Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_UNESCO_2016_002
  • Domínio: Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais
  • Categoria: Coleta e caça
  • Denominação: Falcoaria
  • Outras denominações: Cetraria
  • Contexto tipológico: A falcoaria é uma modalidade de caça, com aves de presa treinadas (falcões, açores, gaviões, etc.), praticada em Portugal desde o séc. XII. Praticada por homens e mulheres um pouco por todo o país, a quem se dá o nome de falcoeiros e que utilizam técnicas, nomenclatura e materiais que distinguem esta prática ancestral. O respeito pela ave de presa, pela presa e pela Natureza são fundamentos de cada falcoeiro. A beleza do lance de caça é o valor máximo da falcoaria.
  • Contexto social:
    Grupo(s): Associação Portuguesa de Falcoaria
    Indivíduo(s): Praticantes individuais, a nível nacional, que sejam portadores da carta de caçador, consoante o disposto no Decreto-Lei n.º 202/2004.
  • Contexto territorial:
    Local: Portugal
    Concelho: Salvaterra de Magos
    Distrito: Santarém
    País: Portugal
    NUTS: Portugal \ Continente \ Alentejo \ Lezíria do Tejo
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: A prática da falcoaria é realizada durante todo o ano, estruturando-se em diferentes momentos.
    Data(s): Não aplicável
  • Caracterização síntese:
    A falcoaria consiste na utilização de aves de presa treinadas para a caça de animais selvagens no seu ambiente natural. Para isso o falcoeiro tem de munir-se de conhecimentos específicos sobre as aves de presa, o seu treino, sobre as espécies a capturar e seus habitats. O falcoeiro deve usar a sua sensibilidade e os conhecimentos desenvolvidos pela falcoaria, ao longo de séculos, para treinar a ave de presa e a manter em excelentes condições no que respeita à saúde e à condição física. Depois do processo de treino, falcoeiro e ave de presa, forjam uma parceria única. No ambiente natural das suas presas esta parceria procura vencer as estratégias naturais de fuga da presa para conseguir a sua captura. O valor mais elevado nesta demanda é a beleza do lance de caça e não a captura da presa.
  • Caracterização desenvolvida:
    A falcoaria (também designada como cetraria) é o método de caça de onde o caçador utiliza aves de presa para a captura de espécies selvagens no seu habitat natural. Esta forma de caça pode ser legalmente praticada em Portugal por pessoas (homens ou mulheres) legalmente habilitados para o efeito. Nos dias de hoje, a falcoaria é uma modalidade de caça que muitos denominam de "ecológica", dado que o objetivo é o de desenvolver os mecanismos da relação natural predador/presa e não abater um grande número de presas. Além de se integrarem nessa longa tradição de caça, os falcoeiros são os primeiros interessados na conservação das espécies e dos habitats. Como no passado, o que importa mais é a qualidade do lance do ato cinegético e do treino e menos a quantidade de presas capturadas. Tipos de lance O processo de caça com ave de presa desenrola-se de formas específicas que pretendem mimetizar a forma como determinadas espécies de aves de presa caçam na natureza. Assim, na prática podemos distinguir o alto-voo e o baixo-voo. O alto-voo é o mais espetacular e também o mais exigente por reunir um maior número de condicionalismos, a par de uma menor rentabilidade na captura de peças. Neste tipo de lance são usados falcões que perseguem as suas presas no ar durante grandes distâncias e muitas vezes a grande altura. Este foi, pela sua beleza, o lance clássico da falcoaria europeia. O falcão necessita de estar nas melhores condições físicas para conseguir superar a sua presa, uma vez que muitas das capturas ocorrem em pleno voo. A altanaria é considerada uma vertente do alto-voo. Neste tipo de lance, o falcão é solto antes da peça de caça levantar voo, de modo a que ascenda sobre o terreno de caça - "remontando" - até se colocar bem alto (na ordem da centena de metros), onde aguardará descrevendo pequenos círculos ou "tornos". Ao levantar-se a caça, o falcão cai do céu num perfurante e rapidíssimo voo picado, podendo atingir velocidades próximas dos 300 km/hora. A maioria das capturas ocorre em voo, mas ocasionalmente algumas presas são mortas por impacto. Esta modalidade requer grandes espaços abertos, pouco arborizados. Caçam-se aves como corvídeos, patos, perdizes e faisões. Por outro lado, em baixo-voo, o lance é mais simples mas muito dinâmico. Neste tipo de lance, a ave de presa sai do punho do cetreiro (ou de um poleiro proeminente) no encalço da peça de caça já em voo ou corrida. Depois desenvolvem-se todos os movimentos de fuga e perseguição. Quando a ave alcança a presa geralmente produz-se “o agarre”, tendo nesse momento a ave de demonstrar grande bravura e mestria para abater a sua presa. As aves de presa geralmente usadas neste tipo de lance são açores, búteos ou águias adequando-se à maioria dos terrenos. Podem caçar-se aves e mamíferos. Em Portugal, segundo estudos preliminares realizados pela Associação Portuguesa de Falcoaria, o baixo-voo é a modalidade mais praticada existindo, um reduzido número de praticantes de alto-voo. Existem igualmente falcoeiros que, por razões várias geralmente relacionadas com dificuldades de acesso ao campo e à caça), não se encontram no ativo (Associação Portuguesa de Falcoaria, 2015) Exigências legais A prática da falcoaria compreende a caça de espécies selvagens no seu habitat natural com auxílio de uma ave de presa e pode realizar-se, tendo em conta o ordenamento cinegético nacional, de norte a sul do país e ilhas. Tratando-se de um método de caça legalmente reconhecido a falcoaria (também designada como cetraria) obedece ao legislado pela Lei da Caça. Desta forma os falcoeiros devem estar habilitados à prática da caça em igualdade com o que sucede com outros caçadores. Até 2015 a prática exigia que o caçador estivesse formalmente habilitado com carta de caçador com a específicação de “Caçador-Cetreiro”. A sua atribuição exigia a realização de prova teórico-prática específica. Em 2015 esta especificação foi extinta (Decreto-Lei n.º167/2015 de 18 de agosto). Como forma de colmatar esta alteração, o Instituto de Conservação de Naturezas e Florestas introduziu no Manual para Exame da Carta de Caçador um capítulo referente à falcoaria produzido pela Associação Portuguesa de Falcoaria. Além disso a Associação Portuguesa de Falcoaria intensificou a realização de cursos de iniciação (formação opcional) de forma a dar resposta cabal aos interessados que não conseguem encontrar ajuda de um falcoeiro (método preferencial de aprendizagem). A Convenção de Berna, sobre a Vida Selvagem e os Habitats Naturais na Europa, foi assinada a 19 de setembro de 1979, durante a 3ª Conferência Europeia de Ministros do Ambiente, por um grupo de 9 países e pela Comunidade Económica Europeia (na qual Portugal se incluía). Atualmente, perto de 40 países são Partes Contratantes da Convenção de Berna. Em Portugal, o texto da Convenção foi publicado pelo Decreto-Lei nº 95/81, de 23 de julho. A sua regulamentação que decorre da aplicação do Decreto-Lei nº 316/89, 22 de setembro, determina a proibição de capturar falcões na natureza, como se fazia há séculos atrás. Por esse motivo, os falcões que se utilizam em falcoaria nasceram obrigatoriamente em cativeiro através de casais destas espécies que são mantidos por falcoeiros com esse intuito específico. Apesar da sua origem, a detenção de animais destas espécies, em cativeiro é tutelada por convénios internacionais. Em Portugal, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas é o organismo que superintende e a aquisição destas aves obedece ao exposto no Decreto-Lei n.