Importa sublinhar um facto: o ponto de cruz, que tão bem define os bordados de Glória do Ribatejo, não é o que verdadeiramente os distingue. O que torna estes bordados autênticos, genuínos e diferentes é a sua aplicação e utilização, em variadíssimas peças de vestuário, na “roupa da casa” e em utensílios quotidianos, ou seja, a sua funcionalidade. Por outro lado, encontra-se também uma matriz que permite identificar uma peça gloriana: desde a escolha do tecido (textura e cor), dos motivos e diálogo entre eles, às aplicações de pormenor.
Contrariamente ao que acontecia noutros locais, onde os bordados tinham um caráter preferencialmente decorativo, em Glória do Ribatejo, os bordados a ponto de cruz assumem uma funcionalidade específica, incluindo a aplicação de símbolos a ponto de cruz em diferentes peças, como vestuário, lenços de namorados, carteiras, “charteiras”, bolsas de relógio, “talegos”, bolsas do dinheiro, porta-chaves, peças de utilidade doméstica, como toalhas de mesa, toalhas de banho, colchas, etc., o que lhes confere uma originalidade peculiar e dá uma especial consistência à sua autenticidade.
No nº52 do anexo II/1 mostram-se algumas peças representativas da funcionalidade destes bordados, a qual foi bem percebida por autoras como Maria Lamas:
“O seu gosto pelo bordado é tal, que as leva a bordar todas as peças do vestuário, até mesmo os lenços de assoar.
Assim como as alentejanas, fazem bolsas de “crochet” em cores alegres e bem combinadas para oferecer aos namorados. As que se destinam a guardar moedas têm o nome de “pataqueiras”. Também tecem com lã de vários tons, e bordam interiormente, as carteiras que eles usam” (Maria Lamas, 1948, pág. 298)
Como se disse, os bordados de Glória do Ribatejo constituem uma atividade executada pelas mulheres, que assumiram durante várias gerações a responsabilidade da transmissão deste saber-fazer.
A arte de “marcar” ou bordar nunca foi considerada como um ofício ou uma profissão, pois ela fazia parte da educação feminina, desde tenra idade, preparando as mulheres para os afazeres domésticos em idade adulta. O testemunho de Rosa Monteiro e do seu marido, Silvestre Pirralha, conhecidos em Glória do Ribatejo por “Ti Rosa” e “Ti Silvestre Quarta-Feira”, em 2010, e utilizado como texto de apresentação da exposição “Glória – Artes do Pormenor – Uma Identidade” (recolha de Rita Pote) (Anexo II) é disso um ótimo exemplo:
“ … Quando a gente tinha uns cinco ou seis anos, as nossas mães arranjavam logo uns trapinhos e uns bocadinhos de linha para aprendermos a marcar. Nunca se estava a olhar. O tempo era todo aproveitadinho. As cachopinhas estavam sempre a marcar. Por isso é que, quando chegávamos a grandes, arremedávamos tão bem, fazíamos tudo tão perfeitinho. Quando tínhamos oito ou nove anos íamos guardar o gado (cabras ou porcos) e daí, íamos para o campo. Tínhamos de ajudar a criar os nossos irmãos, mas levávamos sempre os trapinhos e as linhas para estar entretidas”.
Ao contrário da grande maioria dos bordados portugueses e de quem os utilizava, em Glória do Ribatejo, eles nunca foram considerados um símbolo de riqueza. Eram feitos com amor, paciência, dedicação – um símbolo de primor para quem os usava e para quem os fazia, não tendo qualquer expressão comercial.
Em Glória do Ribatejo, no passado, estes bordados eram quase sempre realizados em grupo, na rua com as vizinhas ou amigas, mas também em casa, junto ao “canto” (chaminé).
Mas também é preciso compreender um outro lado desta produção: a simplicidade oriunda da necessidade e, muitas vezes, da pobreza. Com efeito, os escassos recursos de todo o tipo, faziam com que poupassem o mais possível, pelo que não compravam roupa fora. Era tradição confecionar todas as peças, não sendo a falta de dinheiro condicionante para a beleza das suas vestes, em que eram aplicados os mais “requintados” bordados que custavam paciência, habilidade, muita criatividade e disponibilidade de tempo.
