Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_2022_001
  • Domínio: Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais
  • Categoria: Manifestações artísticas e correlacionadas
  • Denominação: Os bordados da Glória do Ribatejo
  • Outras denominações: "Marcar", "costurar", "bordar", “arremendar”
  • Contexto tipológico: Os bordados de Glória do Ribatejo são uma manifestação artesanal da freguesia de Glória do Ribatejo e caraterizam-se por ser essencialmente um bordado a ponto de cruz, havendo, no entanto, outros pontos e aplicações de pormenor, como rendas e crochet. O bordado é composto por 2 pontos diagonais que se cruzam no centro, o que dá o aspeto de uma cruz. A agulha é o instrumento que determina a técnica do bordado, pois é ela que leva o fio a ser aplicado no tecido. Este tipo de bordado está ligado à identidade e à memória social da comunidade. No passado, tinha uma funcionalidade prática, na indumentária da mulher, das crianças e até do homem; na decoração da casa, de móveis e noutros objetos do dia-a-dia. Na sua forma de olhar o mundo, a comunidade perspetivava estes bordados como forma de acautelar o futuro dos descendentes, dado que os familiares diretos asseguravam o enxoval com várias peças, ainda por cima bordadas e bonitas, que poderiam ser utilizadas posteriormente. Em muitas famílias este costume mantém-se inalterável, nos dias de hoje, embora os enxovais, hoje, não sejam compostos só por estas peças, como acontecia no passado. Atualmente, os bordados renovaram-se e continuam a ser utilizados no quotidiano, aplicados em peças contemporâneas, como, por exemplo, em bolsas de telemóveis, bolsas do dinheiro, porta-chaves, panos para diversos fins, toalhas de mesa, toalhas de banho, etc., como adiante será demonstrado. Os bordados de Glória do Ribatejo são assim um elemento patrimonial definidor da identidade cultural desta comunidade e assumem um papel estruturante no desenvolvimento local. Ainda a propósito de Outras denominações desta prática, importa referir que os habitantes de Glória do Ribatejo, na sua linguagem corrente, é costume utilizarem um destes verbos para indicarem o trabalho de bordados que vão ou que estão a realizar. Para a população desta freguesia são sinónimos da mesma ação.
  • Contexto social:
    Comunidade(s): População da Vila de Glória do Ribatejo
    Grupo(s): Mulheres Glorianas
    Indivíduo(s): Mulheres Glorianas
  • Contexto territorial:
    Local: Glória do Ribatejo
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente \ Alentejo \ Lezíria do Tejo
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: É uma prática desenvolvida ao longo de todo o ano.
    Data(s): Não se aplica nos bordados da Glória do Ribatejo, visto que as mulheres bordam sempre que tenham disponibilidade.
  • Caracterização síntese:
    A produção e uso dos bordados a ponto de cruz de Glória do Ribatejo está presente no quotidiano desta freguesia há várias gerações. É uma arte popular cujo ponto dominante é, como se referiu, o ponto de cruz. Em algumas peças bordadas são confecionadas outras aplicações de pormenor, todas conhecidas pelos seus nomes próprios, em que os “bicos” assumem preponderância, pois são adornos que rematam as extremidades.
    Este saber-fazer, transmitido oralmente e em contexto prático pelas mulheres glorianas, era aplicado na elaboração de várias peças de vestuário quotidiano, na roupa da casa, e em outros objetos de utilidades diversas.
    Por um lado, esta expressão artística e também cultural era o reflexo de uma necessidade prática da mulher gloriana que, com poucos recursos, tentava dar algum requinte à sua indumentária, aplicando os bordados em todas as peças que costurava à mão, mas, por outro lado, permitia assinalar um estatuto ou relação pessoal e social.
    De facto, todos os bordados, além da sua função pessoal e privada, projetam para o espaço público um testemunho de um estatuto, pessoal e social do seu portador, mostrando as competências, atenção e esforço de cada mulher. É por isso que estes bordados são, também, uma marca na identidade dos habitantes desta freguesia e fazem parte da sua cultura e das suas tradições. Esse estatuto e posição pessoal e social resultam do facto de serem feitos para ser usados no espaço público. De facto, além da beleza do próprio bordado, ele anunciava a competência e dedicação da mulher que o produzira; outras vezes, a namorada, que o bordou, e os “camaradas” (amigos) dos dois comprometidos. A interpretação pública do próprio bordado era, em si mesma, um verdadeiro evento.
    A simbologia e funcionalidade associadas à aplicação destes bordados confere-lhes características que os diferencia dos outros bordados, sem qualquer expressão comercial ou de ostentação de riqueza, já que estas peças deixam transparecer o rigor e o preceito de quem as borda.
  • Caracterização desenvolvida:

    Importa sublinhar um facto: o ponto de cruz, que tão bem define os bordados de Glória do Ribatejo, não é o que verdadeiramente os distingue. O que torna estes bordados autênticos, genuínos e diferentes é a sua aplicação e utilização, em variadíssimas peças de vestuário, na “roupa da casa” e em utensílios quotidianos, ou seja, a sua funcionalidade. Por outro lado, encontra-se também uma matriz que permite identificar uma peça gloriana: desde a escolha do tecido (textura e cor), dos motivos e diálogo entre eles, às aplicações de pormenor.
    Contrariamente ao que acontecia noutros locais, onde os bordados tinham um caráter preferencialmente decorativo, em Glória do Ribatejo, os bordados a ponto de cruz assumem uma funcionalidade específica, incluindo a aplicação de símbolos a ponto de cruz em diferentes peças, como vestuário, lenços de namorados, carteiras, “charteiras”, bolsas de relógio, “talegos”, bolsas do dinheiro, porta-chaves, peças de utilidade doméstica, como toalhas de mesa, toalhas de banho, colchas, etc., o que lhes confere uma originalidade peculiar e dá uma especial consistência à sua autenticidade.

    No nº52 do anexo II/1 mostram-se algumas peças representativas da funcionalidade destes bordados, a qual foi bem percebida por autoras como Maria Lamas:

    “O seu gosto pelo bordado é tal, que as leva a bordar todas as peças do vestuário, até mesmo os lenços de assoar.
    Assim como as alentejanas, fazem bolsas de “crochet” em cores alegres e bem combinadas para oferecer aos namorados. As que se destinam a guardar moedas têm o nome de “pataqueiras”. Também tecem com lã de vários tons, e bordam interiormente, as carteiras que eles usam” (Maria Lamas, 1948, pág. 298)

    Como se disse, os bordados de Glória do Ribatejo constituem uma atividade executada pelas mulheres, que assumiram durante várias gerações a responsabilidade da transmissão deste saber-fazer.