º 121/2017 de 20 de setembro. Todas as aves de presa em Portugal têm, obrigatoriamente, documentação e marca inviolável (geralmente anilha fechada com número de registo que é colocada na ave com poucos dias de vida) que comprove a sua proveniência legal. Sempre que necessário o falcoeiro deve fazer prova desta origem. Aves de presa utilizadas As aves de presa utilizadas em falcoaria compreendem uma grande quantidade de espécies. Estas espécies são, não apenas, aves autóctones ao continente europeu, mas, também, espécies exóticas que, pelas suas capacidades de caça foram e são prontamente identificadas pelos falcoeiros e treinadas para a caça. Esta prática, de utilização de espécies diversas, e muitas vezes exóticas, é longamente descrita em tratados medievais (Ferreira, 1616). Assim, em linguagem cetreira, as aves de presa são caracterizadas, principalmente pela sua capacidade e hábitos de caça. Sistematizando, os falcoeiros separaram as aves de presa em "Nobres" e "Ignóbeis". Estes termos referem-se a determinados atributos psicológicos e físicos que determinam, ou não, capacidades especiais das aves, entre estas a rapidez de voo e as formas de atacar e capturar as suas presas. A forma de alimentação é também uma caraterística de diferenciação. As aves que no seu meio natural não se alimentam de cadáveres, possuem um psiquismo próprio e são rápidas e fulminantes nos seus voos de caça são designadas com “aves Nobres". Estas incluem os diversos e verdadeiros Falcões (género Falco) os Açores e Gaviões (género Accipiter). As "aves ignóbeis" são todas as outras aves de presa, incluindo as Águias (género Aquila). Estas aves têm, por regra um voo mais lento, são mais oportunistas, podem alimentar-se frequentemente de cadáveres são, de um modo geral, de evolução lenta nos seus voos e apresentam um psiquismo diferente, mais oportunista que as anteriores (sendo, no entanto, ainda assim treinadas para a caça). De "alto-voo" e de "baixo-voo". As aves podem ainda ser classificadas, em falcoaria, como de "alto-voo" (as que se utilizam neste tipo de lance), ou seja, os Falcões, e as de "baixo-voo" (as usadas neste tipo de lance), tais como os Açores e Gaviões entre outras espécies. Idades, plumagens e sexos As aves de cetraria mudam as suas penas uma vez por ano. Deste modo, a idade da ave é determinada pelo número de mudas efetuadas sendo frequentemente usada a expressão "tal ave tem tantas mudas" para fazer referência à idade da ave. O termo "entre mudado" é atribuído aos indivíduos que somente realizaram a primeira muda, conservando ainda, por conseguinte, algumas das penas de juvenil. Em cetraria, a ave "nobre" de sexo masculino é designada por "terçó" e a de sexo feminino por "prima". Estes termos estão relacionados com o facto de os "terçós" serem, cerca de um terço mais pequenos que os "primas". Uns e outros têm as suas vantagens em cetraria: os "terçós" são mais ágeis, enquanto os "primas" são mais poderosos. (Em cetraria as aves "nobres" são referidas no masculino). Segundo dados obtidos pela Associação Portuguesa de Falcoaria em 2015, através do inquérito: “Associados APF - Quem somos, onde estamos e o que fazemos” a maioria das aves de presa utilizadas pelos falcoeiros nacionais eram aves de baixo-voo, essencialmente Búteos de Harris (Parabuteo unicinctus) – 40%, seguindo-se os Açores (Accipiter gentilis); Falcão Peregrino (Falco peregrinus) e Falcões híbridos (Falco spp) com 8,5% em ambos os casos (Associação Portuguesa de Falcoaria, 2015). A amostra para este estudo foi obtida por conveniência (correspondendo aos associados que responderam ao questionário). Foram obtidas resposta de 57% dos associados da APF com, quotas em dia. Nesse período temporal a população correspondia a 58 associados. Alimentação em cativeiro As aves de presa são animais carnívoros e, em cativeiro o falcoeiro tenta que a sua alimentação seja o mais semelhante possível à do seu estado em selvagem, alimentando-se com diferentes tipos de carne de outros animais que são conhecidas em falcoaria por “viandas” (Crespo, 1999: 76-77). Como a maioria dos falcões são ornitófagos, carne de aves como galinha, frango, pombos e codorniz são normalmente utilizadas como base da sua alimentação em cativeiro, devendo esta apresentar boas condições de higiene e, se possível, de proveniência conhecida, evitando o contágio de doenças. As refeições são sempre após o treino e normalmente uma vez por dia. A água deve estar disponível para as aves, durante a maior parte do dia, para que possam beber e tomar banho. Geralmente só voltarão a comer no dia seguinte após a “plumada” (termo de falcoaria), altura em que regurgitam os ossos e as penas que ingeriram na refeição anterior. As aves são pesadas diariamente. O peso é registado, servindo de referência para avaliação de estado físico da ave e o seu apetite. Permite, igualmente, revelar problemas na condição física da ave e/ou detetar alguma doença. Equipamentos A prática da falcoaria exige a utilização de uma série de equipamentos específicos que são essenciais ao maneio, treino e manutenção das aves de presa (Vide 19.1 Património Móvel associado). Estes foram desenvolvidos ao longo de séculos e preservam, ainda hoje, características fundamentais de adaptação a cada tipo de ave de presa e função na prática. O equipamento é, geralmente, confecionado em cabedal com padrões que se adaptam a cada espécie e sexo de ave. A confeção do material reporta a padrões desenvolvidos em tempos imemoriais e que vão sendo refinados ao longo do tempo pelos praticantes e artesãos. Grande parte destes padrões são partilhados na literatura especializada (essencialmente internacional) relativa a esta arte (Fox, 1995). Como equipamento mais icónico, podemos dizer que, para um manuseamento adequado, uma ave de falcoaria tem de ser equipada com “piós” (pequenas tiras de cabedal) em cada um dos tarsos/patas. Como os cães com coleiras ou rédeas de cavalos, as aves podem ser manuseadas com as piós durante o treino, no campo, e podem ser presas sempre que necessário para sua segurança. Existem diferentes tipos de piós, dependendo das espécies e preferência do falcoeiro. As piós são confecionadas de forma individual e aplicadas usando sistemas que não estrangulam ou sequer apertar fortemente o tarso/pata da ave. Este equipamento é avaliado com regularidade para prevenir desgaste e substituído sempre que necessário. O maneio e transporte da ave obriga ao uso de uma luva de cabedal que, poderá ser de vários formatos e ter espessuras e comprimentos variáveis, de forma a adaptar-se a cada espécie de ave de presa. As aves de presa são orientadas, quase em exclusivo, pela visão. Para evitar o stress excessivo, para facilitar o transporte ou para impedir que vejam uma presa que não devem capturar, os falcoeiros usam um artefacto de couro chamado “caparão” que cobre a cabeça da ave de forma a limitar o estímulo visual. O caparão é confecionado individualmente e nunca toca os olhos da ave. As aves ficam calmas e relaxadas sempre que o mesmo é colocado. O alojamento da ave é, também, de extrema importância. As aves em falcoaria devem estar sempre resguardadas das inclemências do tempo, em especial chuva, sol ou vento intenso. No entanto devem ter acesso a desfrutar do exterior com regularidade. Os alojamentos devem ser limpos com frequência e a ave deve ter acesso regular e diário a água. As aves devem ser alojadas tendo sempre em conta a sua segurança, em especial, no que toca à existência de outros animais que possam atacar a ave de presa (cães, gatos, etc.). No início do treino é geralmente essencial que a ave esteja presa a um poleiro. Existem diferentes tipos de poleiros especialmente concebidos consoante a espécie de ave de presa e o seu tamanho. O falcoeiro escolhe o poleiro dependendo da espécie da ave, o estado do treino e do local onde a mesma ficará instalada. Os Falcões são espécies que geralmente pousam em saliências rochosas e por essa razão os poleiros “em bloco” são mais adequados. Já os Açores e outros accipitriformes poisam, geralmente, em árvores e por essa razão os poleiros “em arco” são preferíveis por simularem este tipo de superfície. O equipamento utilizado sofre, por evolução da prática, dos conhecimentos científicos e/ou veterinários, uma evolução constante. Existe uma grande troca de conhecimentos a nível internacional, no seio da comunidade de falcoeiros, que ajuda a que estas evoluções sejam usadas em prol do bem-estar das aves. As aves de Cetraria - não devem ser mantidas em gaiolas ou jaulas, devido ao risco de partirem rémiges e retrizes e ferirem as ceras dos bicos contra as grades ou redes. Mantêm-se nas "mudas" e no "jardim". As “mudas” (ver ANEXO II/1 nº 50) são instalações “fechadas” onde as aves são mantidas soltas. O nome advém do facto de serem aí mantidas durante toda a época da muda das penas. Devem ter tamanho adequado à espécie a albergar devendo este ser determinado pela avaliação do falcoeiro. Em todas as formas de alojamento exige-se uma avaliação cuidada e constante da ave e da forma como a mesma se comporta. As mudas também se designam por "falcoeiras" e "açoreiras" ou simplesmente por "falcoaria". O “jardim” corresponde a uma zona de terreno, geralmente relvado, onde