Domínio: Expressões artísticas e manifestações de carácter performativo
Categoria: Manifestações musicais e correlacionadas
Denominação: Cante Alentejano
Outras denominações: Cante; Cantares Alentejanos; Cantar à Alentejana; Canto a Vozes
Contexto tipológico: O Cante alentejano é um canto colectivo, sem recurso a instrumentos, que incorpora música e poesia, associado geograficamente à Região Histórica do Baixo Alentejo. Integra, em muitos elementos que compõem o seu repertório, a polifonia mediterrânea de raiz tradicional, religiosa e popular.
Integra os cantos laborais, de origem proto-industrial e industrial.
Contexto social:
Grupo(s): Grupos Corais de Cante Alentejano
Contexto territorial:
Local: Os grupos corais de Cante estão predominantemente sedeados na região do interior do Sul e Centro Alentejo. No entanto, consideram-se as cidades de Cuba e Serpa os centros mais antigos e importantes. País: Portugal NUTS: Portugal \ Continente \ Alentejo \ Baixo Alentejo
Contexto temporal:
Periodicidade: Sem periodicidade fixa Data(s): O cante enquanto prática do quotidiano não possui cronologia fixa
Caracterização síntese:
O Cante Alentejano é um género de canto tradicional em duas partes, executado por grupos corais amadores no sul de Portugal e nas comunidades migrantes na Área Metropolitana de Lisboa. O repertório é constituído por melodias e poesia oral (modas), e é executado sem instrumentos musicais. Os grupos de Cante reúnem até trinta cantadores que se dividem em três papéis: o “ponto” inicia a moda, seguido pelo “alto”, duplica a melodia uma terceira ou uma décima acima, muitas vezes adicionando ornamentos. Todo o grupo coral se junta em seguida, cantando os versos restantes em terceiras paralelas. O alto é a voz orientadora, que se ouve acima do grupo em toda a música. Existe um vasto repertório de poesia tradicional, bem como versos contemporâneos. As letras exploram tanto os temas tradicionais como a vida rural, a natureza, o amor, a maternidade ou a religião, como as mudanças no contexto cultural e social. O Cante constitui um aspeto fundamental da vida social das comunidades alentejanas, permeando reuniões sociais em espaços públicos e privados. A transmissão entre os membros mais velhos e mais jovens ocorre principalmente nos ensaios dos grupos corais. Para os seus praticantes e apreciadores o Cante encarna um forte sentido de identidade e de pertença. Reforça também o diálogo entre diferentes gerações, géneros e indivíduos de diferentes origens, contribuindo assim para a coesão social.
Nota:
O "Cante Alentejano" foi inscrito pela UNESCO na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade em 27/11/2014 e, segundo a Lei de Bases do Património Cultural que estabelece que os bens culturais incluídos na lista do património mundial integram de imediato a lista de bens culturais com interesse nacional, esta manifestação é assim integrada automaticamente no INPCI. Esta ficha foi preenchida pela DGPC/DPIMI com base no formulário e na ficha de inventário disponibilizados no site da UNESCO.
Caracterização desenvolvida:
O Canto às Vozes, enquanto género, é uma prática musical e poética que se caracteriza por um canto em diafonia. É formado por um coro, sem instrumentos, de homens, de mulheres ou misto, ou ainda de crianças, misto ou não, que canta estruturas poéticas denominadas localmente por «modas».
As «modas» são estruturas poéticas de diversa arquitectura que, no Canto às Vozes, são interpretadas de forma interpolada com quartetos oriundos da tradição ou da produção de poetas populares, assim como poesia mínima que circula popularmente. Esta lírica mínima é denominada por «versos», «letras» ou «cantigas». «Versos» e «moda» são, pelos cantadores, denominados por «moda».
O formato de interpretação possui um cânone: um solista inicia, denominado por «ponto», e canta um quarteto, a «cantiga»; quando este termina, um outro o substituí, denominado por «alto», que inicia a parte da «moda» propriamente dita, cantando um verso desta, após o qual todo o coro se lhe junta.
A denominação antiga, e usual, era Canto às Vozes. Ao longo do século XX, foi sendo substituída por Cante Alentejano. A denominação Canto às Vozes surge de uma oposição a descante, ou descanto, que incluía todos os genéros coreográficos ou com instrumentos, em particular com acompanhamento de viola de arames, também denominada por viola «campaniça», que já assim é denominada na segunda década do século XX.
Durante décadas foi alimentada uma diferença rítmica entre o Canto às Vozes entre a margem esquerda e direita do Guadiana. A dissertação em Ciências Musicais de Jorge Miguel Cecília Moniz (2007), comparando os repertórios de Cuba e Pias, veio mostrar a inexistência de diferenças.
Contexto transmissão:
Estado de transmissão activo Descrição: O Canto às Vozes é uma prática activa em todo o município de Serpa.