    A arte de “marcar” ou bordar nunca foi considerada como um ofício ou uma profissão, pois ela fazia parte da educação feminina, desde tenra idade, preparando as mulheres para os afazeres domésticos em idade adulta. O testemunho de Rosa Monteiro e do seu marido, Silvestre Pirralha, conhecidos em Glória do Ribatejo por “Ti Rosa” e “Ti Silvestre Quarta-Feira”, em 2010, e utilizado como texto de apresentação da exposição “Glória – Artes do Pormenor – Uma Identidade” (recolha de Rita Pote) (Anexo II) é disso um ótimo exemplo: “ … Quando a gente tinha uns cinco ou seis anos, as nossas mães arranjavam logo uns trapinhos e uns bocadinhos de linha para aprendermos a marcar. Nunca se estava a olhar. O tempo era todo aproveitadinho. As cachopinhas estavam sempre a marcar. Por isso é que, quando chegávamos a grandes, arremedávamos tão bem, fazíamos tudo tão perfeitinho. Quando tínhamos oito ou nove anos íamos guardar o gado (cabras ou porcos) e daí, íamos para o campo. Tínhamos de ajudar a criar os nossos irmãos, mas levávamos sempre os trapinhos e as linhas para estar entretidas”.
    Ao contrário da grande maioria dos bordados portugueses e de quem os utilizava, em Glória do Ribatejo, eles nunca foram considerados um símbolo de riqueza. Eram feitos com amor, paciência, dedicação – um símbolo de primor para quem os usava e para quem os fazia, não tendo qualquer expressão comercial.

    Em Glória do Ribatejo, no passado, estes bordados eram quase sempre realizados em grupo, na rua com as vizinhas ou amigas, mas também em casa, junto ao “canto” (chaminé).
    Mas também é preciso compreender um outro lado desta produção: a simplicidade oriunda da necessidade e, muitas vezes, da pobreza. Com efeito, os escassos recursos de todo o tipo, faziam com que poupassem o mais possível, pelo que não compravam roupa fora. Era tradição confecionar todas as peças, não sendo a falta de dinheiro condicionante para a beleza das suas vestes, em que eram aplicados os mais “requintados” bordados que custavam paciência, habilidade, muita criatividade e disponibilidade de tempo.
    Para além de estabelecerem relações de proximidade e convívio social, estes bordados assumem também um caráter educativo. Sem o saberem, as mulheres que os bordavam, com a curiosidade e necessidade em conhecer as letras do alfabeto para conseguirem “marcar” as letras dos nomes dos seus amigos e namorados, iam aprendendo algumas letras. Porque estas mulheres não sabiam ler nem escrever, encontram-se muito frequentemente as letras marcadas em sentido inverso ou com leitura para a esquerda. Em entrevistas realizadas no âmbito desta candidatura, percebemos que muitas mulheres nascidas nas décadas de 30/40, sendo genericamente analfabetas, conseguem reconhecer algumas letras e dizer os nomes próprios e comuns que podem escrever com elas.
    São várias as circunstâncias do quotidiano onde estavam – e estão – presentes os bordados a ponto de cruz. Numa sociedade agrícola, que dependia da oferta de trabalho dos proprietários agrícolas mais abastados da região, estes bordados assumem uma notável importância na oficialização desses compromissos. Quando ficava apalavrado o compromisso de trabalho, aos homens, era oferecido meio litro de vinho, para beber no momento, e às mulheres, algumas meadas de linhas, de várias cores, já que a estas estava vedado o hábito de consumir álcool em público. Chamava-se a esta prática (tanto masculina como feminina) as “molhaduras”. Antes de partirem para os trabalhos, as raparigas exibiam ao peito ou no avental, várias molhaduras, mostrando assim que eram consideradas mulheres de grande valor, já que cada molhadura correspondia a um contacto efetuado pelas “capatazas”.

    Daqui resulta um novo passo na apresentação dos bordados. Estes bordados a ponto de cruz são, assim, uma arte decorativa têxtil com uma função utilitária, executados pelas mulheres de Glória do Ribatejo, que os souberam preservar, desenvolver, adaptar às necessidades do seu quotidiano, consoante as épocas, e os transmitiram de geração em geração até aos nossos dias.
    Contrariamente ao que acontece com os bordados de Arraiolos, por exemplo, em que primeiro se faz o desenho no tecido e depois se procede ao contorno e enchimento com o ponto, em Glória do Ribatejo, as mulheres mais antigas tinham como guião os “marcados” das antepassadas, surgindo, mais tarde, os chamados “marcadores” em papel que continham muitos motivos, os quais consistiam em gráficos geométricos coloridos. Atualmente, as fontes são variadas, como as revistas, a internet, etc. em que se verifica uma diversidade ainda maior de motivos, mas a escolha não é arbitrária – ela vai sempre ao encontro da matriz tradicional. Mercê de um grande trabalho de investigação que tem resultado em inúmeras exposições, a comunidade reforçou o seu interesse pelos motivos antigos, aplicando-os, sobretudo, nas bolsas do dinheiro.
    “Marcar” é uma atividade morosa e requer muita prática para que resulte de acordo com os padrões aceites na comunidade. No caso dos bordados de Glória do Ribatejo, os mesmos obrigam às fases seguintes:

    1. Fase - preparação do tecido
    A escolha do tecido / pano para aplicar os bordados a ponto de cruz, dependia da sua utilidade e funcionalidade. Por norma, usava-se o pano cru, paninho, linhol, popelina e riscado. A serapilheira era utilizada para peças maiores. Nas toucas e fatos das crianças, o tecido mais comum era a popelina, sendo, por vezes, utilizado o bordado inglês, no caso dos batizados e da festa anual. Nestas últimas situações, eram usados adereços à base de fitas de seda. A aquisição dos tecidos era feita nas mercearias locais e, tendo em conta a constante procura, os comerciantes tinham sempre stock de diferentes tecidos e linhas.
    A partir da década de 1970, surge um novo tipo de tecido, denominado quadrilé, que tinha pequenos quadrados e onde era mais fácil bordar o ponto de cruz, porque não era necessário contar os fios, bastava seguir os furos que o tecido já continha. A preparação do tecido tinha sempre em consideração o tipo de peça que se pretendia executar. Por exemplo, a cortina do pano da chaminé era uma peça que ornamentava a chaminé e tinha alguma dimensão – cerca de 1,50m a 2m, o que implicava uma grande quantidade de tecido. Logo, a escolha tinha de recair num tecido de pouca qualidade.
    Em qualquer caso, o aparecimento dos panos quadrilé, torna a tarefa de bordar mais simplificada, porque neste tipo de tecido os quadrados permitem a realização do bordado sem contar os fios. Este tecido veio facilitar a aprendizagem às crianças, mas não teve grande popularidade na feitura das peças necessárias no quotidiano.