as aves de Cetraria, durante o dia, permanecem, repousam e tomam banho. Equipamento por ordem alfabética: Alcândora: poleiro semelhante a uma vara onde se mantêm pousadas as aves de falcoaria. A alcândora tem, inferior ao local de poiso das aves, um saiote de lona, pano ou couro, para evitar que as aves fiquem penduradas quando tentam voar (se debatem). (ver ANEXO II/1 nº 30) Aljaveira: pequena bolsa de coiro de pendurar no cinto para transporte de viandas e picadas a dar às aves de falcoaria. Serve também para transportar utensílios de Cetraria (ver ANEXO II/1 nº 31) Apito: de bom som, sempre com o mesmo sinal, para chamar de longe a ave de cetraria. Pode, em sua substituição, empregar-se um chamamento gutural que se denominará por Reclamo (ver ANEXO II/1 nº 32) Arco: poleiro curvo, em madeira ou metal, simula um ramo de árvore para manter as aves de baixo-voo. (ver ANEXO II/1 nº 33) Avessada: correia ou corda, de cerca de um metro e meio a dois metros de comprimento. Faz a ligação com as piós, por meio do tornel, de forma a sujeitar as aves de presa às alcândoras, arcos ou bancos. (ver ANEXO II/1 nº 34) Banco: poleiro em forma de tronco de cone invertido, geralmente de madeira, com haste inferior de ferro, que se crava no solo. Desenhado para o repouso das aves de presa, especialmente falcões. (ver ANEXO II/1 nº 35) Banho: recipiente com água fresca e límpida, colocado à disposição das aves de presa para beberem e tomarem banho. (ver ANEXO II/1 nº 35) Bornal: bolsa de couro, de pendurar a tiracolo. Maior que a aljaveira, além do transporte de utensílios, é também utilizada para transportar alimento para a ave e, inclusivamente, para o seu cetreiro. (ver ANEXO II/1 nº 36) Balança: indispensável para o registo diário do peso da ave. Com ela é aferida a condição corporal da ave e a quantidade e qualidade de alimento a administrar. (ver ANEXO II/1 nº 37) Caparão: capuz de couro, confecionado à medida, para cobrir a cabeça das aves de Cetraria, tapando-lhes a visibilidade. A sua utilização tem com fim manter as aves tranquilas. Necessário para os falcões de altanaria, pode ser dispensável para as aves de baixo-voo. Aperta-se e alarga-se (ou fecha-se e abre-se) ao nível do pescoço (à altura da nuca), por meio de correias denominadas serradoiros. (ver ANEXO II/1 nº 38) Cascavéis: guizos típicos, de bom som, que permitem localizá-las mais facilmente. São geralmente presos aos sancos (tarsos/pernas) das aves de cetraria ou fixos as penas da cauda. (ver ANEXO II/1 nº 39) Faca-de-caça: pequeno punhal-faca, utilizado para abreviar o fim das peças preadas e também para facilitar a "cortesia", pedaço da presa que se oferece como prémio à ave de presa. (ver ANEXO II/1 nº 40) Fiador: cordel longo, de quinze a vinte metros, de boa consistência, para assegurar os primeiros voos ao punho, sem perigo de fuga da ave. (ver ANEXO II/1 nº 41) Luva: luva de forma tradicional, com borla de couro no ângulo inferior do canhão. Se destro, o cetreiro leva-a na mão esquerda. (ver ANEXO II/1 nº 42) Malhos: pequenas correias que sujeitam os cascavéis aos sancos (tarsos/pernas) das aves de falcoaria. (ver ANEXO II/1 nº 43) Piós: duas correias de igual tamanho, colocadas em volta dos sancos (tarsos/pernas) das aves de falcoaria, para as sujeitar ao punho ou, em ligação com o tornel e avessada, às alcândoras e aos bancos. (ver ANEXO II/1 nº 44) Rol: negaça para chamar do alto os Falcões em voo. É normalmente confecionada em couro, forrando uma armação em forma de ferradura de cavalo e cosendo-se-lhe, tradicionalmente, em cada face exterior, um par de asas de ave. (ver ANEXO II/1 nº 45) Telemetria: a maior revolução dos métodos milenares da cetraria, em especial para os praticantes de alto voo. Consiste num conjunto constituído por um emissor e um recetor, sendo o primeiro de construção ligeira, que lhe permite ser transportado pela ave. O emissor emite um sinal que é captado pelo recetor, indicando ao falcoeiro a direção onde se encontra a sua ave. (ver ANEXO II/1 nº 46) Tornel: pequeno destorcedor (duplo-anel metálico com eixo), para ligar as piós à avessada, facilitando o destorcer. (ver ANEXO II/1 nº 47) Treina: peça de caça pré-capturada para largar durante o treino da ave caçadora. Haverá o maior cuidado em não consentir que a ave de Cetraria contraia o péssimo hábito de sopezar, isto é, de fugir com a peça que preou. Varais: varas formando um retângulo, com suspensórios e quatro pés, que permitem transportar ao campo de caça várias aves de Cetraria ao mesmo tempo, de modo a que umas descansem, enquanto evoluem outras. Estes equipamentos em cima mencionados fazem parte de um vernáculo específico utilizado em falcoaria, estas e outras palavras podem ser consultadas num glossário anexo (consultar ANEXO II/4 nº2) Falcoaria, Aves e Adestramento Em falcoaria, a relação entre falcoeiro e ave de presa é a base de toda a prática e uma das razões da sua existência. O falcoeiro, para conseguir relacionar-se com estes animais, deve conseguir estabelecer uma via de comunicação com os mesmos através de um processo de interação e oferta de alimento. Se, inicialmente, se pode pensar que o falcoeiro subjuga a ave à sua vontade, a realidade mostra precisamente o contrário, apenas conseguindo ter sucesso nesta arte os indivíduos que conseguem entrar no “mundo da ave”, compreender as suas necessidades (alimentação, abrigo e caça) e dar-lhes resposta. A prática da falcoaria exige, tal como referiu Diogo Fernandes Ferreira (1616): “amor, engenho, prudência e sofrimento”. Apenas o falcoeiro que se coloca ao serviço da sua ave, de forma a estabelecer uma parceria, tem real sucesso nesta arte. O falcoeiro forma assim uma relação de grande cumplicidade com a ave, mantendo-se por vezes, ao longo de décadas. O falcoeiro sente a perda do seu companheiro de caça, do seu aliado, caso uma tragédia os venha a separar prematuramente. Desta forma, o treino da ave de presa para a caça é um processo contínuo, requerendo muita paciência e dedicação, por parte do falcoeiro, que deve conhecer as diferenças entre cada ave, preparando os treinos consoante diferentes características físicas e temperamentais da mesma. Os séculos que separam os dias de hoje com o início desta prática, não são suficientes, para que se possam comparar “velhas” e “novas” formas de adestramento, pois as técnicas utilizadas atualmente não diferem muito das que se praticavam por exemplo na Idade Média, nem os objetos utilizados apresentam características muito diferentes. A “paciência” e a “metodologia” são o username e a palavra-chave do adestramento, que deve ser feito por várias etapas obrigatórias que são imprescindíveis à aprendizagem da ave e, por esse motivo não devem ser substituídas ou até mesmo ultrapassadas, de forma a garantir que a ave aprendeu corretamente todas as etapas e o falcoeiro sinta confiança no seu desempenho. Não se deve confundir adestramento com domesticação. Treinar aves de presa não é o mesmo que treinar um cão ou outro animal doméstico (Crespo, 1999: 91), pois as aves de presa, mesmo que treinadas mantêm, em grande medida, muitas características inerentes aos animais selvagens. Estes não interagem com o ser humano por qualquer necessidade de afeto, nem compreendem os castigos impostos. Desta forma, a confiança estabelecida, através do alimento e a quantidade e qualidade da recompensa, após o treino, são a única forma que os falcoeiros detêm para estabelecer uma comunicação efetiva com este tipo de aves. Sumariamente podemos dizer, que de forma tradicional, o processo de treino se inicia com uma ave criada pelos próprios pais em cativeiro. Esta ave detém um receio natural ao Homem. Para o vencer o falcoeiro, lentamente, vai entrando no seu mundo através do fornecimento de alimento e segurança. Para isto, nos primeiros dias, coloca um pequeno artefacto de couro na cabeça da ave que lhe tapa a visão sem nunca lhe tocar os olhos (o caparão). Este artefacto deixa a ave calma e tranquila e ajuda-a a apreender, com maior facilidade, os estímulos dos falcoeiros. A ave é alimentada na luva e gradualmente começa a familiarizar-se com o maneio na luva, o transporte, a voz e o toque do falcoeiro. Após alguns dias inicia-se a alimentação sem caparão e a introdução ao “mundo do Homem”. Gradualmente as aves são habituadas a regressar à luva, primeiro com o uso de um fio comprido designado fiador, e depois em total liberdade. Além disso, o falcoeiro ensina a ave a perseguir e capturar o rol, um