A existência desta prática de cantar em colectivo no quotidiano, assim como a existência de grupos corais, desde 1927 até a actualidade, e a formação, ainda hoje, de grupos dedicados ao Canto às Vozes, é prova da vitalidade da manifestação no Município de Serpa. Modo de transmissão oral Idioma(s): Português Agente(s) de transmissão: Mestres-ensaiadores, cantadores, ou «cantarristas»
Origem / Historial:
O Canto às Vozes no Baixo Alentejo surge dividido em duas grandes áreas, margem esquerda e margem direita, em relação a um rio, e ao seu vale, o rio Guadiana. Na margem esquerda, onde se situa o Município de Serpa, as «modas» seriam mais «ligeirinhas»; na margem direita, onde se situa, por exemplo, o Município de Cuba, as «modas seriam mais «pesadas», as «modas de barro», mais difíceis de cantar. [Esta denominação «modas de barro» teria a sua origem na dificuldade de trato que as terras em torno de Beja possuem. A denominação «ligeirinhas», parece advir de se associar este cantar a uma relação, em muito já perdida, com os bailes.]
Tal diferença, devido a estudos de índole etnomusicológica, é desvalorizada.
Historicamente, nenhuma informação documental parece provar a existência de canto coral sem instrumentos no Baixo Alentejo antes de 1907, data em que se forma o «Orfeão popular de Serpa», que Michel'angelo Lambertini [1862-1920] assiste, no verão desse ano, a um primeiro espectáculo. Assim, parece ser a partir daí que começam a surgir os grupos corais estruturados como conhecemos hoje.
A sustentar esta hipótese está a obra de Manuel Dias Nunes [1809-1907], dispersa em grande parte pela revista «A Tradição» [1899-1904], que recolhe cerca de 60 «modas-estribilho» [designação devida à repetição da estrutura poética base] tradicionais de Serpa, nenhuma das quais apenas interpretada só na forma coral: todas são acompanhadas por viola e muitas delas são coreográficas.
Em nenhum outro local do Baixo Alentejo temos um cancioneiro apenas vocal.
E embora tal afirmação seja correcta, importa chamar a atenção para a investigação inexistente sobre os cantos colectivos subsistentes ou potencialmente presentes na Região Histórica do Alentejo, sobre os quais se poderiam construir hipóteses de trabalho até agora investigadas. O papel do teatro religioso, as dramaturgias associadas a práticas piedosas, ou a presença de comunidades escravas, de diversa origem e aqui chegadas a partir do séc. XVI, poderiam tornar muito mais rica a análíse do que a forma empobrecedora de olhar a origem do Canto às Vozes enquanto tensão entre uma origem cristã ou não europeia.
Basta inventariar, e comparar, a «Novena da chuva» de Selmes (Vidigueira), onde o protocolo é idêntico, mas onde a denominação «ponto» é substituída por «baixo»; o Presépio da Trindade (Beja); os «Cantos das Almas» ou também com as «Festas da Santa Cruz», em Aldeia da Venda (Alandroal), para percebermos uma complexidade de que até agora os estudos se têm afastado.
Podemos, pois, inferir que a fórmula que está na origem do Canto às Vozes, como hoje o conhecemos, foi criada no início do século XX, estruturada em torno do movimento orfeónico internacional, dirigido às classes trabalhadoras, e que o resultado é posteriormente tomado pelas elites intelectuais, económicas e políticas, criando um modelo de canto que poderemos designar de operário ou de canto laboral.
Este canto colectivo é interpretado por classes trabalhadoras que, embora caracterizadas no passado por rurais e camponesas, são proto-industriais ou industriais, trabalhando em associação com máquinas ou em grandes explorações mineiras: caso de São Domingos (Mértola) ou Aljustrel, onde irá surgir, em 1926, o primeiro grupo coral. A formação deste grupo será secundada pela formação de um outro na vila de Serpa, em 1927, local onde uma elite fundiária procurava há décadas criar uma agricultura moderna.
A implantação da República, em 1910, e a consequente extinção do Seminário de Beja, transportado por volta de 1920 para Serpa, terá como impacto no Canto às Vozes uma relação profunda entre esta vila e um conjunto de investigadores oriundos deste seminário: Joaquim Baptista Roque e Padres António Alfaiate Marvão e José Alcobia. Serão estes que, durante o Estado Novo irão desenhar o figurino dos grupos corais como hoje conhecemos, associados quer ao arqueólogo Abel Viana, quer a Quirino Mealha,
governado civil de Beja na década de 1940.
O Município de Serpa é assim um local nuclear no estudo deste bem patrimonial imaterial. Não apenas porque, ao que tudo indica, aqui tem a origem remota desta prática no campo formal, como foi um local bastante emblemático nas recolhas desde a viragem dos sécs. XIX para XX à actualidade. A juntar a tudo isto, importa ressalvar que os repertórios editados em disco vão ser fundamentais na estruturação dos repertórios dos grupos corais fora deste município.
Responsável pela documentação :
Nome: Paulo Lima Função: Antropólogo Data: 2014