    2ª fase: escolha das linhas e das cores
    Nos bordados mais antigos, verifica-se que o ponto de cruz era mais fino, dado que as mulheres desfiavam as linhas para as rentabilizar. As cores usadas no século XIX e início do século XX são o vermelho e o azul escuro, de diferentes tonalidades. Um pouco mais tarde, torna-se comum o vermelho e o verde, surgindo, logo a seguir, uma panóplia grande de cores que se associavam consoante a matriz tradicional e o gosto da executante. Daí que possamos encontrar o mesmo motivo bordado a diferentes cores.
    Combinam-se as cores de forma harmoniosa. Assim, se o motivo decorativo central ocupar uma determinada cor, verifica-se a aplicação dessa mesma cor nos cantos e por vezes na cercadura ou nos “bicos”, de forma a realçar a composição dos bordados.
    Nas décadas de 1970 e 1980, surge um novo tipo de linhas, a que se chamava “linha filosel”, de cores variadas e que torna possível a visualização de novos aspetos cromáticos, nos bordados a ponto de cruz de Glória do Ribatejo.

    3ª fase: planeamento dos temas no tecido

    Escolhida a função do bordado, feita a preparação do pano e a escolha das linhas, segue-se o planeamento dos motivos a aplicar no tecido. Há uma grande variedade temática nas peças:
    - Motivos religiosos, como a cruz de Cristo ou a estrela de David;
    - Símbolos associados à natureza, como os ramos de flores, os vasos de flores, as árvores, ramos e silvas, flores variadas, entre outros;
    - Representação de motivos associados à realeza, como é o caso de várias coroas;
    - Simbologia animal, como cães, pombas ou borboletas;
    - Símbolos que se encontram nos lenços de namorados, de que são exemplo os corações com chaves e as iniciais dos namorados e amigos próximos.
    No nº 2 do anexo II/1 – Documentação fotográfica - pode ser consultado “Glossário de Bicos, Letras, Cercaduras e Motivos)
    Com a evolução dos tempos, ainda é possível encontrar esta simbologia, embora a partir das décadas de 80 e 90 do século passado, com o acesso às revistas de bordados, tivessem sido introduzidos novos temas, de acordo com a escolha pessoal da mulher. Contudo, não há uma interrupção relativamente à simbologia antiga. A mulher continua a aplicar temas antigos e relembra sempre quem a ensinou a bordar determinado motivo – a avó ou a mãe, o que denota a preocupação com a preservação da memória, assumindo, em simultâneo, que esta identidade cultural não se deve perder e que, acima de tudo, está a preservar os bordados a ponto de cruz de Glória do Ribatejo.
    Um outro aspeto antropologicamente interessante é a marcação das iniciais da mulher e do seu companheiro, o que individualiza a peça e a posse.

    4ª fase: início do "marcar"
    O ato de bordar foi, na sua génese, um fenómeno social, pois as mulheres quando se deslocavam sazonalmente para trabalhar nos campos dos grandes proprietários da região, ficavam, como se descreveu, alojadas durante 2 ou 3 semanas em “quartéis”, pequenos casebres sem condições. Era sobretudo à noite, após a faina dura do trabalho agrícola, em redor de uma candeia ou de um candeeiro a petróleo, que se juntavam e começavam a “marcar”. Era precisamente em comunhão que escolhiam os motivos decorativos, pois, tal como já foi referido, eram continuamente as peças antigas que serviam de guião.
    Este processo de partilha e fruição das peças entre as mulheres, foi fundamental para assegurar a transmissibilidade dos bordados, que atravessaram gerações.
    Atualmente, com a mecanização do ciclo agrícola e a consequente alteração da vida rural, embora a mulher gloriana continue a trabalhar na agricultura, já não fica alojada em quartéis, vai e vem todos dias a casa. Os bordados, lentamente, começaram, por isso, a perder o ato social que tinham no passado. Embora o meio ambiente seja outro, o processo é o mesmo, elas trocam ideias, pedem opiniões umas às outras, entreajudam-se, tal como acontecia nos trabalhos agrícolas. As mulheres seguem outros padrões decorativos, regem-se ainda por revistas de bordados a ponto de cruz e por isso introduzem novos elementos decorativos, mas não deixam de utilizar os motivos antigos que lhes foram transmitidos, perpetuando, desta forma, a memória da comunidade. É muito provável que o papel da televisão e da internet não seja alheio aos novos tipos de bordados que hoje as mulheres produzem, já que, no pequeno ecrã, descobrem novos modelos, peças e ideias mais consentâneas com as casas em que habitam.
    Em Glória do Ribatejo, bordar a ponto de cruz é sempre designado por “marcar”. Só se utiliza o verbo bordar para referir outros pontos que não este. É uma arte aplicada no pano, onde o resultado final é atingido com o recurso a uma agulha com linha colorida inserida, resultando em vários motivos bordados a ponto de cruz. O ponto de cruz é um ponto cruzado oblíquo, fazendo a forma de um x (cruz), que se repete até se conseguir o motivo pretendido.
    Estes bordados, por norma, iniciam-se ao centro do pano e, a partir daí, se começa a bordar. Se a peça não contemplar um centro marcado, o planeamento da marcação faz-se em linha reta, pelas bordas, dividindo-se o espaço desde o meio da linha em direção ao canto, o que resulta, em termos estéticos, numa peça com os quatro cantos geometricamente perfeitos, já que os pegamentos dos motivos ou da cercadura se fazem ao meio de cada linha. Desta forma, garante-se que não há desvios de enquadramento estético, o que confere grande beleza e riqueza decorativa às peças. Para rematar a composição estética da peça, a mesma é ornamentada nas extremidades com “bicos”, que são criteriosamente escolhidos dentro da grande variedade que existe.
    Os bordados a ponto de cruz possuem uma grande riqueza estética, criativa e sentimental. Não deixa de ser curioso perceber que são as mãos calejadas dos trabalhos mais duros do campo que produzem estas admiráveis obras de arte popular.