artefacto em couro, que simula uma presa e que ajuda a ave a desenvolver as suas potencialidades de caça (servindo também para chamar a ave quando necessário). Não existe nada, além do vínculo e treino estabelecidos, que possa garantir o seu regresso, no entanto para a poder localizar, no caso de se perder, são tradicionalmente usados pequenos guizos que são audíveis a grande distância (os cascavéis). Atualmente é também geralmente colocado na ave, (na pata ou cauda), um emissor de rádio, de forma a conseguir identificar o seu paradeiro no caso de se perder. Caçar com aves de presa Tratando-se de uma forma a sua prática está intimamente ligada aos espaços naturais, mais precisamente, aos territórios rurais de Portugal. A sua prática ocorre em todos os locais onde, legalmente, a caça está permitida, obedecendo aos condicionalismos impostos pela lei. A melhor forma de compreender como esta prática se processa é através da descrição de uma jornada de caça (neste caso de uma lance de baixo-voo). Uma caçada com ave de presa começa ainda em casa do falcoeiro. Na madrugada do dia de caça, geralmente uma manhã de outono ou inverno, o falcoeiro aproxima-se da sua ave (uma fêmea de Açor, Accipiter gentilis) que já antecipa o que vai acontecer a seguir. O falcoeiro avalia o seu companheiro de caça. A sua prontidão para a caça é visível em pequenos detalhes como a sua postura, reação ao falcoeiro, e prontidão a subir para luva. Depois a ave é pesada. O peso é, acima de tudo, uma forma de confirmar a avaliação previamente realizada pelo falcoeiro. É, também, uma espécie de ritual de início do drama natural de caça com aves de presa. Depois deste momento de preparação (que confirma que tudo está pronto) é colocado o caparão à ave, que de imediato a tranquiliza e relaxa, e a mesma é colocada numa caixa de transporte, propositadamente construída, na mala do carro. A viagem até à zona de caça demora cerca de uma hora. Ao lado da caixa da ave está outra, a do cão de caça, fiel companheiro de caça, que conhece o seu papel plenamente e que também viaja ansioso. Ao chegar à zona de caça, (o dia de caça estava já previamente combinado com o gestor cinegético), o falcoeiro solta o cão que se entretém, por ali, a farejar ansioso. O falcoeiro levanta o açor para o punho. Verifica o material, liga o emissor de telemetria (ou até de GPS) e retira o caparão ao Açor. Começa a caçada. O cão vai farejando por aqui e por ali. O rasto do coelho, da lebre ou da perdiz, transmite-lhe sensações de tal forma intoxicantes, que o levam a uma espécie de transe, que o faz ficar imóvel, quando a presa está próxima. A caçada demora. O cão vai dando sinal ocasionalmente, mas nada sério. O Açor está pousado no punho, atento, perscruta o horizonte e o cão sem parar, numa atitude que designamos de “yarak”. A emoção vai-se acumulando com o passar do tempo. O falcoeiro, o cão e a ave estão tensos. Às vezes, a ave sai da luva, em falso, sem que a presa se tenha mostrado. É recolhida ao punho ou eventualmente ao rol se necessário para continuar a caçada. O cão dá sinal mais forte. À volta de uma pequena moita de silvas. Roda ansioso à volta da moita conseguindo cheirar a presa. De repente pára, imóvel, estático. O falcoeiro aproxima-se, cauteloso, tentando que o levante da presa se dê para onde tem menos defesa, menos esconderijo. De repente a presa, (um coelho), não aguenta a pressão do cão e abandona a segurança das silvas a correr pelo meio do mato curto. Sabe precisamente onde está o próximo buraco que lhe dará segurança. A luta pela sobrevivência começa, na reprodução de um drama eterno, que ocorre há milhões de anos (o coelho bravo é uma das presas comuns do Açor). O Açor abandona o punho enluvado do falcoeiro. O que o precipita é a saída da sua presa, o coelho-bravo, que despoleta reflexos guiados por milhões de anos de evolução. As suas asas curtas impelem o voo rente ao solo que quase toca. A cauda longa do Açor permite-lhe curvar rapidamente, acompanhando as fintas da sua presa. Para o falcoeiro, que já só contempla, o açor é um espectro, um fantasma, que se confunde com o entorno e que viaja a uma velocidade extraordinária no encalço do seu objetivo. O coelho corre em direção ao refúgio. Tudo acontece em quase total silêncio, apenas interrompido pelo latir do cão que tenta acompanhar a ação, uns metros mais atrás, e pelo tilintar dos cascavéis que o açor tem colocados. Além disso há pequenos chamamentos de alarme de aves florestais que observam a cena. O coelho ilude o açor mas, quando se aproxima da entrada do seu refúgio a ave de presa, numa curva apertada, entra magistralmente em contacto com a sua presa segurando-a pela cabeça. O coelho guincha até o cão se aproximar e lhe dar o remate final, abreviando o seu sofrimento em segundos. O Açor tolera tal intromissão pois já a viveu muitas vezes. O cão abandona a presa e espera junto ao Açor. Aquela presa é da ave. O falcoeiro, que, entretanto, já corria para dar ajuda à sua ave aproxima-se e verifica que o coelho já está morto. Se não estivesse morto rapidamente lhe daria termo. Ao açor é oferecido, quase como uma oferenda, uma boa parte da presa, o falcoeiro ficará com o resto para o ensopado que transportará para casa no bornal. Para o coelho este foi o lance derradeiro onde, ao contrário de tantos outros, não conseguiu vencer. Para o Açor uma manifestação do seu código genético como caçador. Para o bosque apenas mais um momento como tantos outros que já assistiu no decorrer dos dias. Para o falcoeiro, elemento que orquestrou tudo isto, este lance de baixo-voo é uma demonstração da essência que liga todas as formas de vida neste planeta. Para aqui chegar o falcoeiro precisou de percorrer um caminho muitas vezes longo e exigente. Este caminho implica, geralmente várias fases de preparação. No entanto existem, duas fases essenciais. A primeira é a aprendizagem das bases da prática. Estas geralmente são realizadas com a facilitação de outro falcoeiro, que, neste caso atuam como mestres dos falcoeiros iniciantes. Neste campo, a Associação Portuguesa de Falcoaria assume o papel de facilitar o contacto entre praticantes e iniciantes nos eventos e cursos que organiza, funcionando como um catalisador, não oficial, deste movimento. Após esta primeira fase, de descoberta e aprendizagem, surge o segundo momento mais relevante, a obtenção da carta de caçador junto do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (e demais preceitos legais) e fornecem ao iniciado a habilitação para a prática. Quando munido das aprendizagens realizadas, da documentação legal necessária e, claro, da sua primeira ave de presa, o iniciado captura a sua primeira presa selvagem com auxílio de uma ave de presa torna-se, então, falcoeiro. De futuro também ele deve cumprir o papel essencial de transmissão de conhecimentos a outros iniciantes.
  • Manifestações associadas:
    Não aplicável.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: A aprendizagem da prática é complexa. Apesar de existirem sistemas “semiformais” de aprendizagem, implementados desde 1991 pela Associação Portuguesa de Falcoaria, podemos considerar que, ainda hoje, a prática é transmitida entre “mestre e aprendiz” numa dialética individual muito própria que não responde bem à rigidez que sistemas formais podem criar. Ou seja, a melhor forma de aprender esta arte é com a ajuda de outro falcoeiro, no campo, onde esta é praticada. No entanto, devido à dificuldade que muitas pessoas sentem em encontrar e recorrer à ajuda de outro falcoeiro, a Associação Portuguesa de Falcoaria, desenvolve anualmente vários Cursos introdutórios, a preço reduzido, de forma a dotar as pessoas de conhecimentos mínimos sobre a prática para que as mesmas possam ter consciência do que prática envolve. Um ponto essencial, frisado pelos praticantes desta arte desde sempre é que a preparação do aprendiz para a prática deve começar muito antes de adquirir uma ave. Aliás este deve ser o último ponto de um processo de preparação prévio. O aprendiz torna-se falcoeiro no momento da captura da sua primeira presa selvagem com uma ave de presa, um momento que geralmente ocorre na presença do falcoeiro que facilitou este processo e que adquire, por isso, características de mestre na aprendizagem.
    Data: 2015/10/01
    Modo de transmissão oral e escrita
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Todos os falcoeiros devem ser considerados como agentes de transmissão da prática da falcoaria.
