo-verdianos em Portugal que começaram a chegar no país como imigrantes laborais desde 1960 onde foram empregados como operários nas indústrias a baixos salários e privados dos direitos de trabalho, segregados em casernas nos canteiros de obras, bairros autoconstruídos, etc. Enfim, o perfil dos migrantes que construíram o bairro Alto da Cova da Moura. Neste contexto, a festa de Kola San Jon de Cova da Moura resulta dos processos históricos, sociais, económicos, políticos que permearam a vida e traçaram os destinos dos seus integrantes. Estes processos essencialmente de luta e resistência por dignidade e identidade, sobretudo pelo direito ao lugar, numa base quotidiana têm sido resilientes por décadas. A proliferação de bairros autoconstruídos na área metropolitana de Lisboa foi um processo que alcançou relativa visibilidade ainda na década de 1980. Vários autores o classificam como um fenómeno recente. Mas, a realidade é que a cidade de Lisboa sempre esteve sujeita a pressões demográficas, as quais começam a preocupar as autoridades civis desde o final do séc. XIX. Não obstante, a história nos informa que a resolução sustentável dos diversos problemas criados pela situação nunca fez parte da agenda de prioridades das autoridades competentes. Ao contrário, as medidas adotadas foram sempre segregativas, levadas a cabo na base da proibição, interdição, da coerção [violência] policial e com a conivência dos meios de comunicação social, especialmente após a adesão de Portugal à União Europeia. Depoimentos que denunciam usos arbitrários e abusos das categorias “proibição” e “punição” por parte dos orgãos do poder público e privados contra os moradores do bairro Alto da Cova da Moura não são raros. Neste contexto, questões sobre a racialização do espaço, dos papeis sociais e do crime os estigmas da ilegalidade, criminalidade e violência nos discursos, nas políticas e práticas da “integração” migrante em Portugal se encontram na base das mobilizações em torno das iniciativas que vieram encorajar, entre outras, a representatividade cultural e tradicional ativadas a partir de meados da década de 1980. Nesta esteira, a pertinência do argumento em torno do “momento fundador específico” do grupo e da festa de Kola San Jon do bairro Alto da Cova da Moura tem menos a ver com a essência de um momento “autêntico”, do que com a identificação das redes de relações estabelecidas entre diferentes atores individuais que agiram, consciente e coletivamente, no seio da comunidade. Esta iniciativa contou com o apoio de um ator social – a ACMJ – no intuito de incentivar uma festividade, através da qual pudessem ser celebrados aspectos da identidade cultural cabo-verdiana. Originalmente, sabe-se que a primeira iniciativa em torno da festividade do Kola San Jon aconteceu em 1984 a partir de um grupo de moradores do bairro preocupado com a visibilidade da sua cultura tradicional. Esta iniciativa seria retomada no ínício da década de 1990 a partir duma proposta apresentada à ACMJ por sócios e moradores que visava a mobilização do bairro como um todo, em particular a moradora natural da ilha de Santo Antão, a Gualdina Valério, conhecida no bairro pelo nome de Dina que afirmou que também era preciso dar visibilidade à cultura da sua ilha, (Colá/Kola San Jon) uma vez que o Moinho da Juventude já estava a apoiar o Batuku desde 1988, expressão musical representativa da Ilha de Santiago. As iniciativas foram múltiplas e envolveram moradores e familiares, sócios e voluntários da associação no intuito de promover a retomada dos saberes, artefactos e práticas que caracterizam as festividades de Kola San Jon. Nos arquivos internos da Associação encontrámos o seguinte registo no ano de 1996: “Fomos procurando os sócios e moradores que podiam colaborar. Dina lembrou-se de “um primo” que sabia fazer o barco (...) foi indicando outros sócios e vizinhos que conheciam bem as tradições da Festa. As estagiárias do Serviço Social (Elvira [Pereira] e Isabel [Nascimento]) foram contactando e falando com as pessoas e pouco a pouco foi-se preparando a Festa. Elas aperceberam-se dos muitos requisitos, muitas cerimónias e regras da festa do Kola San Jon. Foi também a descoberta de muitas capacidades desconhecidas: vários sócios e moradores conheciam tudo sobre a feitura de um tambor, sabiam todos os pormenores sobre a preparação e qualidades das peles para os confecionar.” Igualmente, o estabelecimento do trajeto a ser percorrido pelo cortejo festivo deu-se a partir da costura coletiva de memórias e narrativas que contestam as representações segregativas e marginalizantes da mídia e da sociedade civil, sobre os bairros autoconstruídos pelos migrantes. Durante o trajeto do Kola San Jon, os participantes procuram recriar, a seu modo, através do dispositivo da memória, uma determinada sociedade. Deste modo, a redefinição das relações espaciais e temporais, o estabelecimento e restabelecimento de relações sociais, a formação do corpo e a manifestação de personagens sociais em contínua formação estão associadas à prática performativa da festividade. Em mais de três décadas, a trajetória do Grupo é