  • Manifestações associadas:
    Os bordados a ponto de cruz de Glória do Ribatejo, são uma manifestação cultural que se encontra bem ativa e presente nesta freguesia. As manifestações associadas a este saber-fazer foram-se alterando, tal como a própria evolução dos tempos. Alteraram-se hábitos sociais, surgem novas modas e novos interesses. A autenticidade mantém-se e esta manifestação tem sido objeto de estudo, tanto da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, como de associações e coletividades locais, como são exemplo as exposições realizadas pela Associação para a Defesa do Património Cultural e Etnográfico de Glória do Ribatejo, organizadas de acordo com as orientações técnicas de Roberto Caneira (Técnico Superior de História) e as exposições e estudos etnográficos intensivos realizados pelo Rancho Folclórico da Casa do Povo da Glória do Ribatejo, com orientações e coordenação técnica de Rita Pote (Professora do Ensino Secundário). O resultado obtido com esses estudos permitiu-nos desenvolver os pontos que se seguem: A Praça da Jorna e “apanha de trabalho” e a funcionalidade dos bordados a ponto de cruz A Praça da Jorna era o local onde os trabalhadores rurais vendiam a sua força braçal aos grandes proprietários agrícolas da região: Casa Cadaval; Prudêncio da Silva, Lico, Oliveira e Sousa, entre muitos outros. Estes lavradores detinham grandes extensões de terrenos nas lezírias de Vila Franca de Xira, Benfica do Ribatejo ou Almeirim, levando, desta forma, os ranchos glorianos a trabalhar nestes locais. Este tipo de trabalho obrigava a uma ida de «farnel aviado», expressão que provém do grande saco (farnel) que levava os mantimentos essenciais (o avio) para as suas longas estadas nos campos, peça que marcavam também com as iniciais do nome da sua proprietária. As praças da jorna consistiam numa espécie de mercado de mão-de-obra, onde se encontravam os trabalhadores rurais e os capatazes dos grandes proprietários agrícolas. Os primeiros vendiam a sua força de trabalho aos capatazes dos grandes agricultores, que lhes ofereciam a jorna como forma de pagamento, num sistema organizativo quase senhorial. Em qualquer caso, estes “ranchos” de homens de alforges aos ombros e mulheres com farnéis à cabeça ou à ilharga, em tempos idos, partiam a pé para os campos, percorrendo cerca de 20 a 30km. A celebração deste contrato era feita de forma verbal e tinha algumas caraterísticas peculiares. No caso dos homens, selava-se com uma “molhadura”, ou seja, meio litro de vinho, para beber no momento. Quanto às mulheres, cada contacto da capataza, que em princípio julgava que resultava num compromisso, dava direito a uma meada de linha de cor, escolhida pela trabalhadora. Acontecia, por vezes, um, dois ou três contactos não corresponderem a um contrato final, pelo que as raparigas exibiam ao peito e nos aventais, várias meadas de linha, de várias cores, que serviam, ao mesmo tempo, de ornamento do traje. Esta realidade foi testemunhada por Rita Pote, quando acompanhava a mãe à praça e por outros investigadores que dedicaram a sua atenção a estas práticas: “Uma vez contratados, o capataz chega a uma taberna e pede uma molhadura, isto é meio litro de vinho para cada homem. Se algum não pode ou não quer beber vinho, bebe uma cerveja, pagando o que for a mais. As mulheres recebem uma meada de linhas. Aceite a molhadura, o homem ou a mulher já não pode abandonar o patrão que a contratou. Se o fizer, está sujeito a pagar uma multa ou a processo no tribunal.» (Idalina Serrão Garcia, 2019, p. 107). A aldeia nesta altura ficava com uma aparência estranha, de quase abandono, já que apenas ficavam os idosos, já gastos para o trabalho, e crianças de tenra idade que ainda não tinham corpo para trabalhar. Nesses ranchos onde ficavam cerca de 15 dias, três semanas ou mais, a trabalhar do nascer ao pôr-do-sol, as mulheres da Glória exigiam quartel separado dos outros ranchos de trabalhadores. Uma outra funcionalidade relevante dos bordados a ponto de cruz verificava-se quando a estada no trabalho era prolongada e se tornava necessário vir à Glória, levar o dinheiro da jorna à mãe e esta, por sua vez, enviava mantimentos e outros bens de primeira necessidade. A acomodação destes bens era feita em peças específicas para o efeito, como o caso das bolsas, marcadas com as iniciais do seu dono, que levavam o dinheiro, e dos “talegos”, marcados e ornamentados com grande profusão de cores e motivos decorativos e as iniciais dos seus proprietários. Estes talegos serviam para levar os bens solicitados pelos trabalhadores que estavam no campo. A mesma investigadora descreve assim esta prática: «(…) aos sábados, vêm à aldeia a “capataza” e a “mantieira”. Esta traz os “talegues” com os nomes, marcados a ponto de cruz, das donas e respectivos namorados. Entrega-os às mães com a féria e o que as filhas mandaram pedir – linhas, metro e quarta de paninho, etc. Regressam ao campo com os taleguinhos e os avivamentos requisitados.» (Idalina Serrão Garcia, 2019, p. 108). Pouco depois do 25 de Abril, com as alterações que se fizeram sentir, as praças da jorna desaparecem e os grandes ranchos da Glória que ficavam semanas fora, também acabaram. Agora, deslocam-se para o trabalho em camionetas ou tratores e regressam diariamente a casa, deixando a prática de marcar em conjunto, como acontecia no passado. De certa forma, foi-se cortando um elo na transmissão deste saber-fazer ao trabalho agrícola. Finalmente, com a mecanização agrícola, também se assistiu ao fim da animação alegre ou melancólica das vozes das mulheres, que foram substituídas pelo som mecânico das máquinas que entoa pelos campos. A Infância e os bordados a ponto de cruz A gravidez adivinhava-se quando o “incómodo” faltava, mas a vida continuava igual para a mulher, envolvida no trabalho e na lida da casa, não exigindo cuidados especiais durante as nove luas seguintes. Durante a gravidez, a mulher, com ajuda de familiares, preparava o enxoval para receber a criança: toucas, babetes e fatos, devidamente ornamentados com bordados a ponto de cruz. A hora estava próxima e na ausência de médicos, chamava-se uma parteira. A Ti Joaquina “Cuca”, a parteira que ajudou a nascer um número infindável de crianças em Glória do Ribatejo “(…) casou aos 20 anos e depois de ter o segundo filho, foi acudir a uma vizinha e o parto correu bem logo se espalhou a novidade e então, a partir daí, começou a ser chamada e, com tanta sorte e dom com que nasceu, nunca mais deixou de acudir a quem