  • Origem / Historial:
    Caça e a falcoaria A caça pode ser considerada como uma das atividades culturais e sociais mais antigas, tão antiga como a vida e longe de ser uma invenção humana (Ergert, 1999:64). Os nossos antepassados foram espetadores do comportamento dos animais e das suas técnicas de capturar as presas. Em tempos mais remotos, foi utilizada pelo Homem para defender o seu habitáculo natural, deparando-se muitas vezes com predadores que ferozmente invadiam o seu território, zelando pela sua segurança e garantindo o sustento das suas famílias. O Homem desenvolveu técnicas cada vez mais sofisticadas para se impor aos seus adversários/ competidores do mundo animal. Quando há milhões de anos os nossos antepassados deixaram a selva, onde mantinham uma vida mais sedentária e uma dieta alimentar essencialmente vegetariana, passando para a savana, alteraram-se os seus hábitos alimentares, onde predominavam os vegetais, convertendo-se em caçadores (Leiendecker, 1999: 12). Um Homem caçador, que embora apresentasse algumas desvantagens, como a força e a rapidez, em relação aos animais que caçava, desenvolve “novas formas de comunicação e de cooperação para a caça, bem como a genial ideia de fabricar utensílios e adestrar animais que o auxiliassem nessa tarefa” (Crespo, 1999: 5) Com a domesticação de animais como porcos, vacas, ovelhas, coelhos, etc., o homem não precisava arriscar tanto, tendo em conta os riscos que a caça implicava. A necessidade de praticarem a caça em grupo fomentou o aparecimento de estruturas e rituais que deram lugar a formas de vida social concretas. Foi nesse sentido que se desenvolveram atividades paralelas, como o fabrico de armas, de vestuário, o treino de cães e cavalos para a caça, o adestramento de aves de presa, com a finalidade de ajudar o caçador, tornando-se símbolos do seu estatuto social (Crespo, 1999: 13). Ao longo dos séculos, vão surgindo leis e normas que regem o direito à caça, aplicam-se multas, fazem-se cumprir penas. Tudo isto motivado pelo conflito da propriedade, do direito à caça, às espécies cinegéticas, e também pelo conflito de interesses entre caçadores e agricultores. No Direito Romano, anterior ao de Justiniano, estava implícito que a caça era pertença do primeiro ocupante, que tinha o direito de proibir que se caçasse nessas terras, que eram suas por direito, como também exigir que se pagasse para o poder fazer (Saramago, 1994: 11). Embora na maioria das vezes fosse encarada como uma demostração de poder, privilégio de classes sociais economicamente mais favorecidas, o povo encontrava sempre forma de o fazer, estando a caça enraizada nos seus hábitos e costumes. Era também um excelente recurso alimentar, que por vezes utilizavam para comércio, vendendo a carne para alimentação e as peles para agasalhos. Embora com finalidades diferentes, umas de distração, outras de sobrevivência, a caça permitia o contacto entre diferentes estatutos sociais, aproximando a nobreza do povo, participando os últimos como “batedores”, levantando a caça para os nobres, que por norma não recorriam a armas nem a armadilhas, utilizavam apenas o cavalo para perseguir a presa, tentando encurralá-la a fim de a capturar. As leis da caça foram aperfeiçoadas e modificadas ao longo dos tempos, com o intuito de proteger as espécies, impedindo que se extinguissem. Várias condicionantes podem limitar a sua prática, como é o caso dos incêndios, de secas, extinção de animais, etc. Os testemunhos documentais e iconográficos provam a importância do que a caça conservou até aos nossos dias “mesmo quando já perdeu muita da sua função como mera forma de obtenção de alimento” (Ergert B. E., 1999). Não sendo possível apontar com precisão uma data para o início da prática da falcoaria, podemos balizar o seu aparecimento como uma forma de subsistência, utilizada pelo Homem, que desempenhava um papel de espectador ativo, assistindo à forma eficaz, com que falcões e outras aves de presa capturavam outros animais, muitas vezes de porte superior ao seu. Com o passar do tempo, o Homem percebe que seria mais vantajoso, que ao invés de roubar as presas aos falcões, deveria treiná-los de forma a poder partilhar as presas deste predador. A partir de então é possível falar-se de falcoaria, ou seja, do momento em que surge a interação entre Homem e Falcão. Ao Homem compete não só o adestramento dos falcões, também, a manutenção do seu bem-estar e segurança. Do falcão espera-se que utilize as suas verdadeiras e naturais qualidades de predador, em prol desta equipa, onde lhe cabe o papel de intermediário, aguardando a recompensa pelo seu desempenho. Como todo o desporto ou atividade que se pratica, a falcoaria obedece a leis e normas que se foram incrementando ao longo dos anos. Com grande peso na sociedade europeia oriental, a falcoaria foi-se transformando numa disciplina fundamental para a educação dos jovens de famílias mais abastadas. É a partir desta altura que reis e imperadores começam a pedir aos seus falcoeiros que compilem a matéria respeitante a esta disciplina, surgindo os primeiros Tratados de falcoaria (Crespo 1999: 13). Estes manuscritos são uma espécie de manual de instruções de todas a fases do adestramento das aves de presa, desde a alimentação, higiene, saúde e outros cuidados a ter com os falcões e açores. Origem da falcoaria Podemos apontar algumas datas, em que garantidamente já se caçava com aves de presa, como o exemplo de um baixo – relevo assírio, onde está representado um homem com uma ave no punho, encontrado nas ruínas de Korsabad, durante as escavações ao Palácio de Sargão II. Este é o mais antigo testemunho iconográfico que se conhece sobre falcoaria, permitindo-se apontá-la como uma arte que se pratica, pelo menos, desde o ano de 1400 A. C. (Ver ANEXO II/1 nº51). No Egipto, os falcões surgem como uma representação da reencarnação divina do Deus Horus, Deus da Lua, do Sol e dos Faraós (Crespo, 1999: 7). Sabemos que era um animal sagrado, que não era utilizado para a caça, funcionando a sua imagem como uma espécie de amuleto da sorte, capaz de lhes transmitir força e proteção. Segundo os autores do livro “Oito Séculos de Caça em Portugal” a chegada desta arte à Península Ibérica tem dois focos de disseminação: um a norte a partir da Europa Central através dos Visigodos (séc. V) outro a Sul com os povos do Norte de África (Berberes) e do Médio Oriente (Árabes). A falcoaria em Portugal As primeiras referências sobre este tema em território português datam do ano de 506, quando as autoridades eclesiásticas proíbem o Clero de praticar falcoaria (Crespo, 1999: 63). A Idade Média, sem dúvida, época de Ouro da Falcoaria em Portugal, assumiu na Europa uma técnica própria, incrementada tanto pelas elites como pelos grupos populares. Foi também durante este período que a falcoaria deixa de ser uma simples forma de caça e passa a ser uma das distrações prediletas da nobreza, ou, como dizia Fernão Lopes, “folgança e desenfadamento de príncipes e reis” segundo a descrição de Carlos Crespo. (Crespo, 1999: 12). Os falcões são utilizados como demonstração de poder e grandeza, fazem parte de armas e brasões, considerados de tamanha importância, funcionam muitas vezes como moeda de troca, inseridos nos dotes de casamento das princesas e para pagamento de resgates de guerra (Crespo, 1999: 13). Eis a descrição de um desses episódios: “O Conde de Nevers, filho de Filipe, o Destemido, duque de Borgonha, foi feito prisioneiro dos Árabes na Batalha de Nicópolis. Aí visitou a falcoaria do sultão Bajazeto, que, segundo as descrições, albergava mais de sete mil falcoeiros e uma infinidade de aves de presa. O duque de Borgonha mandou então presentear o sultão com doze raríssimos falcões brancos. Como prova de gratidão, o sultão concedeu a liberdade a seu filho” (Baêna & Bravo 1998: 63). Não é, pois, surpreendente que se tenha tornado prática comum os homens ilustres fazerem-se representar empunhando um falcão, nos quadros, em selos, moedas, etc., como forma de evidenciar a sua importância. Como todo o desporto ou atividade que se pratica, a falcoaria obedece a leis e normas que se foram incrementando ao longo dos anos. Por isso, desde o século XIII, vão-se escrevendo os primeiros “Tratados de Falcoaria” europeus. Aos Tratados corresponde a fixação de verdadeiras normas que foram estruturando esta atividade. Tal como a sociedade, também os falcões eram hierarquizados, sendo utilizados conforme a graduação social dos seus proprietários: “O gerifalte aos reis, os falcões aos príncipes e duques, as aves bastardas aos barões, o sacre aos cavaleiros, o ógea aos senhores, o esmerilhão às damas, o tagarote ao gentil-homem, o gavião aos clérigos, o açor aos alabardeiros, os peneireiros aos criados” (Crespo 1999: 13). Carlos Crespo (1999) associa mesmo a derrota de Alcácer Quibir, ao primeiro declínio da falcoaria em Portugal, que pode estar relacionado com uma nobreza que o autor caracteriza como “enlutada” pelo trauma sebastianista, que coloca de parte esta arte, podendo afirmar-se que, tal como o País, também a falcoaria passou por um período de interregno. Podendo afirmar-se que, tal como o país, também a Falcoaria passou por um período de interregno. São poucas as referências documentais referentes à prática da Falcoaria em Portugal, durante a dinastia Filipina, no entanto é neste período que Diogo Ferreira, descendente de uma família de falcoeiros, na altura com sessenta anos de idade, edita o livro “Arte da caça de Altaneria”. No