Para além de estabelecerem relações de proximidade e convívio social, estes bordados assumem também um caráter educativo. Sem o saberem, as mulheres que os bordavam, com a curiosidade e necessidade em conhecer as letras do alfabeto para conseguirem “marcar” as letras dos nomes dos seus amigos e namorados, iam aprendendo algumas letras. Porque estas mulheres não sabiam ler nem escrever, encontram-se muito frequentemente as letras marcadas em sentido inverso ou com leitura para a esquerda. Em entrevistas realizadas no âmbito desta candidatura, percebemos que muitas mulheres nascidas nas décadas de 30/40, sendo genericamente analfabetas, conseguem reconhecer algumas letras e dizer os nomes próprios e comuns que podem escrever com elas.
São várias as circunstâncias do quotidiano onde estavam – e estão – presentes os bordados a ponto de cruz. Numa sociedade agrícola, que dependia da oferta de trabalho dos proprietários agrícolas mais abastados da região, estes bordados assumem uma notável importância na oficialização desses compromissos. Quando ficava apalavrado o compromisso de trabalho, aos homens, era oferecido meio litro de vinho, para beber no momento, e às mulheres, algumas meadas de linhas, de várias cores, já que a estas estava vedado o hábito de consumir álcool em público. Chamava-se a esta prática (tanto masculina como feminina) as “molhaduras”. Antes de partirem para os trabalhos, as raparigas exibiam ao peito ou no avental, várias molhaduras, mostrando assim que eram consideradas mulheres de grande valor, já que cada molhadura correspondia a um contacto efetuado pelas “capatazas”.
Daqui resulta um novo passo na apresentação dos bordados. Estes bordados a ponto de cruz são, assim, uma arte decorativa têxtil com uma função utilitária, executados pelas mulheres de Glória do Ribatejo, que os souberam preservar, desenvolver, adaptar às necessidades do seu quotidiano, consoante as épocas, e os transmitiram de geração em geração até aos nossos dias.
Contrariamente ao que acontece com os bordados de Arraiolos, por exemplo, em que primeiro se faz o desenho no tecido e depois se procede ao contorno e enchimento com o ponto, em Glória do Ribatejo, as mulheres mais antigas tinham como guião os “marcados” das antepassadas, surgindo, mais tarde, os chamados “marcadores” em papel que continham muitos motivos, os quais consistiam em gráficos geométricos coloridos. Atualmente, as fontes são variadas, como as revistas, a internet, etc. em que se verifica uma diversidade ainda maior de motivos, mas a escolha não é arbitrária – ela vai sempre ao encontro da matriz tradicional. Mercê de um grande trabalho de investigação que tem resultado em inúmeras exposições, a comunidade reforçou o seu interesse pelos motivos antigos, aplicando-os, sobretudo, nas bolsas do dinheiro.
“Marcar” é uma atividade morosa e requer muita prática para que resulte de acordo com os padrões aceites na comunidade. No caso dos bordados de Glória do Ribatejo, os mesmos obrigam às fases seguintes:
1. Fase - preparação do tecido
A escolha do tecido / pano para aplicar os bordados a ponto de cruz, dependia da sua utilidade e funcionalidade. Por norma, usava-se o pano cru, paninho, linhol, popelina e riscado. A serapilheira era utilizada para peças maiores. Nas toucas e fatos das crianças, o tecido mais comum era a popelina, sendo, por vezes, utilizado o bordado inglês, no caso dos batizados e da festa anual. Nestas últimas situações, eram usados adereços à base de fitas de seda. A aquisição dos tecidos era feita nas mercearias locais e, tendo em conta a constante procura, os comerciantes tinham sempre stock de diferentes tecidos e linhas.
A partir da década de 1970, surge um novo tipo de tecido, denominado quadrilé, que tinha pequenos quadrados e onde era mais fácil bordar o ponto de cruz, porque não era necessário contar os fios, bastava seguir os furos que o tecido já continha.
A preparação do tecido tinha sempre em consideração o tipo de peça que se pretendia executar. Por exemplo, a cortina do pano da chaminé era uma peça que ornamentava a chaminé e tinha alguma dimensão – cerca de 1,50m a 2m, o que implicava uma grande quantidade de tecido. Logo, a escolha tinha de recair num tecido de pouca qualidade.
Em qualquer caso, o aparecimento dos panos quadrilé, torna a tarefa de bordar mais simplificada, porque neste tipo de tecido os quadrados permitem a realização do bordado sem contar os fios. Este tecido veio facilitar a aprendizagem às crianças, mas não teve grande popularidade na feitura das peças necessárias no quotidiano.