precisava, tanto de dia como de noite, chegando a ficar em casa das mulheres, quando os partos eram demorados” (Margarida Ribeiro,1990, pg.131) Este testemunho chama para a boca de cena a Ti Joaquina “Cuca”, que, para além de ajudar no parto, também era a responsável pelo bebé, nas primeiras semanas, ajudando a tratar do umbigo e outros cuidados. À falta de médicos, as mulheres usavam a sua sapiência popular com base em crenças, superstições e mezinhas com o intuito de ajudar os recém-nascidos. Alguns dos seguintes exemplos podem parecer estranhos, mas por incríveis que pareçam, aparentemente, havia a certeza de que resultavam sempre. Eis o texto de Margarida Ribeiro que as descreve : - Contra as manchas e sinais da pele – Deve a futura mãe precaver-se de trazer flores, cordões ou pregadeiras ao peito, chaves à cintura ou nas algibeiras e de comer romã; - Contra doenças e pragas – deixar consumir o umbigo do recém-nascido na cinza do lume de chão dentro de casa; - Contra a lua - não sair com uma criança à noite e preservar as suas roupas de “serem vistas pela lua”; - Contra a perda ou atraso da fala – evitar que a criança se veja num espelho; - Contra a seca do leite materno – não beber pelo mesmo copo em que já bebeu outra mulher ama; - Tirar a “lua” a uma criança - Deitam-se sobre umas brasas retiradas da lareira três pequenos ramos, um de tasneirinha, outro de alecrim e outro de aroeira. A pessoa mais idosa da casa, geralmente a avó passa a criança pelo fumo em cruz, primeiro de bruços e depois de costas, dizendo: “Mãe forta (= má), mãe forta Nã dêxes morrer o menino C’um ataque de lua forta” Se a criança não melhora, à noite, logo que a lua atinge a máxima de altura no horizonte, a mãe leva a criança à porta do quintal, quase desnudada, estende-a nos braços, deixa-a banhar pelo luar e faz o seguinte sacrifício: “Ó lua, ó luar Pega lá o mê menino Acabo d’o criar Tu por mãe e eu por ama Cria-o tu Qu’eu lhe darei mama” - Mezinhas para secar os peitos: vão à rua e trazem na mão esquerda uma mão-cheia de areia, “ordenham” os peitos para dentro dessa areia, enterram-na atrás da porta com o pé esquerdo, e estão nove dias sem varrer aquele sítio. - Limpam os peitos com folha de couve e azeite, depois de passada pelo lume; - Mezinhas para a criança enrijar e fazer crescer o cabelo: - Fervem mão de vaca dentro de uma panela nova, sobre um cobertor colocam um alguidar, passam a criança por essa água e abafam-na com um lençol; durante nove dias a fio, passam a criança sempre pela mesma água; depois desses nove dias, põem a água e a carne numa encruzilhada ou em água corrente, e não passam por esse sítio durante 15 dias.» (exemplos retirados de Ribeiro, Margarida “Crenças e Superstições”, 2001, Pág.271-310). A indumentária das crianças glorianas eram, de facto, feitas pelas mães ou familiares. Durante a gravidez, iam pacientemente bordando as diferentes peças e os diferentes fatos que constituíam os trajes das crianças. A “camisa de nascença” era uma camisa interior, usada nos primeiros dias do bebé e continha bordados motivos a ponto de cruz e as iniciais do nome da criança. O outro traje de infância era constituído pelo vestido, babete e touca, podendo afirmar-se que a maior riqueza decorativa dos bordados a ponto de cruz, estava espelhada neste fato, com natural destaque para as toucas de infância, em que a mulher colocava todo o seu primor na elaboração desta peça. As toucas de infância eram verdadeiras obras de arte, uma profusão de cores e motivos decorativos, que espelham a dedicação e o perfecionismo das mulheres glorianas. Ao longo dos tempos, estas toucas vão variando e as mais antigas eram constituídas por duas peças: “touca de baixo”, feita de pano branco e com o folho do mesmo tecido, e a “touca de cima”, feita de outro tecido que podia ser seda ou “gorgorina”, mas com o folho de pano branco, igual ao da “touca de baixo”. Posteriormente, estas duas peças tornaram-se numa só: a touca passou a ser forrada e com dois folhos “pregados” na mesma peça. Os folhos das toucas fazem lembrar as gargantilhas que os nobres usavam no séc. XVI. Destaca-se ainda o uso de uma touca específica que era utilizada no dia de natal, que em Glória do Ribatejo se celebrava no dia 26 de dezembro. Após a missa, a comunidade reunia-se em frente à igreja em fraterna comunhão. Esta cerimónia de celebração do natal do dia 26 de dezembro manteve-se até ao início da década de 1970. A razão pela qual era celebrado neste dia o natal residia no facto de o padre ter outras cerimónias a realizar em Muge e não ter disponibilidade e possibilidade de se deslocar à Glória, no dia 25 de dezembro, já que a aldeia se encontrava mais afastada do centro do concelho. Diversidade e Evolução do Traje Gloriano De todas as peças da indumentária, o casaco seria a mais complexa. Desde cedo, as raparigas eram iniciadas na árdua tarefa de confecionar um casaquinho bem feito que passava por várias etapas: fazer e desfazer até à aprovação final. O casaco, peça delicada, apresenta feitios diversos, consoante as épocas, e distingue-se pelos seus nomes próprios: “casaco de regadeira”, “casaco de meia regadeira”, “casaco aos bicos cortados”, casaco de espelho”, “casaco de orelhas” etc. As caraterísticas do casaco permitem contextualizar relativamente bem o traje na respetiva época. A partir do final da década de 1950 até à extinção do traje pela geração jovem (final da década de 1970), o casaco passa a ser muito ornamentado, com motivos a ponto de cruz, favos de mel e outras artes de pormenor. A saia de castorina (de embrulhar) era também peça indispensável, tanto no inverno, como no verão. Tinha em média 4,5 metros de roda, sendo substituída pelo xaile ou malhão em ocasiões festivas. Esta peça era também ornamentada na parte inferior, do lado direito, com motivos e letras a ponto de cruz, marcados em lã, de várias cores. Na cabeça, usavam-se lenços de pano, de fundo branco ou amarelo, com os mais diversos padrões e cores. Eram conhecidos, também, por nomes específicos: “lenço às cartas”, “lenço aos ramos”, “lenço aos corações”, “lenço aos laços”, “lenço às grades”, “lenço aos torricados”, “lenço às estrelas”, “lenço às cebolas”. Nos trajes de festa, usava-se lenço chinês e lenço de cachené, dos mais vistosos aos mais sóbrios. Também as cores variavam entre as várias tonalidades de amarelo, verde, cor-de-laranja, castanho e até azul. No traje de semana e de domingo, o lenço marcado e dobrado “à balhana” ou em quatro pontas era em tudo igual ao dos namorados e era