século XVIII inicia-se um novo período de Falcoaria no nosso país, associado à construção da Falcoaria Real de Salvaterra de Magos. A localização junto do Rio Tejo, que permitia tanto a caça de aves ribeirinhas, como as garças-reais, a proximidade a Lisboa, a par das suas coutadas reais, onde abundavam as presas, podem ter sido condicionantes favoráveis para a construção de um Paço Real, de um teatro de ópera e também da Falcoaria Real, a única existente em Portugal e atualmente na Península Ibérica. Com efeito, a caça foi o principal motivo para as frequentes deslocações da Corte portuguesa a esta vila, que, durante as temporadas da caça, funcionava como uma espécie de “capital do reino” como o demonstram alguns documentos e decretos assinados em Salvaterra de Magos durante esse período. Alguns acontecimentos históricos mais relevantes permitem constatar que já desde o século XIII existiam em Salvaterra condições para poder receber Embaixadores e gente ilustre, como comprova o contrato de casamento da Infanta D. Beatriz com o Rei D. João de Castela, realizado nesta vila em 1383 (Correia & Guedes, 1989:11). A caça podia ser o principal atrativo para as deslocações da Corte a Salvaterra de Magos, no entanto a vila oferecia uma série de distrações equiparada a um centro de cultura por excelência, onde para além de se ocuparem da sua forma de desenfadamento predileta – a caça - podiam ainda assistir ao Teatro de Ópera. Foi neste contexto que no século XVIII se constrói a Falcoaria Real em Salvaterra de Magos, construindo-se edifícios próprios para acolher falcões e falcoeiros. Esta vila reunia todas as condições para a construção da única Falcoaria Real portuguesa, como já foi mencionado, a sua localização geográfica, a proximidade com o Rio Tejo, que facilitava a caça a aves aquáticas, e as suas magnificas coutadas, foram certamente uma mais-valia. Durante o reinado de D. Maria I e de D. João VI, esta atividade começa a decair, tendo estes monarcas um especial interesse na montaria e na caça às perdizes, embora se tenha mantido o funcionamento da Falcoaria Real de Salvaterra de Magos (Melo, 1998). A fuga da família real para o Brasil, motivada pelas invasões francesas e o clima de instabilidade política que se seguiu dá origem a um novo declínio na Falcoaria em Portugal, entenda-se declínio desta prática de caça e do edifício. A caça estava tão enraizada nos costumes da corte portuguesa, que chegam a ser enviadas perdizes para o Rio de Janeiro, para que o rei se pudesse distrair com um dos seus passatempos de eleição. “O Príncipe, lá do Brasil, preocupado com as perdizes que não chegavam vivas à corte do Rio de Janeiro, impedindo-o de se divertir na caça, punha em causa a atuação do Monteiro Mor em exercício” (Melo, 1998: 59) As invasões francesas, a decadência do edifício da Falcoaria Real de Salvaterra, o aperfeiçoamento das armas de fogo e até mesmo a abolição das coutadas reais, conduzem ao “ao aniquilamento total: um que outro cetreiro, um que outro agrupamento mantiveram na Europa a chama viva de um fogo antigo”. (Bravo,1982: 484) Como todo o desporto ou atividade que se pratica, a falcoaria obedece a leis e normas que se foram incrementando ao longo dos anos. Escrevem-se no século XIII, os primeiros “Tratados de Falcoaria” europeus, tema que será alvo no próximo ponto. Tratados de falcoaria A falcoaria tinha um grande peso na sociedade europeia oriental, transformando-se numa disciplina fundamental para a educação dos jovens de famílias mais abastadas. É a partir desta altura que reis e imperadores começam a pedir aos seus falcoeiros que compilem a matéria respeitante a esta disciplina, surgindo os primeiros tratados de falcoaria (Crespo 1999: 13). Nestes manuscritos constam informações determinantes para o entendimento de todas as fases do adestramento das aves de presa, pelo que constituem um autêntico manual de instruções sobre a alimentação, higiene, saúde e demais cuidados a ter com falcões e açores. Existe a preocupação por parte dos escritores destes tratados em deixar às gerações vindouras a tradição desta arte. Nem sempre a leitura destas obras é de fácil entendimento, estando na sua maioria escritas em latim por autores que nem sempre dominavam a língua na perfeição, dando origem a traduções que nem sempre são as mais corretas. Atualmente quem se dedica às traduções destes tratados, tem como base traduções já existentes, remetendo por vezes a termos que nem sempre são os mais apropriados. Se por um lado, os autores destes trabalhos são conhecedores da língua, por outro lado, não conseguem decifrar alguns termos técnicos que implicam um conhecimento profundo desta arte. Vejamos o exemplo de Frederico II de Hohestaufen (1194 – 1250), Imperador do Sacro Império Romano e Rei da Sicília, um apaixonado pela natureza e conhecedor do desenvolvimento da falcoaria no Médio Oriente, que chama os melhores falcoeiros da Síria e da Terra Santa, pretendendo demonstrar toda a sua experiência e redigiu o primeiro Tratado de falcoaria em 1240 - “De Arte Venandi Cum Avibus” (1240) “O assunto deste livro é a arte de caçar com aves, de cujas partes uma delas consiste em contemplar ou conhecer, que se digna teórica, a outra, no fazer, que se designa prática. E clarificando, uma parte é sobre a visão na generalidade, tanto do que respeita à parte teórica, como à prática, a outra sobre a reflexão na especialidade do mesmo assunto” (Silva, 2011: 31). Este imperador era um grande avaliador de falcões e caçava habitualmente no pântano de Jesina, no sul do Gangano, em Puglia na Itália. Junto à sua corte podiam encontrar-se vários vendedores ambulantes (Actualidades Ornitológicas On Line-nº 140, 2007). A composição deste tratado demorou cerca de 30 anos, pois os autores sentiram necessidade de investigar mais sobre esta arte. Tarefa que não foi fácil por não ser conhecida, até então, nenhuma obra completa sobre o tema e também, pelo facto daqueles que eram peritos, não a saberem transmitir com perfeição. Dedicando-se os autores ao exercício desta arte, tentando redigir com perfeição neste livro tudo aquilo que aprenderam com outros (Silva 2011: 32). Este tratado está dividido em duas partes, a primeira é dedicada ao comportamento das presas e na segunda descrevem-se técnicas de adestramento. O manuscrito apresenta estupendas iluminuras sobre a arte de falcoaria adornada com mais de 500 miniaturas de aves de 80 espécies diferentes (Niesters, 1999: 171). (ANEXO II/1 nº 50 e 51) Trabalho onde o autor resume a sua experiência pessoal em falcoaria, descrevendo os trabalhos de falcoeiro, métodos de caça, colaboração dos cães e o comportamento das presas. Em 1248, esta obra caiu nas mãos de inimigos desaparecendo na segunda metade do século XIII. O exemplar a que hoje se pode aceder é uma cópia feita a pedido de Manfredo, filho deste imperador (Ergert 1999: 102). Em Portugal, as primeiras obras que se conhecem sobre falcoaria remontam ao reinado de D. Dinis e referem críticas de pessoas que dizem perder os seus falcões e se queixam porque quem os encontra não os devolve. É neste sentido que, em 10 de novembro de 1288, o rei informa, por carta régia, todos os proprietários de cargos ligados à justiça, que devem castigar todos aqueles que encontrem aves de caça e que se apoderem delas. Informava ainda que todos os que encontrassem aves, por acaso, deveriam apregoar nas vilas tal achado, e que os seus donos deveriam recompensá-los em troca das aves. Essa recompensa variava consoante o sexo e espécie da ave. Quem as encontrasse e não as devolvesse, deveria ser castigado com penas semelhantes a outro roubo qualquer (Neves 1968: 24). Ainda no reinado de D. Dinis, o seu falcoeiro, João Martins Perdigão, e o Mestre Giraldo (físico do rei) terão escrito sobre o assunto (Crespo 1999: 18). Só uns anos mais tarde, por volta de 1380, se volta a escrever sobre o tema no “Livro de Falcoaria” (Fig.4) a pedido de D. Fernando que sendo um grande amante de caça encarregou um dos seus mais experientes falcoeiros, Pero Menino, de redigir esta obra, que aborda essencialmente aspetos relacionados com doenças dos falcões, que o autor descreve e identifica com a sua experiência pessoal, sem com isso menosprezar a ciência alheia. Ensina também os falcoeiros a curar as suas aves, com mezinhas e tratamentos minuciosos. “Sucedem-se as frases umas às outras, empurrando o falcoeiro para o saber directo e para a atenção profissional de médicos de doentes mudos” (Martins, 1972: 5). “Dom Fenando, pella graça de Deus Rey de Portugal e dos Alguarves, mandou a mim Pero Minino, seu falcoeiro que lhe fizesse hu livro de falcoaria, no qual fosse escrito e declarado todas as doenças e os nomes dellas” (Osório 2004: 21) A primeira referência a esta obra é feita por Gonzalo Argote de Molina, em 1588 “Nobleza de la Andaluzia” (Osório 2004: 22), traduzida para castelhano por Pero Lopes de Ayala que a incorpora no “Libro de la Caza de las Aves” em 1386, e por Gonçalo Escobar, no século XV. Também foi mencionada por Johan Fagund, falcoeiro de D. João II de Castela no seu Tratado de falcoaria, mais tarde, no século XVII, em 1616 por Diogo Fernandes Ferreira, no seu Tratado Arte de Caça de Altaneria (Baêna & Bravo 1998: 87). Nem sempre os falcões foram considerados como uma espécie protegida porque podiam ser retirados dos ninhos ou capturados em idade adulta através da utilização de armadilhas. A captura destas aves desenvolveu um mercado muito próprio que se dedica ao transporte e venda