2ª fase: escolha das linhas e das cores
Nos bordados mais antigos, verifica-se que o ponto de cruz era mais fino, dado que as mulheres desfiavam as linhas para as rentabilizar. As cores usadas no século XIX e início do século XX são o vermelho e o azul escuro, de diferentes tonalidades. Um pouco mais tarde, torna-se comum o vermelho e o verde, surgindo, logo a seguir, uma panóplia grande de cores que se associavam consoante a matriz tradicional e o gosto da executante. Daí que possamos encontrar o mesmo motivo bordado a diferentes cores.
Combinam-se as cores de forma harmoniosa. Assim, se o motivo decorativo central ocupar uma determinada cor, verifica-se a aplicação dessa mesma cor nos cantos e por vezes na cercadura ou nos “bicos”, de forma a realçar a composição dos bordados.
Nas décadas de 1970 e 1980, surge um novo tipo de linhas, a que se chamava “linha filosel”, de cores variadas e que torna possível a visualização de novos aspetos cromáticos, nos bordados a ponto de cruz de Glória do Ribatejo.
3ª fase: planeamento dos temas no tecido
4ª fase: início do "marcar"
O ato de bordar foi, na sua génese, um fenómeno social, pois as mulheres quando se deslocavam sazonalmente para trabalhar nos campos dos grandes proprietários da região, ficavam, como se descreveu, alojadas durante 2 ou 3 semanas em “quartéis”, pequenos casebres sem condições. Era sobretudo à noite, após a faina dura do trabalho agrícola, em redor de uma candeia ou de um candeeiro a petróleo, que se juntavam e começavam a “marcar”. Era precisamente em comunhão que escolhiam os motivos decorativos, pois, tal como já foi referido, eram continuamente as peças antigas que serviam de guião.
Este processo de partilha e fruição das peças entre as mulheres, foi fundamental para assegurar a transmissibilidade dos bordados, que atravessaram gerações.
Atualmente, com a mecanização do ciclo agrícola e a consequente alteração da vida rural, embora a mulher gloriana continue a trabalhar na agricultura, já não fica alojada em quartéis, vai e vem todos dias a casa. Os bordados, lentamente, começaram, por isso, a perder o ato social que tinham no passado. Embora o meio ambiente seja outro, o processo é o mesmo, elas trocam ideias, pedem opiniões umas às outras, entreajudam-se, tal como acontecia nos trabalhos agrícolas. As mulheres seguem outros padrões decorativos, regem-se ainda por revistas de bordados a ponto de cruz e por isso introduzem novos elementos decorativos, mas não deixam de utilizar os motivos antigos que lhes foram transmitidos, perpetuando, desta forma, a memória da comunidade. É muito provável que o papel da televisão e da internet não seja alheio aos novos tipos de bordados que hoje as mulheres produzem, já que, no pequeno ecrã, descobrem novos modelos, peças e ideias mais consentâneas com as casas em que habitam.
Em Glória do Ribatejo, bordar a ponto de cruz é sempre designado por “marcar”. Só se utiliza o verbo bordar para referir outros pontos que não este. É uma arte aplicada no pano, onde o resultado final é atingido com o recurso a uma agulha com linha colorida inserida, resultando em vários motivos bordados a ponto de cruz. O ponto de cruz é um ponto cruzado oblíquo, fazendo a forma de um x (cruz), que se repete até se conseguir o motivo pretendido.
Estes bordados, por norma, iniciam-se ao centro do pano e, a partir daí, se começa a bordar. Se a peça não contemplar um centro marcado, o planeamento da marcação faz-se em linha reta, pelas bordas, dividindo-se o espaço desde o meio da linha em direção ao canto, o que resulta, em termos estéticos, numa peça com os quatro cantos geometricamente perfeitos, já que os pegamentos dos motivos ou da cercadura se fazem ao meio de cada linha. Desta forma, garante-se que não há desvios de enquadramento estético, o que confere grande beleza e riqueza decorativa às peças. Para rematar a composição estética da peça, a mesma é ornamentada nas extremidades com “bicos”, que são criteriosamente escolhidos dentro da grande variedade que existe.
Os bordados a ponto de cruz possuem uma grande riqueza estética, criativa e sentimental. Não deixa de ser curioso perceber que são as mãos calejadas dos trabalhos mais duros do campo que produzem estas admiráveis obras de arte popular.
Tipo | Circunstância | Detentor |
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Direito Consuetudinário | Saber- Fazer das mulheres desta comunidade na utilização do Ponto de Cruz com características a funcionalidades especificas | Comunidade em especial pertença das mulheres |