usado ao lado (esquerdo ou direito). Toda a compostura era rematada com cinto apertado na cintura, diferente nas cores, espessura e aplicações, consoante as circunstâncias e as épocas. No caso das raparigas solteiras, ao domingo ou noutras ocasiões “alumiadas”, como o Carnaval e a Páscoa, o traje contemplava ainda cinta (faixa) encarnada, usada abaixo do ventre, com as pontas atrás, marcadas com lãs de várias cores vivas. Os motivos mais comuns eram as letras, cercaduras miudinhas, corações, estrelas, o besoiro, etc., cujos cadilhos eram rematados, nas extremidades, com lãs enroladas, das mesmas cores vivas. Nos finais do século XIX e início do século XX, os rapazes usavam também as mesmas cintas, mas pretas, com que apertavam a zona do ventre. Os motivos e as cores eram semelhantes aos das raparigas, mas um pouco mais discretos. Contudo, enquanto o traje feminino perdurou nas gerações jovens até ao final da década de 1970, nos homens, as gerações jovens abandonaram o traje nos finais da década de 1950. Mais tarde, quando já mães, tinham de fazer as toucas para os filhotes. Uns folhos bem embainhados e bem encasalados faziam subir a reputação de qualquer mãe de família. De tal forma assim era que, no Natal, para as mulheres casadas, o ponto alto do dia seria vir para a rua passear-se com os filhotes, de toucas engalanadas, mostrando e admirando umas e outras. Toda a roupa era muito poupada, razão por que passava por várias fases de uso até chegar a rodilha. Assim, uma peça nova era usada ao domingo. Já envelhecida, passava a ser usada à semana e, daí, era posta ao trabalho. Depois de esfarrapada, continuava a ter utilidade, como rodilha, nas lides domésticas. Os trajes de festa não entram nesta sequência. Eram guardados para outras ocasiões festivas e, às vezes, das saias das mulheres, faziam-se outras peças para as meninas. Do traje feminino, merece realce uma peça usada pelas meninas e jovens. Trata-se do avental marcado, que, entre as décadas de 1940 e 1960, apresenta marcados e outras artes de pormenor, merecedoras de atenção. São peças feitas a partir de tecidos singelos, como o linhol e a popelina, de cores branca, amarela, cor de rosa, cor de grão, azul claro, ricamente ornamentadas com motivos muito diversos, com predomínio das flores e letras, marcados com uma grande paleta de cores, o que os torna únicos no panorama nacional. O traje da Glória ainda hoje se pode observar nas mulheres mais idosas, muito embora as cores se situem apenas entre o sóbrio e o preto. Para as gerações mais jovens, o 25 de Abril é o marco temporal que define o início de uma nova era, a partir da qual, a matriz tradicional se vai esvanecendo, progressivamente, até desaparecer por completo. De facto, o traje foi evoluindo consoante as épocas, refletindo o aparecimento de materiais ao longo da história, da moda (por ex. a altura das saias), mas sobretudo, revelando uma criatividade extraordinária que se desenvolveu numa ambiência de quase competitividade entre as próprias mulheres, levando assim ao surgimento de peças muito complexas e criativas, do ponto de vista da confeção. Ler e interpretar os bordados nos Lenços de Namorados Já antes se apontou que a decoração destes lenços é baseada no modelo geométrico em que predomina a simetria e a forma. Na composição decorativa destes lenços, cada ângulo do lenço vai dar ao centro, a partir do qual se vai construindo toda a composição. No que respeita a motivos decorativos, encontramos símbolos do sagrado, de afetividade e também as iniciais do nome dos namorados. A parte decorativa mais interessante em termos etnográficos é sem dúvida as iniciais dos namorados e das colegas de trabalho (camaradas e seus respetivos namorados também). Foi isto que reconheceu um escritor como Alves Redol, quando escreveu: “lá estão marcados a ponto de cruz, as iniciais dos dois, as do pai dele, e as da mãe dela, as dos mais íntimos amigos e as respetivas noivas. Tudo aquilo de misturas de vinhetas e estrelas, signos saimões e flores, numa dispersão de letras, direitas umas, ao inverso outras, envolvendo pais e amigos numa mesma comunhão de carinho e afeto. A inclusão do nome dos amigos e conversados é uma sequencia dos seus hábitos, pois as raparigas que namoram rapazes amigos passam a ser intimas também. No baile, no trabalho, nas festas andam juntas. Trocam as suas alegrias e os seus pesares, formando tal qual eles um todo de fraterna convivência. (Redol, 2004, pág. 98) Para melhor ler e interpretar os lenços de namorados é importante entender o contexto social vivido em Glória do Ribatejo, que muitas vezes se reflete nas temáticas que são bordadas. Em 2020, no texto de apresentação de candidatura às “Sete Maravilhas da Cultura Popular” - Tradição Oral de Glória do Ribatejo – As Cantigas”, Rita Pote mostrou como existe uma estreita relação entre o “arremendar” e a literatura oral de temática amorosa, que se manifesta em cantigas, melodias, danças, versos, romances, contos, rezas, orações, anedotas, adivinhas, provérbios, adágios e gracejos. Um exemplo é a seguinte estrofe que, enquanto trabalhavam, as mulheres dedicavam umas às outras: Ainda hoje m´alembrei A folha da tangerina Adeus, ó Armando Zé Ó Jacinta Alexandrina. Nas horas de lazer, à “fumaça” ou à noite, também havia momentos privilegiados para o aparecimento de um largo espetro de cantigas relacionadas com a saudade, o amor, a ausência perlongada, ou a separação definitiva: Algum dia, era eu Rosa que andava na mão Agora sou uma vassoura Com que tu varres o chão. Olha lá, ó camarada, Em tudo somos iguais O teu amor te deixou, O meu para nunca mais. Uma amostra deste universo muito particular de oralidades pode ser visto e visitado na Associação Rancho Folclórico da Casa do Povo de Glória do Ribatejo (instituição de utilidade pública) que tem procurado desenvolver um levantamento sistemático desta situação. Curiosamente há muitos informantes que se têm prestado a testemunhar essa poesia cantigas, melodias, danças, versos, romances, contos, rezas, orações, anedotas, adivinhas, provérbios, adágios e gracejos. Ainda relativamente às relações que se estabelecem entre as peças marcadas produzidas pelas raparigas e a literatura oral, deve mencionar-se o caso dos lenços de namorados. Seria de esperar que, havendo uma vasta poesia de temática amorosa, a mesma se visse espelhada nos próprios lenços, como acontece no do Minho. No caso concreto da Glória, isso não se verifica, pois, as raparigas não sabiam ler nem escrever – conheciam apenas algumas