das mesmas, sendo os responsáveis pelo seu transporte muito bem reembolsados, como podemos comprovar no Tratado “Rol de despesas que se fez com os 60 falcões de Islândia que vieram de Copenhagen”, apresentado por Manuel Gomes da Silva (Correia & Guedes, O Paço Real de Salvaterra de Magos - A Corte, a Ópera e a Falcoaria., 1989). Baeta Neves faz referência a um documento publicado por António Gomes Ramalho, referente à lei de 25 de dezembro de 1255, de D. Afonso III, onde o monarca determina: “Proíbo firmemente que se apanhem ovos de açores, de gaviões ou de falcões e quem os apanhar, pagar-me-á dez libras por cada ovo e a sua apreensão. Ninguém pode apanhar açores senão 15 dias antes da festa de S. João Batista, mas se alguém o fizer pagar-me-á por cada açor dez morabitinos e sua apreensão. Ninguém pode apanhar gaviões ou falcões a não ser de três um e o que o apanhar pagar-me-á sem soldos” (Neves 1968: 23) Este documento permite-nos perceber que, no século XVIII, em Portugal a prática da caça era feita de forma coerente, com aplicação de multas e penas para os transgressores, quer da captura de falcões nos ninhos, como os que violassem o direito de propriedade ou a época oficial de proteção do período de nidificação/reprodução das espécies “período em que não se podia caçar e em que se deixa a caça sossegada para reprodução e criação, ia desde o dia de cinzas até Santa Maria de Agosto”. (Saramago, 1994: 23) A seguir, procura-se sintetizar as principais normas sobre falcoaria produzidas em Portugal no século XIII ("Breves referências a algumas das mais antigas leis sobre a prática da falcoaria durante o século XIII” citadas por Baêna e Bravo, 1998: p.390"): 1210 - D. Sancho I - D. Sancho I concede aos cónegos de Coimbra isenção do encargo de hospedagem açoreiros e falcoeiros com aves d’El-Rei e de lhes darem cavalgaduras que os conduzissem à Ribeira. 1211 – D. Afonso II - D. Afonso II liberta os “mesquinhos” da obrigação de lhe darem algavas para os falcões reais. 1253- D. Afonso III - Pragmática na qual é fixado o preço de diversas mercadorias, entre as quais: luvas de pele de corço ou gamo para açor (custava 20 dinheiros). A melhor luva para gavião vendia-se por 15 dinheiros e de pele de carneiro por 10 ou 6 dinheiros. As cascavéis para açor custam 1 sólido, para gavião 8 dinheiros e os piós, 3 dinheiros. Para além disto, estabelece a proibição de apanhar ovos em ninhos de açor, gavião e falcão e de tirar aves de caça dos ninhos antes da quinzena que precede o S. João Baptista (24 de Junho). 1288 – D. Afonso III - Lei contra quem, por qualquer maneira, se aproximava dos açores, falcões e gaviões alheios e das alvissaras que o dono havia de pagar por cada espécie perdida e depois achada. 1299 - D. Afonso III - “… El- Rei aya pera seu corpo oito bestas sa estrabaria e quatorze azêmalas, e dons monteiros de cavalo com duas besta, e nom sejam cavaleiros, e seus monteiros de pee tragam dous sabujos e três mouzinhos que tragam e guardem os alaaons…” Também no reinado de D. João I é notória a preocupação com a proteção da caça. Os caçadores são proibidos de fazer qualquer armadilha, estipulando-se em 1407, multas e penas para quem desrespeitasse os princípios a que devia obedecer a caça. (Saramago 1994: 23). Em 1468, D. Afonso V proíbe a “Caça ao Boi”, uma forma utilizada para capturar as aves, onde o homem se disfarça com a pele de um boi, aguardando que as presas se aproximem para as capturar. Como forma de preservar a caça proíbe, também, a utilização de armadilhas para capturar animais. D. Luís Duque de Beja, filho de D. Manuel I foi considerado um grande falcoeiro “costumava passar alguma parte do inverno na Sua Vila de Salvaterra pelo grande divertimento de caça de que é abundante o país e a cujo exercício era sumamente inclinado” (Correia & Guedes 1989: 56). Também D. Sebastião era adepto destas distrações por terras de Salvaterra e Almeirim. Diogo Ferreira edita em 1616, a “Arte da Caça de Altaneria” apresentando o seguinte frontispício: “Arte da caça de altenaria composta por Diogo Fernandes Ferreira moço da camara del Rei, & do seu serviço. Dirigida a D. Francisco de Mello, Marquez de Ferreyra, conde de Tentugal etc. Repartida em seis partes. Na primeira trata da criação dos gaviões & sua caça. Na segunda dos assores & sua caça. Na terceira dos falcões e sua caça. Na quarta de doenças & mezinhas. Na quinta de armadilhas e na sexta da passagem e peregrinação das aves. Com licença da S. Inquisição, Ordinário &Paço em Lisabona. Na oficina de Jorge Rodriguez. Ano de MDCXVI com privilégio real por dez anos”. O autor tinha na altura sessenta anos de idade, prepara esta obra durante o chamado Interregno, em que pairava o sentimento de derrota de uma nobreza enlutada pelo trauma sebastianista, afirmando que este passatempo se manteve até ao reinado de D. Sebastião e teria decaído sob o domínio Filipino (Correia, Caça e tiro ao voo, 1964). Falcoeiros na História Praticar falcoaria, como já foi referido, pressupõe a existência de uma interação entre o Homem e a natureza, uma atividade que exige trabalho de equipa, entre o homem o falcão e a presa. É através desse envolvimento que se alcança a essência desta prática, caçar com aves de presa. O Homem, responsável por esta equipa, permite que com o seu empenho e dedicação se desenvolvam as medidas necessárias para que todos (homem, falcão e presa) consigam alcançar o fim pretendido – a caça. É neste sentido que surgem os falcoeiros, responsáveis pelo adestramento das aves, muitas vezes considerados como um Deus – “Le fauconnier est dieu”, conhecido ditado francês, proveniente de uma peça de teatro de Victor Hugo “Marion De Lorme” onde o autor atribui esta exclamação ao rei Luís XIII, deixando transmitir o gosto deste monarca pela arte altaneira, homenageando os falcoeiros. Ocupando lugar de destaque nas principais cortes europeias, o falcoeiro reunia qualidades que o colocavam mais perto do “paraíso” (Oorschot 1974: 11), como por exemplo a robustez física, que lhes permitia trepar árvores e rochedos ou a paciência que os ajudava a transformar aves de presa desconfiadas em auxiliares serviçais. Uma boa visão e audição apurada deviam fazer parte das características dos falcoeiros. Frederico II descreve-os como os representantes mais perfeitos da raça humana, e que deveriam saber nadar para poderem recuperar as aves, quando estas se entretivessem a devorar as suas presas no outro lado do rio (Ergert B. E., 1999: 105) Eram homens viajados e tinham contacto com diversas culturas. A sua presença em meios importantes fez com que ascendessem socialmente e se transformassem em verdadeiros cavalheiros, homens completos e amantes da natureza que se distinguiam da vida leviana da corte. Em Portugal, no reinado de D. Sebastião, em 1568, é aprovado o ofício de Falcoeiro-Mor, cargo entregue a uma pessoa da confiança do rei, que ficava responsável pela Falcoaria Real. O cargo foi extinto no reinado de D. João IV, por este o considerar bastante dispendioso para o erário régio, passando a fundir-se com o cargo de Monteiro – Mor do Reino (Crespo, 1999: 18). Joaquim Correia (1989) afirma que o Falcoeiro-Mor estava no topo da organização acumulando o cargo de camerlengo e conselheiro do rei e o autor compara este ofício com o de ministro dos negócios estrangeiros. Abaixo do cargo de Falcoeiro-Mor vinha o de mestre falcoeiro, responsável pela administração da Falcoaria (Correia & Guedes, 1989: 59). Note-se que na Falcoaria Real de Salvaterra de Magos trabalhavam essencialmente falcoeiros estrangeiros em especial falcoeiros holandeses. Tendo em conta um balanço realizado por Joaquim da Silva Correia às despesas realizadas com a Falcoaria Real de Salvaterra no ano de 1778, podemos afirmar que nesse mesmo ano existiam na Falcoaria Real de Salvaterra de Magos: • 2 Mestres • 6 Oficiais • 8 Ajudantes • 2 Aprendizes No entanto, J. Sousa (1981) descreve a estrutura profissional de Salvaterra de Magos, referente ao mesmo ano (1778), onde os falcoeiros representam uma percentagem de 2.38% com um número absoluto de 15 falcoeiros (Sousa, 1981: 371). Em 31 Março de 1821, quando a Regência do Reino toma a decisão de extinguir “todos os ofícios, incumbências e ordenados das pessoas empregadas na Real Falcoaria ordenando ao Marquês Monteiro-mor que procedesse ao Inventário e arrecadação de todos os objetos a ela pertencentes, constituindo depositário deles o Almoxarife do Distrito”, (Neves C. M., 1983: 34-36) existiam nesta Falcoaria: Mestres – 2 Henrique Waymans – 67 anos Jacome Grima – 65 anos Oficiais - 3 João Guilherme – 63 anos Joze Huberto Véruven – 53 anos Manoel de Faria – 40 Ajudantes - 4 Manuel Nogueira – 60 anos Eloi Joaquim – 55 anos João Hertrois – 39 anos António Ricardo – 40 anos Aprendizes - Francisco Guilherme – 31 anos Joze Joaquim Moraes – 28 anos Médico - 1 Bacharel João António de Leão Cirurgião - 1 Joaquim António da Fonseca Ao analisar algumas descrições do transporte dos falcões, desde captura até à sua instalação nas falcoarias, destacando especialmente o caso português, podemos ter uma perceção mais concreta da importância social e política que a falcoaria tinha em Portugal em meados do século XVIII. O transporte dos falcões para Portugal era da responsabilidade de falcoeiros holandeses, que estavam ao serviço do Rei da Dinamarca. Eram considerados os mais prestigiados falcoeiros europeus, fixaram-se em Salvaterra de Magos e foram os principais responsáveis pelo funcionamento da Falcoaria