também a trajetória dos moradores do bairro e de crescimento da Associação Cultural Moinho da Juventude. A história de um bairro habitado essencialmente por operários da construção civil, funcionários dos serviços de limpeza pública e privada, trabalhadores das fábricas, dos estaleiros, peixeiras, call centers, empresas de segurança, etc. A própria história do bairro demonstra que a mobilização dos seus moradores em torno de temas de interesse comum, não ocorre somente em eventos pontuais, tais como: manifestações; festividades; protestos, mas também em simpósios, seminários e formações. A mobilização também acontece através dos pesquisadores em colaboração com os grupos culturais constituídos no seio da associação em particular através do Centro Tomkwickz da Associação Cultural Moinho da Juventude. Na manutenção duma agenda permanente de atividades e intervenções numa variedade de eventos que abrange desde o âmbito lúdico pedagógico, desportivo e artístico até o ativismo, a reivindicação formal e profissionalização . Neste contexto, as festas de Kola San Jon têm passado por várias transformações ao longo do tempo. Vivenciaram altos e baixos, perdas e ganhos ao longo da trajetória. Vários elementos fundadores já se foram (emigraram para outras paragens ou morreram), outros foram sendo absorvidos e adotaram o modo de ser do grupo, o qual, de acordo com alguns integrantes: “um grupo nada fácil”. Ao longo deste processo constata-se a existência de uma atividade performativa intensa da prática festiva, quer no bairro ou fora dele. Durante a história da prática da festividade em Cova da Moura é possível assinalar alguns marcos que acabaram por fazer a diferença no processo de consolidação do Grupo. Em 1998, o Grupo de Kola San Jon participou, junto com o batuko Finka Pé na Expo’98. Em 2007 foi convidado para participar na filmagem do filme Fados do realizador espanhol Carlos Saura. Em 2008, o grupo viajou a Cabo Verde e participou das festividades em Santo Antão e em São Vicente. Em 2011, o Grupo também participou em outro filme, desta vez do cineasta português Rui Simões Kola San Jon é Festa di Kau Berdi. No mesmo ano, o grupo viajou para Bomarzo e Ronciglione, na Itália, onde participou na exposição nacional de arte contemporânea “II Esposizione Nazionale delle Articontemporanee - Prêmio Centro 2011”. Desde 2012, o Grupo tem participado de forma surpreendentemente notável das festas de Santo António de Lisboa. No mesmo ano, foi realizado o inventário da inscrição da prática do Kola San Jon como Património Cultural Imaterial, cuja aprovação e posterior publicação em Diário da República do resultado favorável deu-se em 2013. Além disso, houve a participação nas Marchas Populares de Lisboa por duas vezes, 2015 e 2016. Nos anos seguintes, o grupo se propôs ao cumprimento das agendas de ações concretas e metas: para o ano de 2018 realizou-se a festa de Santa Cruz (05/06); o trajeto durante os festejos de Santo António de Lisboa (12/06); participou das atividades durante a visita do projeto Peace Boat, no âmbito do projeto Sabura ao bairro de Cova da Moura e à Associação Cultural Moinho da Juventude (14/06); os festejos de Kola San Jon (23/06); a visita ao Laranjeiro (24/06); à Parada de Campo de Ourique (01-02/07); a projeção do filme de Rui Simões na Padaria do Povo em Campo de Ourique (02/07); a viagem de intercâmbio ao Luxemburgo para participar no evento Weekend Capverdien realizado pela Associação Veteranos do Norte (associação de imigrantes cabo-verdianos no Luxemburgo), na cidade de Ettelbruck (13-15/07); a participação na festa de Nossa Senhora da Boa Viagem no bairro Serra das Minas e, no mesmo dia, a participação na Festa da Junta de Freguesia da Falagueira (16/09); participação na festa em Apelação (29/09); a realização do almoço para angariação de fundos (07/10); a visita da Rainha Mathilde da Bélgica (23/10) e o funeral da Dona Ernestina (17/11). Para além das agendas festivas, a ACMJ igualmente investiu esforços na realização de eventos académicos como o Colóquio Kola San Jon – Património Cultural Imaterial (2014), realizado na Amadora pela associação; o Colóquio Kola San Jon “Cultura Proibida, Património Estimado” (2015), realizado no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa e em parceria com o Moinho.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direito consuetudinário local (activo)Os direitos coletivos relativos à prática do Kola San Jon são de tipo consuetudinário, consistindo na definição do modo específico como se realiza o evento festivo no Alto da Cova da Moura e noutros contextos performativos vividos pelo Grupo de Kola. Comunidade de moradores do Bairro do Alto da Cova da Moura
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Associação Cultural Moinho da Juventude
    Função: (processo de 2013) Júlia Carolino - Antropóloga; Ana Flávia Miguel - Etnomusicóloga / (revisão de 2023) Alcides Lopes - Antropólogo; Flávio Almada
    Data: 2013/04/15
    Curriculum Vitae
    Declaração de compromisso
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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