letras do alfabeto – as necessárias ao seu pequeno universo de relações de amor, amizade e familiar. Assim sendo, essa poesia era dita ou cantada, quer, enquanto trabalhavam, quer à noite, quando se juntavam à volta da candeia para marcar. Trata-se de uma poesia traduzida através de uma linguagem simbólica e metafórica, tal como podemos observar nos motivos marcados nos lenços, os quais expressam narrativas idênticas: O sol prometeu à lua Uma fita de mil cores Quando o sol promete prendas Fará quem tem seus amores. Se eu tivesse da tinta roxa Ou azul aos quadradinhos Escrevia-te uma cartinha Só de abraços e beijinhos. Tenho um lenço de beijinhos Meu, amor, para te dar Tem os nós tão miudinhos Não os posso desatar. Toma lá, que te dou eu Não é nada de comer É um lenço de saudades Com penas de te não ver. Anda, amor, vem i mais eu À igrejinha de prata Dar o nó que todos dão Só a morte é que nos desata. Estas quadras fazem parte de um vasto conjunto que se encontra na exposição permanente de lenços de namorados, desde 2014, no já referido Centro de Documentação e Estudos Etnográficos. Os lenços de namorados incluíam-se nas prendas que os namorados trocavam entre si, como forma simbólica de selar o seu compromisso. Assim, no momento em que se consideravam um para o outro, a rapariga confecionava um conjunto de peças de uso “vulgar” com que brindava o namorado: o talego do farnel, a bolsa do relógio, a carteira, a charteira/pataqueira, os lenços de assoar e os lenços de usar no traje. O curioso é que estas peças de vulgar nada tinham. Qualquer uma delas era extraordinariamente embelezada com motivos a ponto de cruz, que vão indicados e explicados no Anexo II/1 nº 53. Em contrapartida, o rapaz oferecia também à rapariga pequenas prendas. Bastava uma “navalhinha bonita” para fazer a felicidade dela. Mas havia muitos rapazes que faziam questão que a sua namorada evidenciasse, de forma bastante expressiva, a sua ligação. Desse modo, ela recebia várias alianças de prata, cravadas de pedrinhas às cores que, no conjunto, produziam um certo efeito exibicionista. Alguns ofereciam também peças em ouro (um anel, uma pregadeira). Mais tarde, e mostrando também as suas habilidades de artesão, ele confecionava, pacientemente, algumas miniaturas (cestinhas, cadeiras, bolotas), feitas de pau de murtinheira, com a ajuda de uma simples navalha, que ela usava ao peito, fazendo conjunto com um raminho de manjerico e a pequena moldura com o retrato dele.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: O contexto de transmissão dos bordados de Glória do Ribatejo assume um caráter intergeracional, já que as mulheres ensinam as mais novas o que anteriormente aprenderam com as mais velhas, sendo mais comum que esta passagem se processe no interior da família, de mães para filhas. É um tipo de património cuja tradição vai percorrendo as gerações, legado pelas suas avós, mães, familiares e amigos (“camaradas”). Alves Redol intui bem a situação quando descreve, na obra dedicada a Glória do Ribatejo, alguns aspetos dos bordados a ponto de cruz, apontando a sua função social e a sua utilidade quotidiana, na década de 30 do século XX. O autor afirma que: “a arte não constitui um fim em si própria, e tanto nos objetos decorados, como nos motivos da decoração, se encontra sempre o objetivo de utilidade imediata do temperamento prático do camponês, que não pode exceder-se aos elementos que o rodeiam e dominam” (Redol, 2004, pág.117). São várias, pois, as circunstâncias do quotidiano onde estavam – e estão – presentes os bordados a ponto de cruz. Neste processo de transmissão, até ao final da década de 60 do século passado, as mulheres glorianas que sabiam “marcar”, ensinavam as mais novas, como os resultados dos inquéritos efetuados demonstram. A maior parte das mulheres, nascidas a partir da década de 1970, que sabiam bordar deixaram de o ensinar e transmitir, por várias vicissitudes: novas profissões, o aparecimento da televisão e outros interesses consequentes da própria evolução que transformou a sociedade portuguesa a partir destas décadas. A partir dos finais da década de 1950 surgem os chamados marcadores (mostruários) em papel que influenciam grandemente a temática e a diversidade dos motivos, o acesso a revistas com bordados a ponto de cruz, altera alguma da simbologia anteriormente usada, surgindo novos motivos, assim como a utilização dos bordados em novas peças. Contudo, continua a haver exemplo do legado de transmissão pelas avós, quando há falta de disponibilidade, por parte da mãe. Nos anos 90 do século XX, destacam-se alguns cursos financiados pela União Europeia com objetivo da Salvaguarda de Saberes-Fazer Tradicionais e a Câmara Municipal de Salvaterra de Magos organizou algumas iniciativas junto das mulheres de Glória do Ribatejo, promovendo workshops e cursos de bordados a ponto de cruz, de que Rita Pote foi monitora/coordenadora. Mais recentemente, em 2014 e 2015, foram ministrados dois cursos dirigidos a mulheres entre os 40 e os 63 anos, numa parceria entre a associação Rancho Folclórico da Casa do Povo de Glória do Ribatejo e o IEFP, cuja coordenação esteve a cargo de Patrícia Pote e Rita Pote. Esta iniciativa permitiu o levantamento de centenas de peças que foram fotografadas e coligidas em pasta própria. Ao longo do curso, as formandas realizaram atividades de pesquisa e reproduziram largas dezenas de peças em que aplicaram a técnica do ponto de cruz e outras relacionadas com artes do pormenor. De forma a divulgar estes trabalhos à comunidade, foram levadas a cabo algumas exposições que acabaram por despoletar grande interesse nas mulheres, que têm vindo desde essa altura a confecionar essas tipologias de peças e a procurar nas respetivas famílias exemplares de tempos remotos que possam servir de mostruários. A associação não cessou esta atividade com o terminus dos dois cursos. Pelo contrário, tem continuado a investigação e a replicação de peças velhas que têm vindo a ser agrupadas em coleções. A continuidade deste processo tem vindo a merecer a colaboração financeira da Câmara Municipal e da Junta de freguesia, que veem nesta atitude uma forma de salvaguarda deste património. De acordo com os resultados obtidos nos inquéritos realizados, apenas 75,7% dos inquiridos que sabem marcar transmitiram este saber e dos 24.3% que não transmitiram, isso deve-se ao facto de muitas vezes terem apenas filhos do sexo masculino ou outras atividades/ profissões que não lhes permitiam praticar nem transmitir este legado.