Real, facilitando a aproximação entre esta nobre Vila Ribatejana e o Norte Europeu, especialmente com Valkenswaard (Várzea do Falcão). Muitos dos falcões eram provenientes de ofertas ao rei português, pelo Grão-mestre da Ordem de Malta, ou pelo rei da Dinamarca, que detinha o monopólio do fornecimento de falcões gerifaltes às principais cortes europeias (Crespo, 1999: 21). Estes falcões eram capturados na Islândia (território do rei da Dinamarca), treinados por falcoeiros de Valkenswaard, junto do castelo de Fredericksberg (Falcoaria Real: Exposição temporária realizada no Museu dos Coches, 1989: 97). O transporte dos falcões era uma enorme aventura e os momentos entre a partida e a chegada dos navios que transportam os falcões, caracterizados por uma enorme tensão. Tomemos o exemplo dos falcoeiros Verhagen e Verhoeven (padrasto e enteado) de Valkenswaard, como os responsáveis entre 1731 e 1793, pela seleção, distribuição e administração de 4600 aves, divididas por príncipes e fidalgos. Os falcões destinados à Península Ibérica eram, por vezes, entregues em Brabante aos falcoeiros que aí residiam, como é o caso de Dionísio Bijnen e Cristiaan Verhoeven, de Bergeyk, ou a Jacobus Weymans que se encontrava ao serviço da corte portuguesa (Oorschot J. V., 1974: 25). Alguns príncipes, de forma a inspecionar as aves, enviavam os seus próprios falcoeiros para as levantar. O transporte destas aves, o seu sustento e o dos falcoeiros durante longas viagens, que podiam demorar mais de um mês, era bastante dispendioso. Por norma, os falcoeiros responsáveis pelo transporte dos falcões recebiam “lembranças” e “gorjetas” dos reis e príncipes, que os recebiam, acabando os presenteados por ter mais despesa do que aqueles que ofereciam. “Assim o barão Von Gram junta ao longo dos anos, uma coleção preciosa de tabaqueiras de ouro e de prata” (Oorschot J. V., 1974: 26-27) D. José segue à risca a tradição de que “ao verdadeiro rei apraz mais dar que receber”, e entre 1755 e 1761 oferece avultadas quantias em ouro (Oorschot J. V., 1974: 28), sendo durante o seu reinado e também no de D. João V que a falcoaria em Portugal atinge o seu apogeu. No século XVIII, em Portugal, surge um novo período para a prática desta arte, associado à construção da Falcoaria Real de Salvaterra de Magos, voltando a decair com as invasões francesas, a subsequente fuga da Família Real para o Brasil e o aperfeiçoamento das armas de fogo, no século XIX. À semelhança do que aconteceu noutros países, a falcoaria é uma arte fortemente enraizada nos costumes e práticas culturais de Portugal, que conseguiu sobreviver a batalhas, perdas de independência, queda da monarquia e descontentamentos políticos. Sobreviveu nos séculos XIX e XX em pequenas comunidades e em falcoeiros individuais que não desistiram dessa prática tradicional. Nos anos 90 do século XX, um punhado de entusiastas da prática criaram a Associação Portuguesa de Falcoaria. Isto permitiu a criação de uma nova dinâmica da prática nacional. Mais tarde, em 2009, a recuperação da Falcoaria Real de Salvaterra de Magos, permitiu dar um grande contributo para que se recuperasse e estimulasse o interesse por esta prática ancestral. Os falcoeiros na atualidade Nos dias de hoje, a falcoaria deixou de ser uma prática exclusiva de elite, antes está disseminada por todo o território e praticada por todos aqueles que pretendam. Como antes se disse, talvez o principal impulso para a prática da falcoaria é a vontade de manter uma ligação com a natureza e uma preocupação de salvaguardar os habitats. A Associação Portuguesa de Falcoaria, fundada em 1991 por um punhado de entusiastas, reúne hoje falcoeiros dispersos por todo território de Portugal. De facto, existe esta preocupação de manutenção entre o Homem e os sistemas naturais e a assimilação da prática de falcoaria como uma tradição – um património – cujas origens se perdem no tempo. Hoje, um falcoeiro para manter a sua ave não precisa só de tempo para o treino e para a prática da caça, mas também tem necessidade de manter atualizados os seus conhecimentos e algum investimento nos equipamentos que precisa de, regularmente, renovar. Em 2013 a Associação Portuguesa de Falcoaria levou a cabo um pequeno estudo com o objetivo de determinar quais as medidas que os seus associados considerariam mais importantes para a proteção da prática da falcoaria em Portugal. A colheita de dados decorreu entre os dias 1 e 30 de Outubro de 2013, tendo como base um formulário online enviado por email aos associados da associação. O questionário foi composto por 4 questões abertas e 1 questão onde os associados poderiam deixar opiniões ou sugestões. Ao analisar os dados do inquérito pode depreender-se que os respondentes consideram, na primeira questão, relativas às medidas que poderiam ser tomadas pelas autoridades competentes para a promoção da prática, que aos associados atribuíam grande importância a facilitação da existência de locais para o treino regular das suas aves de presa. O atual quadro legislativo apenas contempla o treino em terrenos ordenados utilizados para o treino de cães de caça. A alteração desta realidade (com a possível abertura ao treino de aves de presa) de terrenos como aparcamentos de gado, aeródromos, campos de golfe ou outros (sob autorização de quem de direito) é referida em 27,8% das respostas. Além disso destaca-se ainda com o mesmo valor percentual a inclusão da cetraria como forma de caça autorizada por defeito nas zonas de caça existentes. O valor relativamente elevado obtido nesta resposta pode dever-se aos esforços que a APF tem feito para tornar mais célere este processo. A melhoria do processo de registo e a revisão das taxas a ele associadas foram referidas em 16,7% das respostas. Este é uma realidade com que a APF se tem debatido e um dos problemas que considera de maior relevância na prática atual. O aumento do número de dias de caça dedicados à cetraria ou a abertura da época de caça antes da época de caça geral é também referido em 16,7% das vezes para que seja possível manter as aves num adequado estado de preparação para o ato cinegético. A reduzida eficácia das aves de presa na caça não parece ser um perigo de maior aos efetivos das espécies cinegéticas caso isto fosse permitido. No que toca à melhoria da compreensão da sociedade sobre a falcoaria, as respostas atomizaram-se, quando em comparação com a questão anterior o que aponta provavelmente para o caracter excessivamente lato da questão colocada. De referir como obtendo maior percentagem de respostas a divulgação da falcoaria nos órgãos de comunicação a nível local (25%); A realização de apresentações sobre a arte em locais de âmbito social relevante, como escolas (16,7%) e a realização de um documentário sobre a falcoaria (16,7%). A realização destas atividades deveria ser cuidadosamente avaliada de forma a garantir que efetivamente a mensagem transmitida era a correta, apresentando a falcoaria como uma forma de caça e não a confundindo com outras atividades. Neste campo o papel da APF parece fundamental. A questão sobre a ação dos falcoeiros para melhorar a proteção das aves de presa revelou uma dispersão ainda maior de respostas. Tal como já foi apontado isto pode dever-se á questão colocada ter sido demasiado abrangente, mas poderá, igualmente, demonstrar que não existe ainda um consenso no coletivo sobre áreas de ação prioritárias neste campo. Sublinham-se as respostas com maior percentagem de resposta (15,4%) a parceria com organizações para a monitorização/estudo das populações selvagens e a recuperação de aves por cetreiros, com o mesmo valor percentual 15,4%. De notar que a intervenção/sinalização de linhas elétricas problemáticas obteve um valor de 7,7% e por isso a APF empreendeu a dinamização de um projeto neste âmbito. Esta baixa taxa de resposta sugere que o mesmo talvez deva ser reequacionado. Ressalva-se a atuação dos cetreiros como consultores na recuperação como uma ideia inovadora e a ter em conta (7,7%). A última questão visava determinar que medidas poderiam/deveriam ser implementadas pelos falcoeiros para que se garanta a continuidade do património existente relativo a esta forma de caça no nosso país. Neste ponto os associados referiam como importante a realização de atividades diferenciadas das efetuadas noutros âmbitos (28,6%) e as melhorias nos processos de formação dos cetreiros mais jovens (14,3%), o que parece relevante. As respostas a esta questão traduziram ideias interessantes como a obrigatoriedade da realização do curso então fornecido pela APF para acesso à carta de cetreiro (7,1%) ou a necessidade de um aumento da exigência nos exames de cetreiro e uma reformulação dos seus conteúdos (7,1%). A coordenação da gestão de zonas de caça com outros grupos de caçadores que utilizam métodos tradicionais (7,1%) pareceu uma ideia bastante válida para um futuro que se quer mais integrado e em maior articulação com outras organizações do sector da caça.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direito coletivo de tipo consuetudinárioDireitos legais estabelecidos na Legislação que regulamenta a prática da caça. Falcoeiros
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Filipe Themudo Barata
    Função: Professor Universitário Responsável da Catedra UNESCO de Património Imaterial
    Data: 2016/09/06
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Direção-Geral do Património Cultural Secretário de Estado da Cultura
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