    Data: 2021/09/22
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Predominantemente mulheres glorianas
  • Origem / Historial:
    Os bordados a ponto de cruz inserem-se na arte popular, que é a arte do povo e esta arte nasce do desejo de introduzir cor, alegria, mas sobretudo mensagens em objetos e peças de uso quotidiano. É uma arte que não segue correntes artísticas: «o poder criador da alma popular é como a água límpida que jorra de uma fraga. Não se sabe porque razão ali surge para reflectir a luz e logo se expande em força e beleza. É assim que irresistivelmente, se manifesta o engenho das populações rurais da doce terra portuguesa» (Moura, s.d., 51) Os bordados a ponto de cruz recuam ao período medieval, cuja origem pode ser encontrada nos famosos “opus pulvinarium” medievais, que eram tapeçarias feitas sobre tela grossa, com um ponto em forma de X” (Idem, 61). Os bordados a ponto de cruz de Glória do Ribatejo, fazem parte do binómio identidade/memória da comunidade desta freguesia e a forma como eram e são usados diferencia-os das restantes comunidades locais e regionais. Os motivos aplicados, a escolha das cores e a forma como eram e são empregues acabaram por constituir uma matriz que muito contribuiu para a afirmação/diferenciação desta arte em Glória do Ribatejo. A Cruz é um dos símbolos mais antigos e ricos da humanidade, bordar a cruz é um gesto sem tempo, como refere Roberto Caneira: “Cruzar fios, criando motivos muitas vezes também eles simbólicos (flores, chaves, corações, etc.) é de certa forma, cruzar caminhos do subconsciente e porque não do inconsciente, projetando sobre o pano em branco as suas próprias encruzilhadas interiores” (Caneira, 1998, 13). Os exemplares de peças bordadas mais antigas que conseguimos identificar, encontram-se no Museu Etnográfico da Glória e no Centro de Documentação e Estudos Etnográficos da mesma freguesia, cuja antiguidade remonta ao início do século XX (muito embora reproduzam o espírito e a manufatura do século XIX) e em recolhas orais efetuadas a mulheres nascidas nas décadas de 20/30 do século passado, que afirmam terem aprendido a “marcar” com as suas mães e avós, o que nos permite datar a existência destes bordados até pelo menos à primeira metade do século XIX, podendo estes registos ser ainda mais antigos. De um passado ligeiramente mais recente, relacionado com o mundo rural, dos ranchos, dos quartéis e das ausências prolongadas, ainda existem memórias vivas na comunidade. Eis uma passagem de um desses relatos da autoria de D. Cecília: «Nunca fui à escola. Tinha dez anos quando comecei a trabalhar no campo. Íamos de farnel aviado, estávamos às três semanas nos campos de Vila Franca. À noite, dentro do quartel, acendíamos a candeia, que era uma torcida de trapo onde púnhamos azeite, que em vez de ser para o comer, era para pôr na candeia. Depois bordávamos, que era marcar cá à nossa moda. A gente era marcar as nossas coisinhas, para quando um dia tivéssemos um futuro.» («Marcas da Cultura Gloriana», 21). Numa recolha efetuada no Museu Etnográfico da Glória do Ribatejo a 21 de novembro de 2019, conforme consta no nº 1 Anexo II/2 (Documentação fílmica e videográfica), outras vozes de várias mulheres destacam a originalidade e o sentimento de pertença dos bordados a ponto de cruz: - «Nós não sabíamos ler, mas sabíamos “pantar” [colocar]as letras direitas.» - «As pessoas de outros sítios arregalavam os olhos aos nossos bordados.» - «[Os motivos decorativos] já tirávamos pelas nossas avós, as nossas mães pelas mães delas, isto são coisas que ficaram de geração.» - «A gente tapava tudo era com estas coisinhas [os panos para os móveis no interior das habitações] -« [outros motivos decorativos] Isto já é mais moderno, é tirado de livros.» - «A mocidade era tão linda, a gente “ajuntava-se”, raparigas com cintos encarnados e aventais cor de lírio [rôxo], íamos todas em fila, era muito bonito.» Em resumo, a conjuntura que se gera a partir da década de 1970 do século passado, com o fim do trabalho do nascer ao pôr do sol, a revolução de abril e consequente democratização do país, aliado à melhoria dos transportes e mecanização dos trabalhos agrícolas, ditou o fim dos grandes “ranchos” de trabalho e por consequência também a forma de fazer os bordados sofre alterações. Se, no passado, o modelo que servia de base para os bordados eram as peças antigas e por isso há uma multiplicação de motivos bordados idênticos, havendo apenas alterações nas cores, a partir do final da década de 1950, altura em que surgem os primeiros marcadores (mostruários) a papel e revistas temáticas de bordados, nas décadas de 1970 e 1980, as mulheres glorianas começam a copiar estes novos motivos decorativos, recriando-os, muitas vezes. Contudo, nunca deixam de bordar os motivos mais antigos que foram feitos pelas suas avós e mães. A mulher gloriana que vai trabalhar fora da sua terra e regressa diariamente a casa, só se dedica aos bordados a ponto de cruz quando o trabalho rural escasseia. Apesar disso, a sensibilidade e talento que lhes imprime são os mesmos de outrora. Nos dias de hoje, os bordados a ponto cruz assumem novas funcionalidades ao incorporarem novas peças e novas temáticas, próprias do mundo contemporâneo. As melhores condições de vida, a televisão, nomeadamente as novelas portuguesas das décadas de 1980/1990, foram determinantes para a criação de novas peças. As mulheres tentaram copiar para as suas habitações o que viam nos cenários destes episódios, sendo os melhores exemplos: toalhas de mesa bordadas, quadros com motivos distintos do que era habitual (paisagens, animais, etc.), colchas, entre outros. Este património mantém-se “vivo”, graças ao esforço dessas mulheres que não desistem e à dedicação e ação de vários agentes: associações e coletividades que continuam empenhadas na sua salvaguarda e valorização, junto da comunidade local, com particular relevo para a consciencialização das camadas mais jovens. A constituição de núcleos museológicos, conceção de exposições e edições são recursos pedagógicos que comprovam que este património está “vivo” e que a sua salvaguarda está assegurada. Para além do que se refere tradicionalmente, importa também lembrar a importância que as políticas públicas no concelho trouxeram de novidade. De facto, o município não se limitou, como é norma, a apoiar iniciativas dispersas que ocorrem no concelho. Além disso, definiu a cultura e o património cultural como áreas às quais deveria ser dada uma importância muito especial. Por isso, é relevante sublinhar que os compromissos que a Câmara Municipal se propõe respeitar no futuro são a consequência lógica de ter sido ela própria a incentivar as lideranças locais a abraçar um projeto de defesa do património, mas, mais importante, através destas ações, a reforçar a coesão social e os laços de cidadania. Esta política tem permitido dar oportunidade às várias freguesias do concelho para que sejam capazes de criar um espaço de realização cultural cada vez mais dinâmicos.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direito ConsuetudinárioSaber- Fazer das mulheres desta comunidade na utilização do Ponto de Cruz com características a funcionalidades especificas Comunidade em especial pertença das mulheres
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Filipe Themudo Barata
    Função: Professor Catedrático da Universidade de Évora (História Medieval e do Mediterrâneo). Áreas de lecionação: História, Museologia e Património.
    Data: 2020/02/13
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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